Categoria: CINÉLIDE

Não perca ‘Littles Fires Everywhere’!

Uma silhueta loira observa uma mansão em estilo colonial ser consumida pelo incêndio. Pouco depois é a dona da silhueta em questão (Reese Whiterspoon de arrasar!) quem sequestra a total atenção do espectador com apenas uma expressão, em close. Perplexidade, dor e impotência misturam-se naquele rosto de olhos esgazeados, que parecem perdidos em outro tempo e lugar enquanto um oficial de polícia questiona sua dona sobre “quem teria interesse em atear fogo em sua casa com sua família dentro?”.

Ali! É como somos fisgados já nas primeiras cenas de “Little Fires Everywhere”, série que acaba de entrar para o catálogo de streaming da plataforma Prime Vídeo, da Amazon. Passamos os oito episódios seguintes conjeturando que fato devastador pode ter levado àquele incêndio e, principalmente, àquela expressão digna de Globo de Ouro de Reese Whiterspoon (ela já ganhou um por seu papel em “Johnny & June”).

Em mais este acerto de sua Hello Sunshine Produtora – que está se especializando em produções protagonizadas por mulheres marcantes -, Reese interpreta a personagem Helena Richardson, mãe, esposa, jornalista e cidadã exemplar de Shaker Heighs, localidade-modelo de Ohio (EUA), onde até o tamanho da grama nas casas é definido por lei municipal. Ali, Helena leva uma “vida de comercial de margarina”, regida por um planejamento rígido, que ela controla com ajuda de um kanban (quadro/agenda) gigante afixado em sua cozinha americana – para desespero de sua caçula, a rebelde Izzy.

Seu equilíbrio começa a ser quebrado quando chegam à cidade Mia e Pearl Warren, uma artista conceitual e sua filha adolescente, que levam uma vida libertária, cada temporada em uma cidade, às vezes chegando a dormir dentro do chevette azul usado com o qual percorrem o país. Seguindo um impulso, Helena aceita alugar a casa que recebeu como herança dos pais para aquela família, convencendo-se de que o faz por compaixão, pois só pode concluir que tenham uma vida tão diferente da sua por falta de opção melhor (primeiro preconceito estruturado… check!),

Helena e Mia não poderiam ser mais diferentes: uma branca e orgulhosa de seu pertencimento social; outra negra e ciosa de sua liberdade. Uma amizade forçada se insinua entre elas quando, percebendo o interesse da filha pelos novos amigos da família abastada, Mia acaba por aceitar uma oferta de Helena que encobre outro preconceito: de que funcionária doméstica é um trabalho óbvio para qualquer mulher negra (racismo estruturado… check!).

A interação que se desenvolve a partir daí suscitará conflitos para além das famílias de Helena e Mia, colocando em pauta debates sobre preconceitos racial, de gênero e, principalmente, tabus sobre a maternidade.

O roteiro é tão bem amarrado e os finais de cada episódio sempre tão intrigantes que não consegui parar de assistir até chegar ao final da temporada. Mais importante do que  um ótimo entretenimento,  “Little Fires Everywhere” é um convite à reflexão sobre preconceitos tão arraigados em nosso modo de agir em sociedade que, às vezes, sequer os percebemos.

Não perca!

‘Parasita’ surpreende com alegorias sociais

Em biologia, o termo parasita identifica “um organismo que vive dentro de outro, dele obtendo alimento e, não raro, causando-lhe dano”. Apropriado, então, o título escolhido pelo diretor John Bong-Ho para seu filme sobre uma família de desempregados que “invade” a vida de outra família burguesa.

Mas nada é tão simples assim em “Parasita” (2019), surpreendente produção sul-coreana que vem colecionando indicações e boas críticas mundo afora.

À guisa de metáfora, o filme pode ser comparado a uma “caixinha de surpresas”, pois começa despretensioso, parecendo uma comédia leve, como algumas das nossas produções nacionais que desagravam o “jeitinho brasileiro” por meio do humor. Mas, à medida que o roteiro vai nos brindando com  surpresas, o filme evolui para um thriller de humor negro e termina como um drama surpreendente.

O conjunto todo resulta em uma alegoria social desses tempos de inconsciência coletiva, em que vivemos dirigidos pelo automatismo de nossos egos.

