Categoria: COLABORAÇÕES

Textos de cronistas convidados do blog.

O uivo do monstro

Nicorvo deserta

Para mim, sem dúvida, daria para gravar um bang-bang em Nicorvo. Ela é feia. É empoeirada. Tem 400 habitantes e é quase sem cor. Uma cidade que para nós foi como um vira-latas esquelético, sofrido, com sarna e dentes afiados, que corre atrás do próprio rabo e nunca late. Tem pelos curtos e falhos e, de bom, carrega um sininho na coleira.

Na imensa planície de Parma (Itália), Nicorvo se deita atormentada por insetos no brejo das plantações que a rodeiam, de arroz, trigo ou farro, sabe-se Deus.

Ao seguirmos a pé para lá, não sabíamos o que nos esperava. Se soubéssemos, teríamos cancelado a caminhada. Mas não. Inocentemente fomos trilhando enquanto o monstro se armava. Enquanto partíamos da acolhedora Vercelli, o tal se formava não se sabe de onde, mas já zunia seu vento silencioso.

Andando, nós quatro tivemos uma das conversas mais íntimas de todo o mês que passamos juntas. Cada uma falou sobre a morte de seu pai. As histórias foram ouvidas sem pressa, sentidas. Cada palavra de tristeza foi deixada vagando entre aquelas plantações.

Logo, dois avisos dissiparam as lembranças pesarosas. O primeiro: como se antecipasse o suspense do que viria, toda a água de nossos cantis se acabou. O segundo e principal aviso: o tempo fechou de tal modo que nos calou completamente.

Já andávamos, àquela altura, olhando o chão, de cabeças baixas, desanimadas e com pressa de chegar. Parecia que tínhamos ido até o fundo de uma cisterna vazia. Agora estávamos perto. Ouviam-se só os passos cadenciados das botas, distantes umas das outras, e a sensação do barulho que não se concretizava, como a vibração longínqua de alguma garganta muda.

A Regiane, por formalidade, achou por bem fotografar o lugar para espantar o arrastado do dia e, ao levantar os olhos e focar o horizonte, surgiu na tela a ameaça da qual não teríamos como escapar…

A foto é ruim, mas o fato é real: este foi o registro do furacão

“Olha, olha o que vem vindo… um furacão!”

Não tínhamos opções. Não havia onde se proteger naquele descampado e só poderíamos sair da estrada se afundássemos no brejo das plantações, à direita, ou se nos agarrássemos às poucas árvores à esquerda – mas furações arrancam árvores. Na estrada, voaríamos pelos céus.

O tempo fechou ainda mais e vimos o furacão se aproximando. De longe, ele parecia um sino de igreja invertido … e era bonito.

Cada uma rezou do seu jeito. Eu achei que não faria muita falta, mas pedi a Deus que me deixasse aproveitar mais a aposentadoria que mal começara e lamentei pelo sofrimento dos meus. A Renata escreveu “mamãe ama você” para a filha, no aplicativo do celular, e enviou, emocionada. A Regiane também pensou na filha, e a Kele em muita gente.

Sabíamos que não daria tempo de chegar à cidade com nossas pernas e minutos curtos, porque o monstro estava cada vez mais perto. Como seria bom se as mochilas fossem asas ou se aquilo fosse a gravação de um bang-bang e nos bastasse galopar em puros-sangue até alguma tábua de salvação!

Ponderamos que antes da cidade havia um cemitério e se o alcançássemos poderíamos achar alguma construção para nos proteger, mas pelo andar da carruagem nem mesmo conseguiríamos chegar nele vivas – com o perdão da ironia!

Vinha vindo um furacão como nunca imaginamos e o tempo se fechava para a tempestade. Os pingos começavam, ventava e trovejava. Contra isso é que vestimos pela primeira vez os corta-ventos que trazíamos, como se eles pudessem… deixa pra lá.

Provavelmente nunca mais encontraríamos com a Sheila e a Adriana, as duas irmãs peregrinas que chegaram a Nicorvo algumas horas antes, vindas de Milão.

A estação de trem da pequena Nicorvo

As irmãs

Quando Sheila e Adriana desembarcaram, assustaram-se com o mau tempo e pensaram nas amigas à pé. Acharam a cidade morta, sem gente nas janelas.

Ninguém atendeu à porta da casa paroquial que nos abrigaria. Aquelas ruas não tinham placas e as casas não eram numeradas. A Prefeitura estava fechada. Não havia nem sombra de crianças. Os motoristas dos carros não paravam. Ninguém se envolvia. Ficaram as duas na rua à espera de uma alma boa.

O homem que surgiu para abrir a porta deve ter saído de um bueiro, ou talvez estivesse escondido atrás do poste. Deu-lhes instruções apressadas em um italiano para turista não entender, mas, pelas feições dele, não podia isso, não podia aquilo, não podia… não.

As horas de fome das irmãs passavam contraídas. Não acharam ali padaria, mercado, restaurante ou venda alguma aberta e só conseguiram comprar meia dúzia de ovos, por 2 euros, de um romeno com quem conversaram pela língua da penúria. Ele disse que Nicorvo era assim mesmo, mas revelou que o pub abriria à noite – “isso, se o furacão não chegar”, ressaltou. Mas as duas não entenderam e foram tranquilamente cozinhar os ovos para nos receber logo mais.

E de volta à estrada…

Acho curiosa a sensação de se sentir espreitada pela morte e digo com conhecimento de causa, porque não foi a primeira vez. Traduz a seriedade única do “agora é o fim”. Os pensamentos sobre como vão ficar as coisas, as desordens, as perdas, os amores, as dores, a puxada de conta passam rápido ante a magnitude do que nos espera e ficamos ali, à mercê de um destino. O que tive não foi de forma alguma medo, mas uma postura de me soltar para o inevitável.

