Categoria: Delírios de Matilde

Crônicas da jornalista e escritora Matilde Leone.

Um Ângelo de Jesus

Um homem tentou invadir a entrada principal do Palácio do Planalto.

A manchete é antiga. Mas ficou gravada. Os jornais, os sites e blogs remetem a um terrorista, munido de fuzil e granadas para passar por cima de quem quer que encontrasse pela frente, disposto a chegar ao gabinete presidencial e fazer sabe-se lá o quê com o presidente.

Um atentado? Jogar uma bomba? Nada disso. A cena era outra.

O que queria o  lavrador baiano Ângelo de Jesus, de Pindobaçu, nas salas refrigeradas do Palácio? Que mal poderia fazer um Ângelo, ainda mais de Jesus, ao presidente popular, a não ser pedir socorro, como pediu ao ser dominado pelos seguranças bem nutridos, no chão e algemado como mostra a foto? “Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo.

De qualquer forma, entrando ou não na sala do presidente, seu pedido seria de socorro. Um homem que se aporta da Serra das Esmeraldas até Brasília e passa quatro dias sem comer para falar com o chefe da nação só pode estar em desespero. O desespero que ainda se avizinha de milhões de brasileiros diariamente, desempregados, subempregados, assistindo aos desmandos e à indiferença oficial, ao desvio de dinheiro público, às obras abandonadas de estradas, escolas e hospitais, enquanto nos ambulatórios superlotados de doentes e lamentos  os médicos não sabem a quem socorrer primeiro, a quem escolher para viver.


“Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo


Por que um lavrador estava há quatro dias sem comer? Justo um lavrador, um homem que aduba a terra, planta e reza para a seca não matar e sobrar um saco de feijão para alimentar a família durante o ano?

Alguma alma boa, um bombeiro talvez (os bombeiros têm alma boa), deve ter dado a ele um prato de comida, um sanduíche algum pão com ou sem manteiga….

Será que deram? Prefiro pensar que sim. E um copo d’água. A reportagem não diz.

Os jornais não contaram a história de Ângelo de Jesus, aquela bela matéria de interesse humano, com uma trajetória comum a todos os pobres e esquecidos nos rincões de norte a sul, ainda mais esquecidos nos nordestes.

Não. Foi só um fait divers. Quem se importa com a vida de Ângelo? Quem se importa com o Brasil?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Madame Guilbert

Obra ‘Madame Guilbert Gants Noir’, de Henri de Toulouse-Lautrec

Madame Guilbert sempre me emocionou. Talvez não seja uma das principais obras de Toulouse Lautrec, mas é a que mais toca meu coração. O que tem ela de especial? Nada para alguns olhares. Muito para outros.

Fico imaginando como ela, cantora famosa gravitava naquele ambiente repleto de sensualidade ou de promiscuidade, não sei, ao lado de outras damas, as que passavam a noite à espera de clientes para garantir a vida na Paris, quase na virada para o século XX – cansadas de se deitarem com tantos senhores com cheiro nauseante de bebida e fígado empedrado – atravessando as noites maçantes como são em todos os lugares do mundo, à espera de mais um dia.

No Moulin Rouge, em Montmartre, a figura triste de Lautrec emana solidão e abandono e suas obras não poderiam ser diferentes, pois perpetuou imagens difusas, como se as captasse através de um espelho embaçado ou de uma névoa que encobria a verdadeira face daquela suposta alegria. Paris era uma festa? E nesse ambiente, em sua obsessão em retratar o irretratável como se a alma de cada uma já estivesse pronta em sua paleta de cores borradas, o artista quase anão, quase deformado, embebido em absinto, registrou a solidão que hoje nos encanta. Os bordeis parisienses foram a casa de Lautrec, convivendo com aquelas mulheres que me parecem tão distraídas em suas poses meio desleixadas diante de um homem triste e sem amor, olhares absortos que atravessam os séculos e ocupam as grandes galerias de arte do mundo.

Pintura de 1894 de Toulouse-Lautrec

Voltemos a madame Guilbert, minha preferida. Também gosto de Jane Avril, dançarina de can-can e La Goulue, no famoso cartaz de Lautrec, ao lado do parceiro Valentin, e todas as telas dele. Mas, madame Guilbert me intriga. Ela, me parece, tinha o olhar perspicaz, olhando ao redor com um meio sorriso cerrado nos lábios, como se analisasse com agudeza aquele ambiente mundano,na Belle Époque, ela diferente da Grande Maria recostada displicente em uma poltrona exibindo sua nudez sem erotismo, como se nada no mundo lhe interessasse.

