Categoria: COLABORAÇÕES

Textos de cronistas convidados do blog.

Joana, que é como Patrícia, que fez como Ana

* DANIELA ANTUNES

Patrícia conheceu Josivaldo aos 13 anos. Aos 14, pegou barriga. Josivaldo era mais velho, sabia o que era criar um filho, coisa de boneca para a menina – poderia ter brincado mais de mamãe e filhinha antes de pular para o papai e mamãe.

Ela ficou sozinha. Para a família, sabia muito bem o que estava fazendo. Deixou a escola e passou a cuidar a seu modo da criança, a quem deu o nome de Joana.

Agora, é Joana quem tem 14 anos. Já não mora com a mãe e os três irmãos que nasceram depois dela. Aliás, nenhum deles mora com Patrícia, que vai parir pela quinta vez sem nunca ter dado conta nem da primeira cria. Esta, a Joana, saiu de casa faz tempo. Vive com o marido de 49 anos.

Patrícia mora de favor, na casa de uma amiga de sua mãe, a Valdete.

Valdete vive com sua companheira (e Patrícia, grávida, como hóspede). Bate no peito e diz orgulhosa que tem a guarda definitiva de uma das crianças que Patrícia colocou no mundo em 15 anos de gestações bem-sucedidas e não-planejadas.

O menino, “tudo para mim”, ela garante, mora com a mãe de Valdete, em uma pequena cidade da região. O moleque, garante, é a “vida” dela, uma paixão mesmo. Valdete mira agora no novo bebê de Patrícia. Está providenciando a papelada da guarda. Ela e a companheira querem a criança a todo custo. Está feliz, emprenhada em construir família.

E então, discursa:

“Eu acho que para colocar criança no mundo a pessoa tem que ter estrutura. Eu, por exemplo, tenho meu carro, meu serviço, minha casa, que é alugada, mas eu pago, então é minha. Eu vou ver laqueadura para ela [a Patrícia] porque não pode ficar botando filho assim no mundo não”.

A plateia encostada no balcão, assente com a cabeça, esperando o próximo ato.

“E você e sua companheira concordam nessa questão da adoção, de constituir família?” – pergunta alguém da assistência.

Valdete mata no peito: “Agora vou ver esse negócio da criança [a guarda]. Eu e a minha companheira queremos muito. Primeiro vou organizar isso. Meu sonho é ser mãe, eu sempre quis. Então tenho o moleque, vou pegar esse outro e já estou fazendo um orçamento para ver quanto custa a inseminação, porque eu quero ter um meu”.

A plateia assentiu. Atônita, mas encerrou a prosa.

PS1: Joana também está grávida do primeiro filho. A plateia protestou, falou que era estupro presumido. Valdete franziu a testa, afrouxou o lábio, baixou o queixo e botou a mão na cintura: “ah, é nada, ela sabe o que ela quer, ela que quis, não tem nada de estupro ali não”.

PS 2: A mãe de Patrícia também teve o primeiro filho aos 15 anos.

PS 3: Os nomes são fictícios, os fatos são reais. Reais até demais.

 

(*) Daniela Antunes é jornalista, exímia assessora de imprensa e uma das pessoas
mais espirituosas que conheço


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

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As Sensações de Inhotim

MARIANGELA GUMERATO *

Depois de me surpreender com a estrutura de primeiro mundo do Instituto Inhotim, veio um banho de água fria com a notícia do desvio do dinheiro doado para o empreendimento que se transformou no maior museu de arte contemporânea a céu aberto do mundo. Segundo o Ministério Público, um fundo estrangeiro fez uma doação milionária, de 95 milhões de dólares, que teriam sido usados em outras empresas do setor de metalurgia que pertenciam ao fundador de Inhotim.

O público que visita esse patrimônio cultural no município de Brumadinho, perto de Belo Horizonte, fica encantado com a arte no meio de imensos jardins cercados de lagos e plantas de inúmeras espécies.

Quem conhece museus fora do país sabe que Inhotim é de nível incomparável até com os maiores museus de arte contemporânea. O fato de ter dezenas de galerias espalhadas entre 110 hectares de uma antiga fazenda faz de Inhotim um lugar único e que orgulha seus frequentadores.