Na hora H, pensamos tudo o que tínhamos para pensar tão rapidamente que em pouco tempo voltamos a andar na velocidade de sempre, à espera do abraço. Não havia o que fazer. Não corremos às árvores nem fomos ao brejo.

Pode ser que, de tanto nos abismarmos, tenhamos perdido o interesse do monstro. Depois de tudo, o furacão fotografado nos virou as costas. Desfez-se lentamente e não se sabe ainda em troca do que fizera o blefe de surgir.

De um minuto para outro, nada foi o que era para ser. Ele se esvaiu. Deve ter vindo só para negritar nosso desamparo, para sublinhar o tema do dia, antecipar o tom obscuro e ranzinza da cidade com cara de vira-latas e nome de pássaro.

Assim como veio ele se foi e tudo aconteceu tão rápido que, quando olhamos de novo para o céu para conferir, nosso algoz já tinha sumido.

Foi como se tivéssemos tido um pesadelo coletivo… como se tivéssemos feito parte de um show macabro.

A sorte é que o tínhamos fotografado para provar às outras o motivo de nossa alegria quando as encontramos.

Fomos ao pub só porque, afinal, um ovo não matava a fome de ninguém e precisávamos comemorar.

Ao fim, o pub era ótimo… o sininho da coleira. A Sheila e a Adriana nos contaram as aventuras de terem chegado ali em uma locomotiva tão antiga que dava muito, mas muito medo de que ela tombasse nas curvas – outro monstro longilíneo engolindo medos pelos trilhos.

Nós detalhamos nossa praticamente morte e ressurreição.

Qual o jeito de chegar em Nicorvo sem sentir medo não ficou sabido.

Quando voltamos pelas ruas silenciosas, apreciando a paisagem com olhar de sobreviventes, nos parecia que o cachorro bravo estava sonhando com a namorada. O dia assustado pelo furacão, pelo trem caquético, pelo risco de não termos onde dormir e pela sombra da fome fora neutralizado pela noite no cenário de sallon que redimia os pecados da cidade-bicho.

Não demorou para pegarmos no sono que nos repararia para seguirmos rumo à próxima aventura.

Nosso destino do dia seguinte, Mortara, tinha no nome algo de funesto…

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

Este viajandão baseado em fatos bem reais é a quarta crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de Vercelli a Nicorvo, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Fio Maravilha, clique aqui

Fio Maravilha

Não falo do fio dental odontológico que usamos diariamente, do fio da navalha e nem da música do Jorge Benjor inspirada em um jogador de futebol. Mas já que toquei neste assunto, vou aproveitar a deixa e revelar em primeira mão que o doutor Sócrates participou de nossa aventura na Itália.

Sim, ele estava lá. Segura esse lance!

Muitas vezes nos perguntavam de onde éramos: Do Brasil, de Ribeirão Preto. “Não conheço”. De São Paulo. “Oh, é uma cidade muito violenta!”, diziam.

Até que um dia veio o insight de falar na linguagem do futebol. Quando questionada de onde éramos, devolvi perguntando se meu interlocutor conhecia o jogador Sócrates. “Sim, claro, ele jogou na Fiorentina!”, respondeu o homem com o olhar brilhando. “Somos da cidade dele, Ribeirão Preto”. Funcionou tanto que depois de um tempo já respondíamos direto: “Somos de Ribeirão Preto, cidade do Sócrates”.

Esse “fio maravilha” da nossa cidade nos aproximava dos italianos.

Feito o desvio, volto ao fio desta crônica, que foi visto em nosso alojamento de Point Saint Martin, o único que oferece lavatórios para os pés, uma espécie de pia de chão cuja ducha suaviza as dores. Depois deste banho é que se cuida das bolhas e faz-se os curativos.

Se já está pensando que passamos fio dental nas bolhas, engana-se. O caso é outro, e para contá-lo, apresento seu protagonista, um dos italianos que adoraram saber que éramos conterrâneas do Sócrates. O nome dele é Jácomo.

Vista de fora do Castelo de Bardi

Ele era um avô de uns 65 anos, que dividia a vida com a mulher, Pepina, com quem percorria a pé parte de seu país, sempre que podia. Nos conhecemos no trajeto cheio de apiários entre Vèrres e Point Saint Martin, que incluiu nossa visita ao maravilhoso castelo de Barbi, locação do filme “Vingadores: A Era de Ultron” (2015). Andamos juntos mais à frente outras vezes.

Enquanto redijo essa grande explicação, as outras peregrinas estão relaxando em suas camas no fim da tarde, à espera da Regiane voltar do vestiário feminino plenamente embelezada, para depois irem jantar. É quando a própria abre a porta, com a pressa de quem foge de um fantasma zombeteiro. Com cara de criança, o corpo dobrado para frente, ofegante, sussura atropeladamente coisas do tipo “vocês não vão acreditar”.

“O que houve?”

“É que eu vi o marido da Pepina de cueca.”

“De cueca? Uia, que folgado de andar por aí assim!”

“Ele estava indo do vestiário para o quarto deles…”

“Também não é para tanto estardalhaço, Regiane, menos…”

“Eu nem consigo falar de tão surpresa!” – ela ria como se fosse proibido rir, sabe?

“Mas surpresa com o quê, nunca viu homem de sunga no clube?”

“É que a cueca dele era fio dental! Cuequinha preta e fio dental!”

Ohhhh!

“Ao vivo eu também nunca vi homem de fio dental”.