E é no automatismo do “modo sobrevivência” que vive a família Kim, formada pelo pai, Ki-Taek, a mãe, Chung-Sook, o filho estudioso, Ki-Woo, e a filha expert em informática, Ki-Jung – só isso explica como conseguem manter o humor vivendo em um porão calorento com vista para uma lixeira comunitária, e alimentando-se com o pouco dinheiro que conseguem levantar com biscates.

Os Kim veem uma oportunidade de mudança quando Ki-Woo consegue um emprego como tutor da filha adolescente dos Park, família abastada que vive em uma espaçosa casa de arquitetura contemporânea. Logo colocam em prática um plano para se infiltrarem, os quatro, como empregados dos ricaços.

No começo, nossa compaixão fica toda com a jovem mãe e esposa Yeo-Jeong, que cai nas histórias engenhosamente arquitetadas pelos ex-desempregados. Chegamos a nos escandalizar, por exemplo, com a imagem da família pobre se banqueteando na casa dos patrões ausentes.

Mas, repito: nada é tão simples assim. Quando descobrem outros “parasitas” sobrevivendo da opulência dos Park, os Kim são confrontados com situações inusitadas que, aos poucos, operam neles uma espécie de despertar de consciência. Quando uma mesma chuva impacta de formas diferentes as vidas das famílias, por exemplo, a ficha de Ki-Taek finalmente cai: o que parecia ignorância, revela-se descaso, e o que soava ingenuidade, genuína indiferença.

Os invasores começam a enxergar a própria invisibilidade dentro do organismo que acreditavam possível conquistar. Descobrem-se, na verdade, prisioneiros de uma realidade que não os considera e reconhece. Ante a cegueira social dos que acreditávamos “invadidos”, desenha-se o colapso.

A narrativa fornece muito o que pensar sobre se todos nós não nos deixamos contaminar pela cegueira de em relação ao outro, endêmica nesses tempos de individualismo exacerbado.

‘Dois Papas’: Meirelles ensina a construir pontes

O brasileiro Fernando Meirelles dirige Jonathan Price e Anthony Hopkins em ‘Dois Papas’

Filmes baseados em fatos reais costumam despertar questionamentos sobre quanto de verdade foi preservada na criação de seus roteiros e quanto de ficção foi usada para tornar suas narrativas mais palatáveis ao espectador. No caso de “Dois Papas”, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”), essas questões certamente surgirão, mas meu conselho é que você as esqueça completamente para se concentrar no melhor motivo para saborear este belíssimo libelo sobre diálogo, redenção e fé.

Até porque fica muito clara a intenção de Meirelles com esta adaptação cinematográfica para o livro de Anthony McCarten – que também assina o roteiro: mostrar, nestes tempos de intolerância e radicalismos políticos, como o diálogo entre correntes de pensamento opostas é possível quando conduzido com respeito, empatia e, principalmente, disposição para ouvir. O registro biográfico fica em segundo plano.

Os dois papas da ficção (à esq.) e os da vida real (dir.).

No caso de “Dois Papas” temos, de um lado, o religioso alemão Joseph Ratzigner, cujo pontificado como Bento XVI foi marcado por uma defesa ferrenha dos dogmas seculares da Igreja Católica (proclamações solenes que devem ser consideradas definitivas, infalíveis, imutáveis e inquestionáveis pelos fiéis). De outro, está o então cardeal argentino Jorge Bergoglio – que viria a se tornar o papa Francisco -, de formação jesuíta (ordem conhecida pelo trabalho missionário e educacional, que presta voto de pobreza) e com ideias próprias e pouco ortodoxas sobre tais dogmas.

Os protagonistas são interpretados, respectivamente, pelo veteranos Anthony Hopkins e Jonathan Price, atores ingleses que nos premiam com atuações “exatas” e irretocáveis. Cabe a eles – principalmente ao carismático Price – parte do mérito pelo filme não ter resultado massante, mesmo sendo quase todo alicerçado em diálogos e limitado a poucos cenários. Mas a maior parte cabe mesmo a Meirelles, que demonstra, mais uma vez, sua maestria na direção de atores e muita sensibilidade na orquestração das cenas. A montagem também é muitíssimo bem amarrada.

 

Esgrima dialética

A química entre os protagonistas começa quando Bergoglio é convocado a Roma por Bento XVI, em um dia qualquer de 2012. O argentino vai encontrá-lo em Castel Gandolfo – residência de verão do papa – com a intenção de pedir a assinatura dele em seu pedido de aposentadoria. Entre negativas veladas de um e divertidas investidas do outro, o que se segue, ao longo de três encontros, são diálogos que tecem uma espécie de esgrima dialética entre os padres. Começa com discordâncias sobre temas comezinhos do sacerdócio, como o celibato dos padres, homossexualidade e a consagração da comunhão a divorciados. Evolui para discussões filosóficas, como a natureza (i)mutável de Deus, que seguem temperadas por sutis pitadas de humor. O que é melhor: sem nenhum hermetismo. A linguagem é simples, mas nem por isso raso o conteúdo.