Grandes nomes da arte contemporânea nacional e internacional ganharam espaço para mostrar suas elocubrações, e quem está aberto às reflexões entra na viagem da proposta artística.

Um curador de museus da Itália conheceu Inhotim, recentemente, e teria achado o espaço o resultado de muita ostentação. Como um lugar tão maravilhoso, bem cuidado, no meio da natureza exuberante, sobrevive num país tão miserável como o Brasil?

Vermelho ou verde para Bernardo Paz, o criador de Inhotim?

Como em uma das instalações do parque, o vermelho é a cor preferida do artista que fez a casa da cor do sangue. E hoje, nela, jorram lágrimas no cômodo obscuro.

A beleza que comove contrasta com o pisar literalmente em cacos de vidro, a obra do artista da grande bola de plástico num campo de concentração.

Melhor se jogar na rede colorida ouvindo Jimi Hendrix e se alienar em uma das salas do prédio de Hélio Oiticica, que procurou reproduzir o efeito da cocaína na mente.

O visitante entra em um conto de fadas, passa por um jardim de ervas em forma de mandala, pelo vandário de orquídeas e, no meio da floresta, encontra um banquete de velas acesas na grande mesa.

Dentro do prédio moderno com espelho de água se depara com a parede de azulejo quebrado com as vísceras expostas como se tivessem sido cortadas na própria pele.

Outro paradoxo é o trator de rodas gigantes enlameadas dentro de um domo geodésico, carregando uma árvore branca. Seria um pedido de paz pelo desmatamento?

No alto do morro um artista ousou fincar estacas de ferro numa poço de concreto, que dá um clima de Blader Runner.

O som da terra se transformou numa inusitada instalação no ponto mais alto, a 1300 m de altitude – uma sensação extrasensorial que lembra o Om, o primeiro som do universo. Silêncio total na redoma de vidro para deixar o clamor ecoar.

O carrinho elétrico percorre as alamedas de um ponto ao outro, mas é preciso caminhar, descobrir as outras surpresas que mexem com todos os sentidos.

São mais de 500 obras. Não dá para descrever cada uma delas e o que elas provocam no expectador.

Apesar da denúncia de desvio de verbas, tão corriqueiro no Brasil, parece que Inhotim vai continuar aberto. Quem ainda não viu esse paraíso, não deixe de ir. Inhotim devia estar no livro “Mil lugares para conhecer antes de morrer”.

 

(*) Mariangela Gumerato é jornalista, entusiasta cultural, amiga
querida e palavreira destemida


 

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Vício inerente

REGIS MARTINS

Chet Baker was a gifted trumpeter and jazz icon.

Estava eu pensando sobre o que escrever para os leitores do Palavreira, quando dia desses assisti a um filme baseado na vida do trumpetista Chet Baker (1929-1988), com o Ethan Hawke no papel principal. O título é muito bom – “Born to Be Blue” – nome de uma das canções mais famosas do jazzista, mas o longa em si não tem nada de excepcional. Apenas correto.

O fato é que Chet era um talento raro e, galã, foi considerado o James Dean do jazz. Tinha o mundo aos seus pés, porém, era um junkie inveterado e deixou um rastro de destruição por causa do vício.

Todo mundo tenta ajudar o cara, mas é um caso perdido. Na verdade, o que me chama a atenção nisso tudo, e até me assusta, é o tipo de autoconsciência de certos viciados.

São pessoas carismáticas e inteligentes que, conhecendo bem sua natureza, sabem que não vão sobreviver sem a droga. E vão se autodestruindo lentamente, numa grande valsa do adeus.

No começo do filme, sua namorada quer saber o motivo de um cara como ele se tornar um viciado. “Problema com os pais?”, ela pergunta.

“Não, nada disso”, responde Chet/Hawke e emenda: “É porque eu gosto de ficar doidão”.

Bom, essa é basicamente a resposta para um grande enigma do universo. As pessoas se drogam/fumam/bebem/comem/apostam em excessos porque gostam. A compulsão é uma velha amiga nossa.

A questão é: qual o limite?