“Nem eu…”

Ela conta que passava pela área de convivência quando percebeu alguém andando do outro lado, já pertinho do quarto do casal. Olhou para ver quem era e cumprimentar… e foi aí que  viu. Ele nem fez menção de se cobrir, disse “ciao” e entrou no quarto tranquilamente.

“Não esquenta, Regiane, aqui eles não tem esses pudores como a gente lá no Brasil”, explica Renata, a viajante internacional.

Apiários por todo o caminho

Nós ficamos como abelhas zunindo.

É público e notório que os italianos são sedutores (apesar de que não cruzamos com nenhum daqueles homens dos filmes por lá. Só um, lembrando bem, ou dois, transitando pelas cidades). Nos grandes centros, eles se vestem de calças justas, barras dobradas deixando aparecer os sapatos – um pula brejo cool. Falam com as mulheres olhando muito diretamente nos olhos, e tascam seus “piu bela” a três por quatro, quando não estão de cara amarrada, o que é bem comum.

Mas para nossa cultura pseudo libertária e tecnicamente conservadora, nosso brasilianismo machista em que só as mulheres podem e devem ser sedutoras, nossa cultura de apego à juventude e à beleza, em que a feiura e velhice excluem outros méritos – sensualidade entre eles – ver o sessentão de fio dental pretinho soou inusitadíssimo.

No jantar, livres da possibilidade de sermos ouvidas, rimos ainda mais da situação, da surpresa, da novidade, como crianças quando vêem algo que é proibido. “Não pode falar palavrão, menino”. E ele fala. Faz chacota, ri, se rebela. Se as mulheres lutaram tanto pelo direito de usarem calças, por que criticariam o homem que usa saias ou fio dental?

É esse o fio maravilha dessa história, sobre o qual equilibraram-se nossos preconceitos e curiosidades naquele dia, na pacata cidade que nem deve ter jogador de futebol de peso. Ainda mais um jogador mundialmente famoso e que promoveu a democracia no futebol.

Pensando bem, ver com naturalidade o fio dental masculino é um ato de democracia.

Nos dias seguintes, ainda cruzamos algumas vezes com o Jácomo e a Pepina, sempre simpaticíssimos, de bom papo, ambos prestativos, vestidos com suas calças de trilhas.

Viraram musos.

Olhávamos para ela e imaginávamos (sonhávamos, seria mais justo dizer) que talvez ela estivesse de corselet e calcinha de renda vermelha por baixo da roupa de viagem, subvertendo a ordem estabelecida de mochila exígua. E pensávamos no quanto a vida sexual deles devia ser divertida. Eu, especificamente, refleti muito sobre minha calçarola da vovó.

Para você ver que nesse mundo a gente sempre pode pensar no contrário do que é, sempre pode fugir das ditaduras sem sentido.

Isso não pode. Não mesmo?

Sou inteligente. Sou mesmo?

Vivo presa. Vivo mesmo?

Para você ver que nem tudo é tão reto quanto pensamos.

E ver que perder, e depois ganhar, para de novo perder, e mais uma vez ganhar, é um dos melhores regalos que essa viagem nos dá.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

Galeria (clique em qualquer foto para ampliar)


Este fato real é a terceira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Vèrres-Point St Martin, onde aconteceu a história de hoje, visite o Peregrinas Mundo Afora.

Para ler a crônica anterior, Sobre Coisas que Dão na Barriga, clique aqui

 

 

 

Sobre coisas que dão na barriga

Dentro de 4 horas começaríamos nossa peregrinação pela Itália e meu abdômen fazia barulhos estranhos.

O medo.

Fui para o banheiro da pousada de Aosta no meio da noite, enquanto a Kele dormia. Não tínhamos tido entreveros desde que saímos do Brasil, mas eu sabia – só eu sabia! – o quanto tudo aquilo me punha em estado de alerta, como uma personagem de filme de terror em um corredor escuro, ouvindo portas rangerem, passos lentos, vendo os pingos da tempestade escorrerem na janela… e ainda aquele frio… o arrepio gelado escalava minhas costas.

Eu era um bicho acuado, o filhote que não sabe descer da árvore. Não se tratava só de vencer os 750 km a pé, mas de tudo… do suspense, da timidez, de pousar os olhos em um fantasma horroroso e conseguir rir dele: “você não é de nada, cara!”

O banheiro charmoso não me dava chances reais de fazer dele um cenário de terror, nem chovia lá fora como minha mente insinuava. As acomodações eram ótimas e eu podia considerar que tinha acertado na minha primeira reserva pelo Booking!

A pousada ficava em um prédio antigo e bem localizado, de paredes grossas, portas baixas, corredores estreitos, escadas acentuadas e iluminação amarela. Não tinha recepção. Entramos nela, saímos e não vimos ninguém por lá. Um jeito muito quieto de fazer as coisas.

Isso eu recapitulava no banheiro, tentando domar o piriri  e me acalmar.

Se a Kele acordasse, acharia uma companheira serena como uma montanha. Eu diria: “não estou conseguindo dormir” e abriria um sorriso terno, como se tudo estivesse ótimo. Mas a montanha tinha coração de vulcão e esperava, com a viagem, mudar seu padrão de comportamento para algo mais leve, transformar-se em duna.

Minha barriga dava nós.

Se conseguisse encarar aquilo, tentaria me livrar de alguma de minhas amarras. Seria o dia de me permitir errar sem culpas. Pensava em ir mentalizando “você pode errar, você pode errar”, como se dissesse um mantra.

Até tinha feito um roteiro de coisas que eu queria conseguir naqueles 30 dias, do mesmo jeito que se faz roteiro de pontos turísticos. Talvez por isso mesmo tenha surgido aquele medo medonho.