Não por acaso, o roteiro faz ao menos três menções a “muros” e “pontes” como metáforas das defesas que a Igreja sempre ergueu em torno de si para proteger-se de mudanças (os muros), em oposição aos caminhos abertos para o diálogo (as pontes) que Bergoglio propõe para reconectá-la a seus fiéis. “Construímos muros ao nosso redor o tempo todo enquanto o real perigo estava dentro, conosco”, dispara o argentino, antes de introduzir uma crítica clara à postura da Igreja ante as denúncias de abusos de crianças por padres.

Mas é quando a conversa deságua em confissões pessoais que a narrativa realmente atinge seu clímax! Numa Capela Sistina deserta, ambos os sacerdotes se despem de seus papeis para apresentarem-se um ao outro como humanos falíveis, tão pecadores quanto quaisquer outros. É tocante a forma como os até então antagonistas acabam se acolhendo, se amparando e lembrando um ao outro o mecanismo do perdão.

É como atravessam, juntos e finalmente irmanados, a ponte que construíram ao longo de 2 horas (tudo somado) de diálogo honesto e respeitoso. Um exemplo que, certamente, todos nós poderíamos aproveitar muito bem.

‘Coringa’ e nossa embaraçosa catarse

Que atire a primeira pipoca o espectador de “Coringa” (Joker, 2019) que não empatizou com seu protagonista a ponto de, lá no fundinho, achar “bem feito” os crimes que ele acaba por cometer.

Um palhaço infeliz, que não controla o riso em situações de estresse

Esta é a grande armadilha do filme dirigido e co-roteirizado por Todd Phillips (pausa pra me chocar com o fato deste produtor, diretor e roteirista ter se especializado, antes, mais em besteiróis do nível de ‘Se Beber, Não Case’). Ele e o co-roteirista Scott Silver (“O Vencedor”) nos levam de tal forma a nos compadecer do dócil e maltratado Arthur Fleck – palhaço de rua triste que não controla o riso compulsivo em situações de estresse – que, sem nos darmos conta, continuamos a torcer por ele quando passa a assumir sua natureza psicopata.

Fez eu me lembrar do filme “A Onda” (The Wave, EUA, 1981; e Die Welle, Alemanha, 2008), que retrata a história verídica de um experimento realizado por um professor de História com seus alunos, a fim de provar, na prática, como uma sociedade inteira é levada a apoiar um regime racista, capaz de genocídio em massa – caso do Nazismo na Segunda Guerra Mundial. Mal comparando, é mais ou menos como milhões de pessoas acabam elegendo um líder que prega o machismo, a misoginia e a violência: fazendo nos identificar com histórias que busquem, lá em nosso subconsciente, nossos maiores medos e fraquezas e nos convençam de que “tudo bem” aniquilarmos quem este líder nos aponta como responsáveis por fazerem vibrar essas cordas. Dá uma sensação acolhedora de pertencimento nos ver representados por alguém que prometa se vingar por nós, né?

Está aí a armadilha!

E catarse é o nome dado pela psicanálise a este sentimento de “evacuação” de emoções internas (represadas em prol da civilidade) por meio de uma experiência fora de nós. É o que nos faz vibrar quando assistimos ao palhaço alquebrado finalmente defender-se de uma agressão gratuita, ainda que desproporcionalmente.

Se você não cedeu a esta embaraçosa catarse, parabéns! Pode se considerar um primor de civilidade, além de uma “pedra de gelo”, à prova de obras de arte que cumpram, para além do entretenimento, seu papel original: nos colocar um espelho nas fuças, para que nos reconheçamos nele e possamos extravasar nossos instintos primitivos apenas no terreno da ficção.

Por alcançar este intento de forma magistral é que “Coringa” entra para o rol das grandes obras-primas do cinema contemporâneo, ao lado de outras produções do gênero que bebem na fonte das histórias em quadrinhos – todos os “Batman” de Christopher Nolan entre eles.