Nos filmes “Ninfomaníaca 1 e 2” do dinamarquês Lars Von Trier, o diretor usa o sexo para tratar desse tema espinhoso que é o vício. Em dado momento, a personagem principal, Joe, vai participar de uma terapia em grupo e, de repente, se dá conta de que aquilo tudo não vai ajudá-la em nada. Simplesmente porque o vício faz parte de sua natureza. A busca pela cura era como uma negação de si própria. No final das contas, Joe aceita sua situação, a “fratura” que compõe sua alma, consciente de suas consequências.

Chet tinha consciência também, e pagou caro por isso. Devastado pelas drogas, morreu sozinho em Amsterdã, aos 58 anos, depois de “despencar” da janela de seu apartamento.

Reconhecer nossos demônios é um grande passo. Sobreviver a eles são outros quinhentos. E segue o barco!

 

(*) Regis Martins
Jornalista, músico, pai da Marina, avô da Helena e ‘palavreiro’
cultural de mão cheia


 

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Velho telefone mudo

LUÍS FERNANDO LARANJEIRA *

Há muito aquela casa já não era mais minha, apesar da herança. Foi lá que nasci, cresci e dela saí com o firme propósito de nunca mais voltar. Durante muitos anos fui “visita” naquele imóvel construído com tanto sacrifício por meu pai, resultado de todas as suas economias, primeiro pra comprar o terreno, depois pra levantar quarto e sala e ir aumentando conforme minha irmã e eu crescíamos.

Um quarto pra ela que, mais velha, não gostou nada de dividi-lo comigo quando eu, ainda pequeno, não tinha mais espaço no berço que herdei dela própria. Um quarto pra mim quando comecei a crescer e já não dava mais pra dividir com uma menina. Tempos depois, minha mãe quis aumentar a cozinha e desfrutar de uma copa. Ruim pra mim que perdi uma parte do quintal onde, tantas vezes, sozinho, minha imaginação criou um campo de futebol, pista de atletismo, florestas, desertos, onde montava o forte apache – os índios sempre ganhavam as batalhas. Ali, vivi inúmeras aventuras na minha então cabeça tão criativa.

Hoje, um cinquentão, meio jornalista, meio professor e desejando ser artista, sinto falta de tamanha imaginação e capacidade de criar ambientes que, na minha cabeça sonhadora de moleque pobre do interior, criava num pequeno espaço cimentado cercado pelos muros das casas do seu Otacílio e do seu Jurandir e a parede da casa do seu Waldemar. Ali era meu mundo. Um mundo povoado também pelo Céca ou Séca, um vira-latas que eu levava pra passear todas as tardes e foi um inseparável companheiro na infância; e, posteriormente, pelos gatos Simone, Nego, Zacarias, Menina, Bola.

Fora de meu território, havia as brincadeiras na rua com os moleques da vizinhança. Bicicleta, gol a caixão, bolinha de gude, bafo, bets, soldado e ladrão, pipa, carrinho de rolimã, mana mula, jogo de botão, horas e horas de conversas jogadas fora sob a sombra da árvore em frente à casa de seu Otacílio. Isso sem contar que todos os terrenos próximos eram impecavelmente roçados e limpos para nossos jogos de futebol.

Mais tarde, passei a ocupar também um canto da sala, junto à sonata. Ali, eu fazia a programação musical e noticiosa de minha emissora de rádio imaginária. Meu pai gostava de ler o Diário da Noite ou a Folha da Tarde e era desses jornais que eu tirava a pauta do meu programa jornalístico, sempre mesclado com muita música e até uns efeitos sonoros. Eu era pauteiro, contrarregra, âncora, repórter, redator e editor ao mesmo tempo. E fazia também rádio escuta com o ouvido colado no radinho de pilha que meu pai utilizava pra ouvir os jogos da Ferroviária e do Corinthians.

A chegada, finalmente, do telefone coincidiu com minha entrada na adolescência. As prioridades e interesses foram mudando. Novas amizades, as primeiras paixões, novas fantasias. Horas trancado no banheiro. E o telefone passou a ser item obrigatório, de primeira necessidade. A expectativa pelo toque, esperando pra um papo-cabeça com algum amigo ou as palavras doces da namoradinha de então.