Eu queria seguir o mapa do tesouro, sendo o tesouro eu mesma.

Não queria ganhar coisas, mas perder, me esvaziar.

Esperava respirar o novo, prender o ar e deixá-lo depurando minhas células.

Observar os lugares feios e os bonitos sem paixão. Não tomar o melhor vinho, mas um qualquer. Não queria mais me encolher, nem controlar.

Não queria me amedrontar mais e, não obstante, indiferente a meu querer, o bicho estava bem ali comigo no banheiro, de madrugada, grudado.

Dentro de poucas horas, nos juntaríamos ao grupo e iríamos a pé para Châtillon, a 34 quilômetros daquele banheiro de Aosta. A Regiane seguiria de trem com a Vera, que estava machucada, e levariam parte de nossas bagagens, o que aliviava em meio quilo o peso programado para minhas costas e faria enorme diferença no maior trecho de montanha de todo o trajeto.

Mesmo tudo parecendo certo, eu só pensava em pular esse dia e  começar a trilha no próximo.

Vista de Aosta do caminho para Chatillon

Mas fui, levada pelo rio da vida e só parei de seguir adiante um mês depois, quando chegamos a Siena.

Uma fresta sempre me impele a ir em frente.

Aliás, continuo na trilha da Francígena, como um fantasma andarilho. Parte de mim fica vagando por lá, medindo as perdas, colhendo os ganhos, me alimentando com os flashs do que vivi.

Essa foi uma daquelas viagens feitas de estradas mágicas, que vão se colocando sob nossos pés. Pensamos já estar andando por outra, ou em um shopping, mas de repente a vemos, a cruzamos, andamos nela mais um pouco. É uma leveza que impregna e que me ajudou, sim, a dar uns passos novos.

No trajeto, eu me espantava com as reações corajosas das outras peregrinas.  Às vezes eu passava horas andando e refletindo sobre o quanto o medo me atrasava a vida, e também no quanto aquele pulsar de auto-preservação me fazia bem.

Descobri que o medo me levava para longe do confronto, amornando-me, esfriando-me, e que há menos liberdade para quem teme. Ele ocupa muito espaço.

E eu queria fazer minha re-ocupação. Queria muito ter feito, só que desta vez não deu.

Talvez eu consiga um pouco mais na próxima. Para ela, e para bater pernas por aí, tenho planos de estampar em uma camiseta a frase do Confessio Fraternitatis com a qual me emocionei ao voltar para casa: “Ir ao encontro do sol nascente, com a cabeça descoberta, o coração aberto e os pés nus”. Vou dar um nozinho nela e deixar a barriga aparecendo.

Será meu troféu,  não por ter ganho a batalha, mas pela bravura da luta em terras tão adversas.

 

GALERIA (clique nas fotos para ampliá-las)

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


Esta é a primeira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Aosta-Chatillon, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora.

 

 

 

Leia o texto de apresentação desta série: Histórias de peregrinas pedem passagem

Nosso incrível exército de Brancaleoni (com ‘i’ mesmo)

Bastou caminhar um dia na Itália, de Aosta a Châtillon, para aprendermos que fazer trekking é entrar para o exército. Servimos na via Francígena precisamente de 22 de junho a 19 de julho de 2017,  onde aprendemos a ter coragem diante dos coelhinhos brancos, disciplina para lavar diariamente as roupas sujas, tenacidade para comprar comida no supermercado, estratégia para programar o dia seguinte e resiliência para madrugar.

A rotina espartana era cumprida sob o comando de uma provável descendente do líder do Incrível Exército de Brancaleone (já disse que o sobrenome da Renata é Brancaleoni?). Passados quase 20 dias de quando pusemos nossos pés na Itália, cruzamos o trecho de Costamezzana a Fornovo. Já estávamos bastante acostumadas umas às outras, noves fora as brigas.

Nossa Brancaleoni – com i – não era trapalhona como o famoso personagem do cinema, nem seu batalhão era  maltrapilho como foi o exército das telonas. Tínhamos tudo de boas marcas, mas ainda assim não passávamos de mulheres sem glamour e grana, sem sapatinhos de princesas e muitas vezes com uma fome incontornável.

Vocês terão fortes emoções se refizerem conosco o caminho por onde marchamos com bravura quase dez dias antes do fim de nossa missão na Itália.

Estamos a caminho de Fornovo, conhece? Foi a cidade onde a Força Expedicionária Brasileira rendeu a Divisão Alemã e a Resistência Fascista na 2ª Guerra Mundial. Brevemente pisaremos o chão onde os pracinhas brasileiros foram heróis e provavelmente seremos carregadas no colo ao chegar, dada a glória da histórica batalha vencida por eles! Nossa expectativa é grande: como seremos recebidas lá tantos anos depois do memorável confronto, nós, as brasileiras do incrível exército de Brancaleoni?

Família da Stefania, que recebeu tão bem essas estranhas peregrinas

Alguns quilômetros antes de chegarmos à cidade, tivemos uma clara demonstração do que nos aguardava. Ao nos identificarmos a uma família local, fomos convidadas a descansar em um haras. A Stefania cercou-nos de cuidados e serviu-nos o verdadeiro parmesão de Parma, água com gás, café, pães caseiros e uns frios bem finos, além de chocolates. Saímos de lá para nossa marcha mandando beijinhos e abraços para nossos anfitriões. Pura fama, como não convém a graves soldadas.

Seguindo nosso caminho, ladeamos por um bom tempo um rio poluído e seco e passamos por uma grande cervejaria desativada, até que um espinho furou o pé de uma de nós.