Os Coringas de Heath Ledger e Joaquim Phoenix: interpretações de grandezas distintas

Aliás, não por acaso está na trilogia de Nolan a outra interpretação impecável do mesmo personagem, que elevou a atuação do saudoso Heath Ledger ao altar das mais memoráveis do cinema. Porém, não há comparação possível entre seu Coringa e o de Joaquin Phoenix. São duas grandezas distintas, nenhuma maior ou menor que a outra, até porque o mesmo personagem ganha tintas diferentes em uma e outra produção.

O Coringa de Ledger carrega o mesmo signo do caos do de Phoenix, herdado de seu original da HQ, mas nos arrebata mais por suas geniais falas, magistralmente interpretadas pelo ator. Não chegamos a torcer pelo personagem, por mais que nos dê prazer cada uma de suas aparições magnetizantes na tela. Já o de Phoenix nos mantém o tempo todo suspensos pelo anzol da empatia. Por exemplo [alerta de spoiler!], desminta se você também não ficou sem saber se sentia repulsa ou compaixão por ele na cena em que, com o rosto branco ainda respingado de sangue, despede-se do amigo anão com um beijo na testa e palavras de gratidão pela amizade, ditas em um inconfundível tom de ternura (que interpretação, senhoras e senhores!).

Demorei alguns quartos de hora pra me tocar do absurdo de simpatizar com um assassino e enxergar o que diz sobre nós a cena em que ele dança em cima de uma viatura, aplaudido pela multidão: que todos temos dentro as mesmas sombras que a condição psiquiátrica de Coringa faz aflorarem à superfície de seu consciente; e que, devidamente incentivados, também somos capazes de aplaudir a barbárie. Ou não seriam tantos os que, entre nós, aprovam jargões como “bandido bom é bandido morto”.

Lamentável é que alguns de nós levem esta necessidade de catarse para a vida, aplaudindo e incentivando o ódio contra o diferente, que sempre vai nos ameaçar (culpa de nossos vieses inconscientes construídos desde a pré-História).

Phoenix arrasando como Coringa na cena de dança que viralizou nas redes, ao som de ‘Rock’n Roll’, de Gary Glitter

Seria bom se todos abríssemos os olhos para enxergar  que as periferias pobres do mundo estão cheias de “coringas em potencial”, a sofrerem humilhações, violências e injustiças sociais, às vezes cometidas por quem deveria lhes proteger – governo e polícia, por exemplo. Mas nossa percepção vai só até o ódio primitivo que nos aflora quando somos assaltados por eles. Porque para nós, ditos “civilizados”, sentir empatia por excluídos que ameaçam a segurança e a ordem sociais… só no cinema mesmo, né?

 

P.S. PALMAS PARA O ROCKÃO DO CREAM (“White Room”,1968 ) EMBALANDO UMA DAS CENAS DE DANÇA DO CORINGA?!?!

‘Dor e Glória’: o ocaso de um cineasta

O cineasta Pedro Almodóvar e o ator Antonio Banderas no set de ‘Dor e Glória’

Já faz alguns filmes que não encontro palavras para descrever os sentimentos que a narrativa de Pedro Almodóvar me despertam – digamos que as cordas tocadas por suas últimas obras dramáticas em meu instrumento de sentir são, algumas vezes, novidades até para mim. Mas vou tentar escrever sobre a mais recente produção a receber a sua assinatura no roteiro e direção: “Dor e Glória” (Dolor Y Gloria, Espanha, 2019).

O encantamento começa já nos letreiros iniciais, emoldurados por verdadeiras obras de arte, pródigas em cores vivas – uma característica do cinema do espanhol presente também nos cenários e figurinos, embora de forma bem menos explosiva neste trabalho do que em seus primeiros.

Nesta produção, o diretor espanhol se reencontra com o ídolo de seus primeiros sucessos de público e crítica: o ator Antonio Banderas, que incorpora uma espécie de seu alter ego. Na pele do cineasta Salvador Mallo, um Banderas envelhecido revisita memórias de infância, antigos afetos e reconcilia-se com ao menos um desafeto. Tudo isso enquanto convive – às custas de coquetéis medicamentosos e, eventualmente, drogas – com dores físicas que o incapacitam para o trabalho e deprimem seu humor.

Mas não se enganem. Não se trata de um drama pesado. Nostálgico, sim. Sensível, idem! Mas nem um pouco depressivo.