Está lá até hoje o telefone, no mesmo lugar. O mesmo aparelho, feio, pesado, daqueles de discar, de cor gelo desgastada pelo tempo. Quantas recordações. Quantas conversas. Quantas articulações e mobilização pela revolução, quantas declarações de amor. Até brigas.

Agora, tantos anos depois, no retorno àquela casa que tão pouco mudou, carregando uns cabides, caixas de sapato e de livros e CDs, me pego observando o que restou do quintal, as velhas portas, o corredor que já me pareceu imenso, o antigo quarto; e sofro por não conseguir me lembrar de tantos outros momentos, tantas outras coisas e acontecimentos que foram marcantes, alegres. Alguns tristes também. Quantos sonhos, planos, decepções. Aos poucos, volto a me sentir bem nesta casa.

Me pego caminhando a esmo pelos aposentos tão conhecidos. Paro, observo as maçanetas já um tanto enferrujadas, as velhas torneiras, antigos móveis, os cantos onde me aninhava ou gostava de ficar sonhando ou escrevendo minhas primeiras mal traçadas linhas ou ouvindo velhos discos. A cozinha me traz de volta minha mãe preparando a comida e me dando dicas de como fazer esse ou aquele prato; alguns, até me arrisco a fazer hoje e chego a receber elogios pelo sabor, tempero ou textura.

Vejo-me envolto em recordações e fazendo novos planos. Às vezes, baixa em mim o garoto sonhador que, como Cazuza, queria mudar o mundo ou viajar sem rumo, apenas pra conhecer novos lugares e pessoas, ouvir histórias e contar as minhas. São boas tais recordações, me trazem sentimentos e emoções há muitos esquecidos, que pensava até já ter perdido. Em determinados momentos, a sensação é de estar flutuando nessa velha casa, flanando descompromissado. Mas também sonho e tento projetar o que pode vir a ser o futuro.

Só o que me entristece é que aquele velho telefone que já foi tão importante, tão cheio de significados, não toca mais. Está mudo.

 

(*) Luís Fernando Laranjeira
Jornalista, professor, piadista, anfitrião caloroso, pai do Vitor e do Thiago e
“companheiro de trincheiras”


 

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Nem Shakespeare

Deputados votam denúncia da PGR contra Michel Temer e ministros (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Mais uma peça do teatro insano que se chama política brasileira tomou os horários das emissoras de TV. Tudo bem ensaiado e os atores não precisaram nem da coxia para dar as deixas. Mas isso não é novo para ninguém, e por ser tão previsível, nos humilha.

Isso, humilhação! Esse é o sentimento que se apodera de nós a cada vez que assistimos a um espetáculo mambembe de atores medíocres, textos decorados e o dinheiro da plateia já distribuído pelo diretor e guardado nas malas.

Vivemos de golpes, roteiros que vão mudando conforme a peça se desenrola, mal escritos, certamente por nenhum Shakespeare, mas coalhado de traidores tão cruéis, que nem ele, o Bardo de Avon, poderia imaginar.

Então, onde estamos mesmo? Ah! No Brasil. Aliás, nos Brasis, pois por ser tão grande e confuso se divide em escalas de tragédias e desníveis, formando um aglomerado de estupefações, perdido entre três poderes que mais parecem um só ou nenhum, mancomunados, cada qual salvando sua pele com descaramento e perfídias, escondendo a sujeira debaixo do tapete ou em bancos da Suíça.

Vamos ao teatro. Muitos não gostam de dividir o palco e esticaram suas falas além do necessário, levantando bordões de amor à pátria.

Desnecessário.

A peça acabou e poucos aplaudiram. Quem esperou pacientemente todos os atos talvez tivesse a esperança de que alguns atores se confundissem e trocassem o texto, o sim pelo não. Mas, embora pífios, são experientes, macacos velhos na artimanha de representar e têm muito tempo para decorar.

Outra grande obra está sendo escrita. Grande no mau sentido. Logo vai estrear. Não é de graça, mas não percam. Afinal, todos nós já pagamos pelo o ingresso. E muito caro.