Como o espinho conseguiu atravessar o forte solado da bota? Suspeitamos, refletimos com nossos altos QI e entendemos que aquele caminho ainda estava cheio de truques e perigos desde a 2ª Guerra! Macacos nos mordam! Por sermos o máximo, provavelmente desviamos instintivamente das armadilhas e bombas armadas naquele bosque para nos capturar, restando só o ataque do espinho.

Não desanime com isso porque nós, destemidas, bravas, brasileiras, misses daquelas estradas de terra, vencemos tudo, tiramos o espinho do pé, seguimos em frente, tomamos suco e agora estamos nos aproximamos de Fornovo! Cruzamos a bela ponte sob um enorme rio seco e adentramos na praça de Fornovo como se fossemos heroínas. Mas…

Cadê as trombetas?

Os habitantes não deram as caras. “Uai”, diriam os mineiros.

Obviamente estavam entrincheirados em suas próprias casas e comércios fechados, espionando e temendo a corajosa divisão feminina brasileira do incrível e famigerado exército de Brancaleoni! Era dia 8 de julho de 2017 e o termômetro marcava 42ºC, com sensação térmica de 50ºC.

Não nos intimidamos pela cidade fantasma e atravessamos com vigor sentido Respicio, especificamente onde décadas antes ficava a divisão alemã.

Castigadas pela sede, sob um sol que não remete em nada ao frio congelante sofrido pelos pracinhas, fomos arrastando nossas mochilas com frutas compradas na promoção. Seguimos pela estrada deixando para trás e para nunca mais a cidade de Fornovo, a única do trajeto que não conhecemos por dentro.

Muitos, muitos passinhos sob o sol

O asfalto mole grudava nas nossas solas e soltava grandes ondas de calor. Do acostamento víamos os motoristas de carros que passavam em alta velocidade, com cara de quem se pergunta onde guardávamos nossos canhões… Na mochila, claro, onde mais?

A paisagem já se convertia na da Toscana, mas a beleza não estava amenizando a fome, a sede, o cansaço e a moleza do calor desértico. O caminho não tinha sombra e não dava trégua. A água do reservatório estava entrando em ebulição. Comandante, o que fazer?

“Vamos parar todas, tirar nossas meias e pôr nossos pés para cima”, disse a certeira Renata… e obedecemos.

É isso que se faz na guerra: põe-se os pés para cima, não sabem?

Achávamos que o alvo Respicio era mais perto… ou será que nossos mapas estavam errados? Se fosse isso, não chegaríamos nunca! Que roubada, o que fazer? Pensamos um pouquinho com nossos miolos moles e, de tão sensacionais que somos, logo montamos a estratégia de deixar Respicio de lado e seguir direto para o alojamento de dois andares reservado pelo Booking, que tinha sinalização na estrada. Vamos deixar essa história de guerra pra lá.

Resolvido!

No entanto, o cansaço permanecia, por isso, de novo consultamos nossa suprema capitã Brancaleoni sobre o que fazer. Solene, de blusa justinha amarelo Brasil, ela virou-se para a cabo Adriana com aquele charme das protagonistas:

“O que você decidiria, cabo Adriana, se estivesse liderando esse exército?”

“Pararia a tropa na gelateria, senhora”.

Só inteligência pura para ter tamanha sacada naquele momento. Obedecemos, mas, se por um lado lá tinha gelato, banheiro e água fresca, por outro tivemos de falar grosso e mostrar nossa excelência moral, estratégica, física e espiritual para aquele soldado raso que nos atendia fazendo cara feia.

O haras

Vencida mais essa batalha, passamos nossos protetores solares, gloss – não sem antes tirarmos uma selfie – e marchamos para a pousada… ops… acampamento.

Quando já tínhamos espertamente tomado nossos banhos, atualizado o Facebook, lavado nossos uniformes na máquina e contado carneirinhos, fomos servidas de um jantar regado a vinho vinagrado, torta com pimentas fortes e inteiras, salada mal temperada e um macarrão “vá lá”. Após a sobremesa frugal, bradamos de mãos dadas nosso grito de guerra (Por hoje chega!!!) e caímos nas camas fofas.

“Amanhã vai ser outro dia. Essa batalha foi vencida!”, decretou a cabo Adriana.

Pensando no risco que corremos de termos sido envenenadas no jantar, uma de nós trocou mensagens com o primo Douglas, confessando em tempo real as agruras da guerra e sobre estarmos coogitando desistir de tudo, pois para o dia seguinte estava prevista a perigosíssima subida dos Apeninos. Ele não se conformou e decretou:

“Prima, diga a todas que subam os Apeninos. Vocês são integrantes do incrível exército de Brancaleoni e não desistem nunca. O Brasil torce por vocês.”

Dá arrepios só de lembrar. Com essa injeção de ânimo, na madrugada seguinte lá estávamos nós na estrada de novo, gatas de botas, subindo a ladeira.

A coisa mais linda de se ver!

 

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

 

Este delírio é a primeira crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Costamezzana-Fornovo, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora

Histórias de peregrinas pedem passagem

Sempre ouvimos dizer que pescadores exageram as histórias que contam, mas eles perderão o posto em breve. O motivo: somos um grupo de peregrinas que começará a publicar aqui no Palavreira a série de histórias “Pé Dá Letra“, sobre o bate-perna que fizemos na Itália em 2017. Zanzamos cerca de 750 km basicamente por áreas rurais de lá e, convenhamos, nem sempre acontecem coisas tão incríveis em um trajeto assim… O jeito vai ser dar aquela exageradinha, juntando umas pitadas de invencionices… uma certa licença poética para enfeitar a história real.