E pode parecer difícil de acreditar – principalmente para quem costuma reduzir a obra de Almodóvar àquele cinema feérico que o lançou para o sucesso mundial, na década de 1980 -, mas desde “A Flor do Meu Segredo” (1995) ele vem preferindo a sutileza ao exagero quando se trata de evocar lugares e histórias caros à sua memória afetiva.

É o caso numa das primeiras cenas de “Dor e Glória”, que nos brinda com o canto à capela do bolero flamenco “A Tu Vera”, entoado por quatro lavadeiras, à margem de um riacho onde lavam roupas. Poesia para os sentidos!

O cenário é a região de Paterna, na província espanhola de Valência, onde Salvador passou a infância. Uma das lavadeiras é sua mãe, interpretada na versão mais jovem pela atriz Penelope Cruz – que, aliás, já soltou a voz em outras películas do diretor (“Volver”, de 2006, por exemplo).

Uma curiosidade: mais novo fenômeno da música mundial gestado pela Espanha, a cantora Rosalía faz sua primeira ponta no cinema como outra das lavadeiras (a de vermelho na foto acima).

Esta e outras cenas, como a do monólogo teatral que o ex-desafeto encena a partir de um texto confessional do diretor, é que tocam as tais cordinhas emocionais a que me refiro no início deste texto. É como se existissem camadas de narrativa não-verbais escondidas por baixo da construção de cada cena ou diálogo. Assim é que o telão em branco no cenário do monólogo não é só um artifício cênico. A depender do espectador, pode soar como uma metáfora da vida a acontecer, da juventude, ou do vazio que Salvador tenta expurgar através do texto autobiográfico.

Subtextos prescindem de palavras, por isso só o coração (ou seja lá como chamemos o tal instrumento de sentir dentro de nosso cérebro) consegue alcançar.

‘Bohemian Rhapsody’: filme de fã

por Silvia Pereira    

Um dos títulos concorrentes ao Oscar 2019 de Melhor Filme, “Bohemian Rhapsody” é, antes de tudo, um filme de fã. Uma cinebiografia “baba-ovo” total do grupo de rock inglês Queen. E digo isso “pagando pau”, porque… SIM!… estou entre os mais fervorosos fãs da banda que revolucionou o mercado fonográfico com a gravação, em 1975, do hit homônimo ao filme.

Ainda hoje me arrepia ouvir o vocal a capela que introduz “Bohemian Rhapsody” (“Is this the real life / Is this just fantasy…”). Igualzinho ao que senti na primeira vez que a vitrolinha verde de casa reproduziu os discos da banda, que minha irmã trouxe emprestados de um vizinho. Eu devia ter uns 9 anos de idade e, desde então, as músicas do Queen, com seus arranjos malucos e vocais grandiosos, vêm ocupando uma posição majoritária na trilha sonora da minha vida, fabricando e evocando memórias afetivas.

“Bohemian Rhapsody”, a música, tem 6 minutos (impensáveis para a época) de duração, solos de guitarra do rock, vocais operísticos, “trama de tragédia grega e a alegria descontrolada do teatro musical”, nas palavras do vocalista Freddie Mercury, sobre quem a cinebiografia, de fato, se detém.

Mas este clássico maior – longe de ser o único do Queen – não é a única justificativa para o filme de Bryan Singer compartilhar seu título. “Rapsódia” era como os gregos antigos chamavam trechos de poemas épicos e hoje define um tipo de composição musical que tem a mistura de ritmos e temas como principal característica. Épico é um adjetivo que se ajusta perfeitamente ao estilo megalômeno de criação, de Mercury em particular, e de todos os Queen em algum grau. E mistura… bem… quem conhece o som sabe como isso tem tudo a ver com os caras. Já “boemia”, no sentido clássico do termo, foi o estilo de vida ao qual Mercury entregou-se de cabeça, segundo o filme tentando anestesiar-se da paradoxal solidão da fama.

Rami Malek como o vocalista Freddie Mercury, sobre quem a cinebiografia, de fato, se detém

A primeira cena já entrega que ele será o foco principal da narrativa. O olhar de Rami Malek, assustadoramente parecido com o do músico, ocupa a tela toda. A câmera vai abrindo e passa a segui-lo até ele se materializar nos bastidores do show que, saberemos mais tarde, será um marco na história do grupo.

Daí em diante a narrativa segue uma ordem cronológica, que começa quando Mercury, Brian May (o guitarrista) e Roger Taylor (baterista) se conhecem – o baixista John Deacon foi o último a subir a bordo. O som de fundo dessa overture é a também fodástica “Somebody To Love”, do disco “A Day At The Races” (1976).