Fora da Caixa (*para a Rosana)

CARMEN CAGNO **

Íamos os três apertados no banco da frente do Gordine. Eu no meio, meu amor dirigindo e o amigo poeta do outro lado. Abraçados, cantávamos alguma coisa do João Gilberto. E mais uma vez transgredíamos. Minha família proibira aquele namoro fora da caixa. Afinal, ele era músico e nem de longe se assemelhava a um dos inúmeros “bons moços” indicados para uma adolescente burguesinha.

Eu devia ter 16, 17 anos e desde que me lembrava sempre estivera fora da caixa.

O que não dava pra explicar aos que estavam do lado de dentro era a felicidade, a liberdade daqueles dias. Amávamos intensamente, descobríamos o desejo a cada minuto, nos perdíamos em poesia, encontros musicais e corríamos num raro fio de sensibilidade e encantamento.

Eu escrevia versos nos guardanapos de papel em cada um dos barzinhos que frequentávamos religiosamente, inaugurando a sagrada devoção à boemia. Noites inteiras de papo, música, trocas, laços cada vez mais apertados.

Esses eram nossos rituais sagrados. Desistira da religião havia alguns anos, desde que minha avozinha querida e profundamente crente não conseguira me explicar por que eu devia me enfiar num confessionário semanalmente para falar de pecados que não tinha. Por que não podia me entender diretamente com aquele Deus tão onipresente.

Compor músicas, entregar-me sem culpa ao desejo que pulsava, cultivar com carinho cada pequeno pedaço de afeto. Tínhamos uma alma limpinha e ainda não havíamos experimentado as dores de sermos tão humanos.

Isso foi antes da política, da ida pra cidade grande, do fecundo percurso profissional, da independência, da formação intelectual, da repressão política, das passeatas aos gritos de liberdade, dos amigos mortos e torturados, do mergulho em outros amores, da vida que continuaria pulsando e me entregando presentes cada vez mais valiosos – para o bem e para o mal.

O caminho tortuoso, cheio de surpresas e descobertas, foi uma escolha natural, orgânica, sem a segurança previsível dos que seguiam pela estrada principal – aquela asfaltada, reta, certeira, povoada  de setas e avisos, com destino conhecido. Mergulhar para dentro da vida sem paraquedas era criar asas cada vez mais poderosas; era o frio na barriga e, às vezes, um tombo cheio de arranhões e cicatrizes. Mas nada nesse mundo valia a emoção  do voo. Nada descrevia a sensação de planar e descobrir paisagens.

Hoje eu olho pra trás e abençoo essa narrativa que tem contado minha vida. Na maioria dos capítulos continuo a construir uma história meio na contramão. E agradeço diariamente por esse privilégio quando olho pra minha filha e me orgulho do que vejo; quando abraço meus amigos que percorreram esses caminhos; quando me entrego a um amor com a inocência e a inteireza que sentia no banco da frente do Gordine, há mil anos atrás.

 

Carmen Cagno
Jornalista, escritora, professora brilhante, palavreira incomparável
e amiga querida da vida toda


 

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O Grande Costureiro

Sempre quis ter um vestido da Maison Dior. Ou de Armani, mais minimalista, cores sóbrias e de uma elegância sem par. Os da Dior ou Channel povoam os sonhos femininos talvez mais pelo charme da griffe, pelos modelos desfilados no tapete vermelho da premiação do Oscar, usados por mulheres deslumbrantes, aquelas roupas esvoaçantes de tecidos exclusivos. Seda pura, brocados, transparências…É como se usando um vestido daqueles qualquer mulher se transformasse numa diva. Coisas de mulher, diriam, mas conheço muitos homens também cobiçando ternos e modelitos dos atores. Essa é outra história. Homem bem vestido é o must.

Estou falando de costura? Sim. Um ofício delicado, sob medida, que não é para qualquer um. É preciso ter o dom. Nas provas, tira um pouquinho desse lado, aumenta um centímetro na manga, abaixa um pouco o decote e, assim, a peça vai se moldando ao corpo como um segundo eu, e as escolhas dizem muito sobre quem veste, dizem os psicólogos. Uma arte, na verdade. Mas, um pouco em extinção, assim como a dos alfaiates que tiveram de se render aos ternos prêt-à-porter, nem sempre de boa qualidade, feitos em séries, sem personalidade.