Para aonde foi madame Guilbert depois das telas de Lautrec? Quero saber mais sobre ela, se viveu grandes amores, se teve filhos, se morreu pobre ou se amealhou fortuna… Um fato ao menos eu conheço. Ela foi sepultada no famoso cemitério Père -Lachaise, em Paris, onde repousam famosos como Honorè Du Balzac, Oscar Wilde, Maria Callas, Isadora Duncan, Allan Kardec e Jim Morrison, só para citar alguns.

Ah, madame Yvette Guilbert, queria tê-la conhecido! O que você diria desses meus delírios sobre as noites encarceradas nos quadros de Lautrec? Em meus delírios, vejo e ouço madame Guilbert cantando La Passion Du Doux Jesus ou Quand Vous Aime, em seu vestido decotado e luvas pretas de cetim até os cotovelos, sendo aplaudida nos vários palcos por onde brilhou. Vocês sabem… eu deliro mesmo.

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

O Testamento

Quando Teresa Maia morreu, afetada por uma dor no peito, os parentes, ainda no velório, começaram a pensar nos bens que ela poderia ter deixado. Viúva, mãe de quatro filhos, Teresa tinha um modo de vida confortável, amparado pela aposentadoria deixada pelo marido, engenheiro de uma grande empreiteira, e pelos trabalhos de pintura em porcelanas para uma loja de louças finas, uma arte cultivada desde a mocidade. Sempre que os filhos precisavam – e precisavam cada vez mais – estava pronta para assinar um cheque. Pouco sabiam sobre sua vida. Apenas que nunca votara em partido de esquerda, ao contrário deles, defensores ferrenhos de programas sociais. Nunca perguntaram sobre sua vida, sua história, seus anseios. Mas… quem sabe sobre a vida dos pais? Como se conheceram, onde nasceram? A história dos pais pouco interessa aos filhos, netos e afins.

Teresa Maia era uma mulher bonita. O tempo não causara muitos danos ao seu corpo. E ali, de mãos cruzadas sobre o peito, livre de estresse, deitada para sempre em um leito que não escolhera, estava mais jovem que seus 60 anos poderiam aparentar. Parecia segurar um leve sorriso, um tanto sarcástico. Conversa vai, conversa vem, os filhos souberam que ela havia deixado um testamento.

Um testamento? Teria ela acumulado bens sem que soubéssemos? – perguntaram- se os filhos. E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um. O mais novo, anteviu suas dívidas amortecidas, quem sabe saldadas, a compra de um carro novo e uma viagem ao Havaí, seu sonho de adolescente. Os outros também faziam planos mentalmente enquanto olhavam o rosto inerte da mãe, como se a pedir desculpas pelos pensamentos torpes àquela hora tão triste.


“E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um”


Tudo acabado, voltaram para casa à espera de um chamado. Nada. Passaram-se os dias e resolveram entrar em contato com o advogado que, solícito, desculpou-se pelo atraso e foi logo marcando o encontro em seu escritório.

Aquela era a hora mais esperada. Todos sentados, bem vestidos como pede a ocasião, aparentavam um ar blasé, como se nada de material lhes interessasse, como se a saudade da mãe embotasse qualquer resquício de pensamento materialista. Em segredo, a passagem para o Havaí com uma esticada por outras ilhas exóticas já estava até reservada, e nas outras cabeças amorosas os planos já tomavam formas exatas.

E veio a leitura. Silêncio que a hora é sagrada. Primeiro, o extrato bancário de Teresa Maia, que fez engasgar todos os quatro de um vez: muito dinheiro. Depois, os imóveis. Outro susto.

Como ela pôde esconder tudo isso de nós? – pensaram ao mesmo tempo. Finalmente, o desfecho: “Meus filhos, sei que me amaram de todo o coração e sou grata a todos. Penso que dinheiro e bens não pagam o amor de ninguém. Mesmo assim, deixo para vocês quatro, 5% do meu patrimônio. Sei que não vão se importar, pois sempre os vi e ouvi defendendo ideias e pensamentos de esquerda, contrários ao capitalismo selvagem, esse que torna os seres humanos tão mesquinhos. Portanto, comunico que os outros 95% serão empregados em uma causa nobre, ou seja: para entidades beneficentes, cujos nomes estão com meu advogado. Ah, não se esqueçam de pagar pelos serviços dele e continuem com seus nobres ideais. Um beijo de sua amada mãe”.

PS: Façam bom proveito.”

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.