O recorte temporal segue até o tal show para o qual Mercury se prepara nas primeiras cenas. Entre um e outro estão as histórias de seu primeiro e grande amor (hétero), o processo de criação de “Bohemian Rhapsody” (os fãs vão babar), as desavenças entre os membros do grupo e os excessos que levaram o vocalista ao diagnóstico de Aids em um tempo anterior ao coquetel medicamentoso que hoje prolonga a sobrevida dos soropositivos.

Ben Hardy, Gwylin Lee, Joseph Mazello e Rami Malek são Roger Taylor, Bryan May, John Deacon e Freddie Mercury no filme: caracterizações perfeitas

Feitos todos os descontos aos resumos inevitáveis – afinal é preciso fazer caber mais de 20 anos em 2h15 de filme -, Bryan Singer saiu-se muito bem na costura da “colcha de retalhos” formada pelas histórias da história de Freddie Mercury e o Queen. Embora o foco mantenha-se o tempo todo no vocalista, as cenas dão conta de destacar, usando detalhes, as principais características de cada integrante: Taylor é o esquentadinho namorador, May o virtuoso disciplinado e Deacon o quieto conciliador. Todos abertos ao experimentalismo e à ousadia, musical e midiática.

O humor é inglês (adoro!). E como em um autêntico filme de fã, a romantização é a tônica. Por isso a narrativa apenas sobrevoa o lado controverso da personalidade de Mercury – os excessos com álcool, sexo e drogas são sutilmente citados, embora muito bem entendidos – e um pouco de equilíbrio se perde nessa simplificação. O que se sobressai é a grandeza do legado musical de Mercury, o que é legítimo, mas eleva-o a uma dimensão menos humana. E o barato de biografias é justamente humanizar os ídolos, mostrando-os com todos os seus defeitos e qualidades. Aqui o fã é levado a relevá-los.

A  atuação de Rami Malek, vencedor do Oscar de Melhor Ator pelo papel (também levou o Globo de Ouro), é muitíssimo convincente. No entanto, é preciso desculpar o desconforto que ele demonstra, em algumas cenas, com a prótese que usa na boca para reproduzir a dentição pródiga de Mercury.

Todos os atores estão impressionantemente parecidos com os músicos que interpretam. Fizeram direitinho o dever de casa, imitando trejeitos, modo de falar, tocar, movimentar-se no palco…

E a trilha sonora… ah, a trilha sonora!!! É Queen, né?! Ame ou odeie, indiferente  não é possível ficar. Faz o fã sair do cinema direto para o local mais próximo onde possa ouvir os sucessos preferidos da banda no último volume.

Aliás, é o que vou fazer em 3, 2…1.

‘O Conto da Aia’: Distopia factível

Não me lembro de uma obra de ficção ter me amedrontado tão seriamente quanto “O Conto da Aia” (“The Handmaids Tale”). Seu potencial de realidade é cada dia maior nestes tempos, em que assistimos à escalada da intolerância e de discursos autoritários.

Inspirada no livro homônimo da escritora canadense Margareth Atwood, a obra se passa em um futuro próximo distópico, em que os antigos Estados Unidos – renomeado Gilead – são governados por uma teocracia cristã militarizada e autoritária.

Neste regime, as mulheres são subjugadas. Por lei, não têm permissão para trabalhar, possuir propriedades, controlar dinheiro ou até mesmo aprender a ler. Se não são esposas obedientes, tornam-se empregadas – as chamadas Marthas – ou pior: se pertencem à minoria que resta fecunda, em um mundo dominado pela infertilidade, tornam-se aias.

Cruamente falando, as aias são escravas sexuais mantidas pelas famílias da casta superior exclusivamente para gerarem seus filhos. Elas são fecundadas pelo marido em uma espécie de estupro consentido travestido de ritual religioso. Engravidadas, permanecem com a criança que geram até o desmame, antes de serem enviadas para outra família.

A história toda é narrada pelos olhos da aia June Osborn (Elisabeth Moss, de “Mad Men”), renomeada OfFred. Aliás, começa aí, pelo novo nome, a objetificação da figura da aia, que perde seu nome e passa a ser chamada, em cada casa que “serve”, pelo pronome Of (“de”, indicando posse de alguém) acrescido do primeiro nome do senhor que a fecundará. Assim, temos OfJoseph, OfBryan, OfJohn…

June inicia a história na casa do comandante Waterford, que tem um alto posto no regime. Sua mulher, Serena, é uma intelectual que participou da elaboração da nova ordem. Sem saber, no início, em quem confiar, mesmo entre os de sua casta, June tenta sobreviver ao processo de desidentificação, sem saber onde está a filha, que lhe foi tirada de ser escravizada.