Bem, o que me fez pensar em costura foi quem? Isso mesmo: Michel Temer. Olha, vamos nós engolindo o descaramento noticiado sem escrúpulos, abertamente, escancaradamente, o que me faz lembrar um dito popular: “Os cães ladram e a caravana passa”. É isso. A caravana passa e nem latimos mais, pois nada consegue deter os passos desses homens de ternos bem feitos, barrigas de cerveja e cabelos tingidos de acaju.

Não há como tirar o mérito do grande costureiro Temer. Ele é meticuloso, paciencioso, conhece as medidas de seus clientes como ninguém. Primeiro faz o molde, corta, alfineta e alinhava com perfeição. E vai para a prova. Se ficar um pouco largo, nada que uma boa alfinetada – ui, desculpe, foi sem querer – não resolva. Afinal, quem gosta de alfinetes perfurando a pele?

E então, ele parte para a obra final: costura, pedala, costura noite adentro para dar tempo de vestir a todos com perfeição e levar o troféu. Incrível como ele consegue uma nova roupagem até para quem não estava mais escalado para o desfile. Como esse mineiro tão bonito vai ficar de fora? Não, não vai não! Ele mesmo, o estilista em pessoa, dispensando os ajudantes, comanda sozinho o atelier e resolve rapidamente o equívoco. E nós – ah, nós! – assistimos ao show macabro, desejando que todos tropecem na passarela sob os flashes, de preferência do Weber Sian. É o que nos resta. Ou não?

solidão

THIAGO ROQUE *

os vizinhos não sabem dizer quando começou.
gostam da solidão. velhinha quieta, na dela, faz mal pra ninguém.
anda pra cima e pra baixo com uma dessas ecobags.
o que encontra, coloca na sacola. e leva pra casa.
garrafa pet, lata de alumínio, cafuné na cabeça.
sapato velho, risada vencida, papelão.
alegria rasgada, bola furada, pente quebrado.
cabe na sacola? entra sem pedir licença – na sacola, na casa, na vida da solidão.
não demorou para o sobradinho virar um amontoado de objetos.
objetos que você olha. que você sente.
tudo sujo, sem brilho, com validade vencida.
tudo dado por vencido.
no começo, solidão até tinha um espacinho pra cada item.
na caixa vermelha, por exemplo, guarda os cumprimentos.
muitos deles gritados, sinceros, motivo de orgulho.
abria aquela caixa todos os dias, num ritual quase cristão – com direito a sinal-da-cruz.
vieram mais objetos. mais caixas.
mais.
ah, as caixas da solidão…
cores, tamanhos, conteúdos. guardam tudo – até um pouco de vida.
afinal, o que ia pra caixa era o que se perdia na cabeça e já não cabia mais no coração.
com o tempo, tudo foi desbotando.
caixa, cumprimentos, sinal-da-cruz.
ganharam aquele tom borrado da paleta esquecimento.
tão fora de moda…
quando solidão se dá conta, está tudo junto, dividindo caixas e angústias.
parece tudo um desespero organizado.
um desespero só.
de cartão de visita a memórias.
de disco antigo a desprezo.
de bem-querer a revistinha de horóscopo.
aliás, solidão é de libra.
do signo a velhinha corpulenta lembra.
quer dizer, lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
por isso, guardava tudo.
para lembrar. para tentar lembrar.
para que fossem lembrados.
o primeiro beijo, a primeira camiseta dos stones, o primeiro amor, o primeiro filho.
muitos primeiros. vagas lembranças.
ora, devem estar pela casa. onde? nas caixas – onde mais?
não podem morrer. não podem subir na boleia do tempo e partir sem olhar pra trás.
não podem. não.
mas, com frequência, acontece.
então, solidão vai para as ruas encontrá-los de novos.
de sentimentos a sachê de mostarda.
amarelos feito as caixas dos documentos.
ou ficam na caixa marrom?
lembra, esquece, lembra, torna a esquecer.
mas não reconhece nada. ninguém.
tudo parece estranho. tudo parece diferente. tudo parece frio demais.
mas sabe que tem algo ali. é questão de lembrar. é questão de viver.
e, assim, a sacola se enche.
muitas vezes, solidão precisa das duas mãos para dar conta do peso de seu destino.
sim, o fardo é pesado. ela não liga.
evita pedir ajuda. as pessoas não entendem porque precisa de tudo aquilo.
não entendem o que é segurar nas mãos algo que perdeu lá atrás – e continuar incompleta.
procurar, em cada lápis, cada latinha, cada fagulha de sofrer, uma peça do quebra-cabeça.
em casa, parte da sacola vai para as caixas da solidão.
parte se esconde pelo chão, aos olhos de quem prefere não ver.
parte se recusa a deixar a sacola.
sabe que será outro no dia seguinte.
sabe que será essencial. que solidão vai precisar.
e ela sempre precisa.
e sempre sorri quando enconta algo.
revira lixo. pega algo. sorri. põe na sacola.
ajoelha. limpa algo. sorri. põe na sacola.
folheia o jornal. vê algo. sorri. põe na sacola.
solidão também acumula sorrisos.
por isso que todo mundo gosta da solidão.
velhinha sorridente…
parece sempre estar de bom humor.
talvez esteja.