Para fazer o “esquenta” da série, o caso abaixo é um testemunho “ponta firme”:

Quando saí da Caixa Econômica Federal – onde trabalhei por 27 anos – no fim de março passado, meu único plano era me ocupar com minha própria reinvenção. Isso não é sinônimo de plástica na cara, não. Comecei a fazer uma mistura de redescoberta, revelação e reconstrução, que ainda seguem. Estas são palavras que começam com “re”, assim como recomeço e Renata. Quem é ela?

Renata, vocês verão, foi a capitã do “Exército de Brancaleoni”. Nem bem me viu soltinha, ela refez o convite para que eu integrasse o pelotão que partiria em junho para andar em uma parte da Via Francígena, que tem cerca de 1.900 km no total. Topei apenas porque não ia aguentar ficar em Ribeirão Preto vendo as fotos delas no Facebook. Para fugir do sofrimento da inveja,  passei os dois meses seguintes entretida em treinar e comprar tudo o que era preciso para a empreitada.

A mochila tinha que ter um camel back; a bota precisava ser uma Salomon duas numerações acima da minha; as roupas – segunda pele, fleece, legging, anorak para muita chuva, um vestido, roupa para dormir, camisetas e calça de trilha – tinham que ser levíssimas, como a mochila e o saco de dormir.  Lanterna, carregador de celular, toalha de banho, chapéu de peregrina, óculos de sol, uma Havaianas, primeiros socorros… todos estes itens não podiam pesar mais do que 6 quilos, pois na trilha ainda entrariam a água e os lanches de cada dia.

A Regiane, a Renata, a Sheila e a Vera começaram a peregrinar na Suíça três dias antes de mim e da Kele. Elas já entendiam do riscado, ao contrário de nós, estreantes, que começamos em Aosta, na Itália, onde nos encontramos.

Foi aí que foi escrita a primeira crônica desta série, “Nosso Incrível Exército de Brancaleoni”, que sairá na próxima quarta-feira. A Adriana chegou na Francígena alguns dias depois, quase ao mesmo tempo em que a Vera nos deixou. Entre nós havia um homem eletrônico chamado GPS, ou Marcelo, e uma mulher eletrônica, a danadinha da GoPro (se vocês ainda não leram as peripécias da GoPro na crônica Take a Photo, my Love, fica a dica).

Assim, éramos seis mulheres brasileiras que todas as madrugadas partiam com suas mochilas nas costas, andavam o dia todo sem saber como seria a paisagem depois da próxima curva, como seria a próxima cidade em que chegariam, se o alojamento daria certo, o que comeriam, se o banho seria quente, se acertariam o caminho, se o dinheiro ia dar…

O que vivemos foi divertido e quase daria um livro. Talvez esse dia ainda chegue encadernado. Por ora, transformou-se em crônicas sobre histórias vividas de verdade ou apenas em nossas cabeças. 

Esperamos que aproveitem. São nossos pés que vão dar as letras pra vocês.

Passo a passo, os pés das peregrinas pedem passagem.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

NOTA DA BLOGUEIRA
A série “Pé Dá Letra” será composta por ao menos dez crônicas de viagem (pelo menos nesta primeira temporada), publicadas semanalmente, sempre às quartas-feiras, a partir de 6 de maio de 2018.

O Noivo ‘Bafudo’ **

FERNANDO BRAGA **

Domingo, meados dos anos 1960, Carlos ia almoçar pela primeira vez na casa de Carmem Lúcia. Pensava em casamento.

Desceu a Duque de Caxias e, ao chegar na Luiz da Cunha, parou na cancela do trem. Era a única ligação do Centro da Cidade com a Vila Tibério.

“Maldita porteira, tinha que fechar bem agora!”, lamentou.

Uma locomotiva a vapor, conhecida como Maria-Fumaça, fazia manobras pelo pátio da Estação da Mogiana. As “porteiras” interrompiam a passagem de veículos e pedestres. Os mais apressados corriam pelo túnel malcheiroso que passava por baixo da linha férrea. A maioria aguardava o fim das manobras.

Carlos, impaciente dentro do seu “Gordini”, pensava que poderiam não gostar do seu atraso. Mas, na verdade, o que o incomodava mesmo, era o fato de ele ser torcedor do Comercial, e ser “bafudo” era considerado um crime pelo pai de Carmem Lúcia. Ela aceitava a preferência do seu amado, mas pedia para Carlos guardar segredo.

“É melhor não falar em futebol”, dizia ela.

“Aqui nesta casa não tem ‘bafudo’…”

“Seu” Pedro tinha orgulho de dizer que naquela casa só entravam produtos da Antarctica, fabricados na Vila Tibério, e que ele, embora filho de ferroviário da Mogiana, sempre trabalhara na cervejaria. Orgulho maior era dizer que toda a família era composta de botafoguenses.

“Graças a Deus não tem nenhum ‘bafudo’ aqui”, dizia, atrás de um bigodinho bem aparado.

Carlos passou pelos bares da Luiz da Cunha, todos lotados, e virou na Conselheiro Dantas. Passou em frente ao Grupo Escolar Dona Sinhá Junqueira, ao lado da Igreja Nossa Senhora do Rosário e virou na Santos Dumont, na esquina do Bar do Paciência.

Enfrentando o sogrão

Parou em frente à casa com um pequeno alpendre e desceu, enxugando o suor, provocado pelo forte calor e pela ansiedade.

Carlos foi recebido por Carmem Lúcia e seu irmão, um jovem com seus 16 anos. Entraram e “seu” Pedro foi logo oferecendo um copo de cerveja. A mãe, dona Lurdes, veio cumprimentar o rapaz e voltou logo para a cozinha, acabar o almoço.