Os horrores vão crescendo a cada episódio, mas, ao contrário de quando assistimos um filme de terror, o medo não passa duas horas depois. Fica com você, volta e se intensifica ante os noticiários, que mostram um Donald Trump eleito presidente com discurso xenófobo e ultranacionalista da nação mais potente do mundo e um Bolsonaro preconceituoso e autoritário eleito presidente do Brasil.

Você acredita cada vez mais que, sim, essa distopia é perigosamente possível.

 


Originalmente pelo serviço norte-americano de streaming Hulu, “O Conto da Aia” começou a ser exibida no Brasil em março de 2018, pelo canal pago Paramount Brasil.

A primeira heroína que eu quis ser

Não me lembro quantos anos tinha quando assisti ao primeiro “Star Wars” da minha vida, mas sim o impacto que me causou. Tudo, do roteiro ao visual,  era original e revolucionário, mas nada me deu tanto prazer quanto assistir à personagem princesa Leia – a primeira heroína que eu quis ser!

Naquela década de 1980, eu estava acostumada a assistir mocinhas chorosas e frágeis no cinema e nas novelas.  O máximo de “girl power” a que as garotas de minha geração tinham acesso pela dramaturgia era a Mulher Maravilha da TV – fortona, mas derretida por seu sargento Rogers e usando um uniforme que era puro fetiche para o sexo oposto: maiô decotado, pernas de fora e botas de cano alto e saltos 10 (alguém aí já viu algum super-herói masculino quase mostrando a bunda?).

A princesa Leia era revolucionária total! Como assim uma heroína vestida até o pescoço, que guerreava de igual para igual e lado a lado com os homens e nunca chorava ou pulava no primeiro colo masculino ante uma ameaça?

E o que foi aquela despedida de seu apaixonado Han Solo, prestes a ser congelado e talvez morrer no processo!?! … Nenhuma lágrima e uma declaração de amor sem firulas ou gestos dramáticos. E quando ela vira prisioneira após tentar salvá-lo, até de coleira no pescoço e acorrentada a um monstrengo nojento e babão manda pose de “fodona”!

Hoje entendo porque a princesa Leia foi a primeira heroína com a qual me identifiquei: ela não era feminista simplesmente porque não precisava (aliás, não se vira qualquer tipo de militante por direitos porque se quer, mas porque se é vítima de alguma opressão), mas ai de quem atravessasse seu caminho!

Leia já se sentia, agia e era vista como uma igual pelo sexo oposto. Uma verdadeira “girl power”. Como não querer ser ela?

‘The Post’: registro essencial

Nunca admirei ou tive vontades relacionadas aos Estados Unidos, mas uma inveja eu tenho desses “primos ricos” da América: a forma como sua imprensa resiste às pressões de poderosos e mantém o legado dos fundadores da Constituição para defender a liberdade de expressão – arrisco-me a dizer, o bem mais caro da democracia e sua mais eficiente ferramenta de manutenção.

Ao menos é isso o que nos fazem acreditar filmes como “Todos os Homens do Presidente” (sobre o escândalo Watergate, que culminou na renúncia do presidente Richard Nixon), “O Informante” (que desmascarou a indústria de cigarros); e agora “The Post: A Guerra Secreta”, concorrente em duas categorias do Oscar deste ano (Melhor Filme e Melhor Atriz para… adivinhe… Meryl Streep!).

Como os dois primeiros títulos citados, “The Post” narra uma história real, ambientada nos bastidores da imprensa norte-americana, que opõe um poder muito maior à liberdade de expressão de um veículo de comunicação.

A história começa com o jornal The Times publicando trechos de um relatório confidencial do governo que prova que os cinco presidentes anteriores dos Estados Unidos mentiram sobre a real situação do país na Guerra do Vietnã, que ceifou milhares de vidas de jovens americanos.

Acionado na Justiça pelo governo, sob alegação de ter atentado contra a segurança nacional, o Times é impedido de continuar publicando a história, à qual o The Post também acaba tendo acesso.