 

(*) Thiago Roque
Jornalista e palavreiro sofisticado, tenta escrever um livro há mais de 15
anos – quem sabe agora…


 

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A arte, essa estranha arte

Em que pesem – e muito – os comentários nem sempre elegantes sobre as mais recentes exposições nos museus e galerias de arte no Brasil, e por mais estranho que pareça, vejo um lado positivo. Não sou Pollyana, mas estou aprendendo a medir os fatos da vida em algum ponto entre o oito e o oitenta.

A discussão infindável nas redes, com argumentos até grosseiros de um lado, e outros tentando explicar, que digamos, é inexplicável, mostrou a que veio a arte. Arte é reflexão e não enfeite de parede combinando com móveis e tapetes.

Acho que pessoas que jamais se interessaram por arte, são as que mais postam comentários exacerbados, condenando as performances, quadros e idéias de anos e até séculos atrás. Podem não gostar, não entender,condenar – isso é um direito – mas não precisa ofender.

E o interessante são os argumentos, dos dois lados, de quem acusa e de quem defende, palavras duras, levadas para o lado pessoal, criando até inimizades e ligando os defensores ao esquerdismo. Ainda não encontrei esse ponto de encontro.

E penso que, apesar de algumas exposições terem se encerrado em função da pressão dos internautas e deputados que propõem tortura, o sentimento e as ideias do artista eternizadas na tela atingiram camadas que, por mais indignados que estejam, não podem deixar de refletir, lá no âmago: que negócio estranho é esse?

Parece que ninguém nunca viu ou ouviu falar nas esculturas que enfeitam praças e obeliscos pelo mundo afora, os registros de figuras nas cavernas e abrigos pré-históricos. Elas estão nos livros, nas páginas de história e não me lembro de ver questionada a liberdade de criá-las a não ser nos regimes fascistas, o que é melhor esquecer.

Estamos discutindo arte, conversando, o que é quase inédito num país que pouco preserva sua história e vivia em silêncio antes do espaço aberto pelas redes sociais. A conversa foi parar nos programas de televisão, no face, no Twitter, no Whats,  virou pauta, e isso me parece bom, pois nos dá a oportunidade de ouvir, comparar, concordar, discordar, aceitar, ou repelir.  Apesar do clima muitas vezes desconfortável, estamos falando de arte, essa desconhecida por muitos, e que agora, ainda que de forma estranha, começa a fazer parte de nosso olhar.

E assim, vamos conhecendo melhor o mundo como ele é – cheio de diversidades, opiniões, sentimentos – e não como gostaríamos que fosse, um mundinho particular, só nosso, cultivado entre as paredes de casa.

Quando as pessoas eram mais iguais

BLANCHE AMÂNCIO *

Nasci numa cidadezinha que amei – e amor não acaba. Pelo menos não deveria. Auriflama era um lugar onde todo mundo conhecia todo mundo, e disso já se conclui que, como seres humanos que somos, aquilo parecia uma grande família italiana.