“Seu” Pedro foi logo inquirindo sobre o que fazia e qual time torcia. Carlos contou que trabalhava como vencedor em uma loja e que não ligava pra futebol.

“O quê? Não gosta de futebol, pois hoje tem Come-Fogo e você vai comigo ver o que é um time de verdade”, afirmou.

Carlos não teve outra alternativa. Depois de uma farta macarronada com frango e muita cerveja, foi com o “sogrão” e o “cunhadinho” para o Estádio Luiz Pereira, a alguns quarteirões dali.

No Come-Fogo

O Botafogo ganhou por 5 a 2, com gol de Laerte, dois de Antoninho e dois de Geo. Era um tal de abraços e pulos que não acabava mais. Carlos quase se traiu no gol de Carlos Cézar.

Depois do jogo, “seu” Pedro falou que a comemoração de verdade iria acontecer no Bar Botafogo, do Chanaan Pedro Alem. Lá, centenas de pessoas, todas com cerveja na mão, gritavam eufóricas. Um caixão de defunto apareceu dos fundos das canchas de bocha e imediatamente “seu” Pedro pegou uma das alças e colocou as mãos do “genro” em outra. Virou uma verdadeira procissão com a multidão acompanhando o caixão e cantando: “Dia 13 de Maio, na Vila Tibério, o Bafo apanhou de cinco a zero; Ave, Ave, Ave Maria…”.

Carlos, segurando uma das alças daquele fatídico caixão pensou: “O que a gente não faz por amor!”.

 

História fictícia baseada em acontecimentos verdadeiros, como a passagem
da porteira, o Come-Fogo e o enterro, que ainda menino, presenciei

 

** Fernando Braga é jornalista e proprietário orgulhoso do Jornal da Vila, da Vila Tibério, um dos bairros mais antigos e tradicionais de Ribeirão Preto


 

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VEM PALAVREAR COM A GENTE!’

Só não peçam entusiasmo… (*)

JOSÉ EDUARDO GOMES DE CARVALHO **

Consta que não há clima de Copa nas ruas do Brasil. É um dos poucos pontos em que coincidem tanto a minúscula mídia que presta quanto a gigantesca mídia que não presta. Me fio mais nas pessoas que circulam por São Paulo muito mais do que circulei por toda a vida e que são testemunhas de que há mesmo uma indiferença enorme de P. a P. e de J.A. a J.A., de Pirituba ao Pari, do Jardim América ao Jardim Ângela. No Rio, então, nem sinal de Neymar e companhia, muito populares no Twitter e no Instagram, mas sem praticamente empatia com a vida real. No Brasil inteiro, nada de vendas em massa de telas planas, nada de camisas amarelas bombando, quase nada de calçadas e paredes pintadas.

Alguém se surpreende? Só protozoários e amebas.

Quando a manada começou a agir para transformar as instituições brasileiras em um depósito de dejetos há pouco mais de quatro anos, quem tinha um pingo de consciência social – infelizes que somos – já vislumbrava uma falta de perspectiva que destruía toda a capacidade de alimentar alguma esperança. Só não sabíamos que aqueles movimentos claros de deterioração eram só uma sensação térmica de fundo do poço: o fundo do poço de verdade não chega nunca.

Vamos fazer nosso papel de sujeito médio, com um mínimo de capacidade de reflexão e que é apaixonado por futebol. Essa pessoa acorda todo dia, se é que conseguiu dormir, e tenta projetar como serão suas próximas horas. Nesse trabalho insano de tentar manter o equilíbrio no cotidiano, busca uma saída diante do que tem visto: “Farsantes, golpistas, facínoras com poder, perseguição ideológica, a sociedade em decomposição…. Já deu, né?” Mas não deu, parece que nunca dá, porque a manada descobre sempre um jeito de piorar. Que lugar tem hoje a euforia provocada pelo futebol nosso de cada dia nesse contexto?

Mais para ‘Mad Max’
Mesmo o sujeito que raramente reflete, e que sequer cogita que é possível viver em comunidade de forma civilizada, está levando bordoada de todo lado. Esse tipo faz parte dos milhões de estúpidos que foram para as ruas pedir a destituição/prisão/linchamento de gente inocente e que, agora, não podem se eximir da crua verdade: são os  diretamente responsáveis pelo buraco em que o país foi jogado pelas criaturas que eles produziram. Esses que agora dizem “não era bem isso que eu queria” também estão longe de entrar na vibe de uma Copa do Mundo. Neste momento, aliás, estão mais para Mad Max do que para Shangri-La, nem conseguem imaginar como vai ser o amanhã, se vai ter água, se o ônibus vai circular ou se o carro vai sair da garagem, quanto mais sonhar com o mês que vem.

Não digo que o futebol, com sua capacidade aglutinadora e poder de acender paixões, não opere milagres. Pode até ser que, por alguns instantes, a Copa faça o papel de anestésico para uma sociedade doente, fraturada e transtornada, um amontoado de gente que é réu e ao mesmo tempo vítima da avacalhação geral em que se transformou a nação. Mas que ninguém se engane: o momento hoje nada tem a ver com a Copa que a ditadura militar tentou capitalizar em 1970, gestando uma euforia artificial. O país dos Dorias, Moros e Bolsonaros não tem minimamente o perfil do Brasil que os militares controlavam à base de tortura e repressão. Hoje, a ditadura vem das entranhas da sociedade civil, é uma ditadura orgânica e terminal, uma serpente de várias cabeças, cercada por gremlins que se multiplicam conforme a mediocridade avança. Não é um monstro que cresce nos quartéis, mas um câncer generalizado, que invadiu as esquinas, os bares, as escolas. Não há ideias, não há projetos e os últimos bastiões, como o Judiciário, já não garantem nada e se aparelharam como instrumentos ideológicos de punição implacável a uns poucos.