Resta à proprietária do The Post – já desacreditada por ser mulher e por ter herdado o negócio em circunstâncias nada ideais – a decisão de publicar ou não a história. Pesam sobre ela o fato de que, na mesma semana, o jornal abria seu capital na bolsa de valores para conseguir sobreviver financeiramente – o que significa que, enquanto empresa, poderia até fechar por insolvência se os bancos o considerassem um “mal negócio”.

Traduzindo: Katherine Graham (Streep) tinha a perder tudo; a ganhar, apenas um subjetivo sentimento de missão cumprida.

Todos sabemos como esta história acaba, até porque, real, está registrada em livros e jornais. Mas retratá-la em filme garante-lhe um alcance exponencial, no que reside uma das grandes missões do cinema: tornar a história verdadeira conhecida pelo maior número possível de pessoas… fazê-la exemplar, eterna.

Desta missão o diretor Steven Spielberg se desincumbe com louvor.

Como cinema, “The Post” não é assim uma obra-prima digna de prêmios, mas faz-se obrigatório de uma forma muito competente e honesta. O que não é pouco. Mais que isso: é essencial!

‘Blade Runner 2049’: uma experiência e tanto!

A primeira coisa que chama a atenção sobre “Blade Runner 2049”, quando ainda se tem o primeiro filme fresco na memória, é a inesperada luz do dia nas primeiras cenas. Um dia nublado, em uma colônia agrícola fria, mas ainda “dia”. Demora um pouco para nos reencontrarmos com a atmosfera noir futurista tão “familiar” do primeiro filme: uma Los Angeles sempre noturna, claustrofóbica, hiper adensada em suas construções de concreto e ferro e imagética porque poluída de letreiros e publicidades holográficas gigantes.

Mas considero esperar uma cópia reeditada do primeiro “Blade Runner” um grande erro dos fãs e receita pra se decepcionar. Por isso meu conselho é que o espectador se liberte totalmente das expectativas relacionadas ao original para apreciar esta sequência, que tem seu valor próprio.

Nela, nosso caçador de androides agora é K., um modelo Nexus 8 de replicante, pertencente a uma linhagem de última geração, que já não tem data definida para “aposentadoria” (leia-se morte) e caracterizada pela obediência. Como o Rick Deckard de Harrison Ford, sua missão é “aposentar” modelos antigos de replicantes, que tornaram-se ilegais. Mas se esta premissa é a mesma, o desenvolvimento a partir daí é bem outro, muito mais denso e elaborado que o do primeiro filme.

Na pele de K., Ryan Reynolds descobre um segredo sem precedentes sobre um certo modelo antigo, desaparecido há três décadas, e recebe de sua chefe na Polícia de Los Angeles (Robin Wright envelhecida, mas ainda uma presença forte na tela) a missão de eliminar todos os seus rastros.

O trabalho implica uma investigação que desperta a atenção de Niander Wallace, herdeiro da Tyrell Corporation, e passará pela busca por Rick Deckard, desaparecido há 30 anos.

Wallace, que ergueu um novo império baseado na agricultura sintétita, não herdou apenas o espólio da falida Tyrell, mas também a síndrome de “Deus” do antigo criador de replicantes, como descobriremos. Um deus cego, porém, o que é uma genial ironia ante toda a simbologia criada pela franquia em torno do olhar – pela pupila se desmascara um replicante, por exemplo.

Não é a única analogia do filme. Se o primeiro evocava o mito da criatura que se rebela contra seu criador, neste temos simbolizada em um androide um anseio humano muito característico deste novo século: a busca sobre si mesmo, suas origens.

E como romance não pode faltar, o de K. é um simulacro, que pode ser considerado uma metáfora das relações fluídas deste século de solidão coletiva forjada pelo fenômeno das redes sociais.

Há muitas outras por todo o filme, mas detalhar mais implicaria spoilers. As interpretações acima não comprometem em nada todas as surpresas que se tem ao longo de quase 3h de filme, que se passam sem nenhum tédio.

A imersão recebe uma grande ajuda da trilha sonora, que quase nem deve ser chamada assim, já que os sons que acompanham toda a história parecem-se muito pouco com música. O tempo todo ouvimos um barulho desconfortável, como de máquinas “gritando” – se máquinas pudessem fazê-lo.

O francês Dennis Villeneuve cuida muito bem do legado de Ridley Scott e entrega um filme, em minha opinião, muito superior ao original de 1982. Não só a história, mas efeitos, direção de arte – esta então bem menos confusa – também funcionam muito melhor, sem, no entanto, roubarem as cenas. A história é a estrela e isso é muito bom!