Nos anos 1950 minha mãe bebedourense tinha concluído o Magistério e sonhava com uma classe lotada de alunos. Na época, onde o Estado tivesse aula disponível as professorinhas abraçavam com boa vontade. E foi assim que ela atravessou o interior paulista para parar na região da Vila Áurea. Chegava a atravessar rio a cavalo para lecionar nas fazendas.

A família do meu pai era de Araçatuba e tinha a Fábrica de Colchões Silva, a Fábrica de Ladrilhos Silva e meu tio Lázaro Silva foi o primeiro prefeito de Auriflama, em 1965. Mas isso é outra história. Fui criada lá.

As classes tinham aquelas carteiras pesadas de madeira e ferro e os alunos sentavam-se sempre em dupla. Era o filho do prefeito com o filho do coveiro, o filho do juiz com o da professora. Isso nunca mais vai acontecer!

Apelido? Não havia o maldito bullying, então a criatividade corria solta: Burralê para Alexandre, Pimentinha e, se até o final desta minha escrita me ocorrer outros, citarei.

Fora das classes, a simplicidade não incomodava os novos deuses. Eu entrava na sala do juiz, de chinelos e pedia para ele assinar minha autorização de viagem – pois viajava 3 horas aos sábados para estudar piano em outra cidade. “Minha filha, você precisa pedir para seu pai assinar este documento”. “Sim, senhor, só um minuto porque meu pai está lá fora”, eu respondia. No corredor, eu mesma fazia a assinatura e entrava na sala de novo, desta vez com o documento corretamente preenchido.

Não havia restaurantes. Só um para viajantes. No açougue, na venda, na quitanda, uma cadernetinha bastava. Na volta da escola, o dono da padaria dava bala para as crianças. Os estudantes mais ousados entravam na casa da professora e olhavam as perguntas da prova que seria aplicada no dia seguinte.


“Eu entrava na sala do juiz, de chinelos e pedia para ele assinar minha autorização
de viagem – pois viajava 3 horas aos sábados para estudar piano em outra cidade”


Por muito tempo, na Rua Feliciano Salles Cunha, uma das principais, os boiadeiros passavam com suas boiadas e seguiam embora. A vizinha, de vez em quando, fazia um terço que, para criança, não acabava mais. As eleições pegavam fogo! Ai de quem fosse contrário a alguém. De qualquer forma, você sempre levava paulada.

Os passeios eram nas cachoeiras. Nos anos 1970, você pedia um telefonema interurbano para a telefonista, na central telefônica – diga-se de passagem, uma casinha superapertada que só cabia mesmo a telefonista, o telefone e o cliente. Lá pelas tantas, a mulher avisava a família que tinha conseguido completar a ligação. A mãe descia em bloco, correndo pela rua, com os filhos atrás, para falar com um parente distante.

Coitado de quem fosse o alvo da frase “me espera na saída”. As festas das escolas atraíam toda a cidade – quermesses, desfile da fanfarra e outras comemorações cívicas. O padre pressionava as crianças encapetadas para se confessarem: “matei aula”, “joguei ovo no colega da classe”. Eram pecados gravíssimos.

Certo dia chegou o primeiro bandido na cidade – muito amador, por sinal. A molecada, eu inclusive, ficava na esquina da delegacia espiando e esperando para ver a cara desse bandido, certamente um ladrão de galinhas. Os encapetados subiam nos muros dos vizinhos e simplesmente cortavam o varal – lembrando que lençol naquela época era de algodão e olhe que tinha os de linho, e tudo branco, os quintais de terra, quando muito, grama. Daí que se conclui que isso sim era quase terrorismo.

Nem tudo era tanta pureza, mas as pessoas eram mais iguais. Não havia digital influencer. Eu nunca entrei de salto na sala do juiz. Todo mundo jogava queimada. Professor era respeitado. Autoridade não era Deus. Amizade era para sempre. Tal qual hoje.

 

* Blanche Amancio
Jornalista e empresária na Texto & Cia. Comunicação, coralista de
orquestra e ‘mãe’ da gata Velminha


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

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