Neste panorama podre e repugnante, pouco podem fazer os rapazes de Tite, até porque esses moços recebem centenas de milhares de euros todos os anos, vivem no universo paralelo que é hoje o futebol de elite e em matéria de consciência social são basicamente uma lástima.

Vou assistir a Copa da Rússia com gosto, você provavelmente também, como boa parte dos brasileiros, estúpidos ou não. Mas não peçam entusiasmo, por favor.

 

(*) Crônica originalmente publicada no site ChuteiraFC/CartaCapital

 

** José Eduardo Gomes de Carvalho é jornalista, “explorador do mundo”, mentor e amigo daqueles que são para sempre


 

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Memórias do Cárcere I

CORDEIRO DE SÁ *

Nessa onda de apocalipse zumbi dos caminhoneiros (a quem eu apoiei até apoiarem a Ditadura Militar), ando preocupado com a batata da papinha da minha filha e com as batatas que a mãe dela precisa para se transformar em leite. Ponto. No mais, me viro. Se precisar ir a pé, tô de boa. Se precisar fazer dieta, tô precisando. Mas, claro, também aproveito para cuidar da vida dos outros…

Estava no Pão de Açúcar abastecendo o carrinho, pensando na logística do que estraga antes, do que estraga depois, para comprar tudo numa certa ordem de consumo e cuidando para não levar demais, pois o espaço em casa é pequeno. Enquanto pensava, via tudo esvaziar –  aqui na zona Sul a coisa foi rápida, já que o pessoal tem tutano e dispensa grande.

(Nesse ponto, preciso informar que eu moro na zona Sul, ok, mas não nasci em berço de ouro e trabalhei na perifa muito tempo, com o pé no barro mesmo. Por isso, eu sei bem o que é comer milho até o sabugo para não ficar com fome depois.)

Voltando ao Pão de Açúcar, estava eu lá tentando dar uma de herói de filme do Romero, quando me senti numa comédia italiana. Uma senhora bem cheirosa passou por mim, pegou uma peça de uns dois quilos de filé mignon daqueles maturados, selados com grife, duns 70 mangos o quilo, e entregou a carne para o açougueiro mandando moer… e remoer!!!

O rapaz ficou sem graça: “Moça, se eu remoer, a carne vai ficar toda na máquina. É muito molinha!”. Ela fez que tudo bem e explicou: “Sabe, rapaz, é que eu preciso muito fazer um molho. Será que dá?”

Fui para casa triste. Triste com a situação do país, triste com a ignorância das pessoas, com os caminhoneiros dominando o mundo e depois achando que os militares é que são a solução e ainda mais triste em pensar naquele filezaço virando molho à Bolognesa.

Dois dias depois, fui salvar a Dona Maura da fila do busão e acabei num mercado da Zona Oeste. Tinha tudo por lá, até as batatas! É que sem bufunfa, penso que o povo não pode sair descontrolado enchendo as dispensas. Parecia um oásis. Juntei as coisas que me faltavam e saí de lá com uma iguaria sem igual: dois gomos de meio metro de linguiça Cabo-de-reio! Dona Maura já estrilou: “Não me faz isso na frigideira, que vai sujar a casa toda!”. Ela tinha razão, mas eu acalmei sua fúria ao suborná-la com metade da linguiça.

A iguaria está aqui na geladeira, aguardando a fila logística para ser degustada. Será feita inteira, sem moer, claro!

 

* Cordeiro de Sá é ilustrador, professor universitário, marido da fofíssima Ana, pai da
linda Lúcia e geek com muito orgulho


 

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Sobre rolimãs e meganhas

RENATO ANDRADE *

Era preta e branca e depois ganhou esse laranjão vivo. Moderno.

No começo dos anos 1970 era possivelmente um dos símbolos mais aterrorizantes da repressão. UCom os meganhas de rayban e braços à mostra na janela, a chegada da viatura quase sempre impunha o sentimento de medo e obediência. Polícia era polícia. Ponto.

A construção do bólido partia quase do nada, ou melhor dizendo: não existia loja especializada, manual e muito menos um site ou tutorial de apoio. As várias construções em andamento no bairro ainda nascituro fornecia madeiras, tábuas, ripas, vigas, caibros, chapas e mais uma infinidade de materiais a serem “emprestados”.

As rolimãs já exigiam conexões mais específicas. Uma oficina do tio daquele carinha novo na rua. Aquele desmanche quase em outro estado onde uma excursão de belina seria organizada.

Comprar novas só em caso extremo, e engolindo o certificado de incapacidade.

A ajuda do pai, irmão mais velho, amigos, tio, primo ou outro elemento com mais destreza e segurança no manusear do ferramentário, claro, era sempre muito bem vinda.

Quem vê hoje um desses prontos sendo vendidos em loja acha que a empreitada não exigia muitos segredos. Procurem um projetista automobilístico, “assuntem” sobre todas as variantes mecânicas, aerodinâmicas, de design, materiais… e depois tentem transferir todas as informações prum moleque de 10 anos há 45 anos atrás. Era tudo na unha (muitas vezes martelada) e na raça.

Depois de pronto, o teste na rua.

O som das rolimãs deslizando pelo asfalto (impressão ou não existiam tantos buracos?) fazia qualquer ronco de F1 parecer um liquidificador engasgado. Pinturas customizadas não eram muito comuns, mas um colante STP sempre fazia bonito.


O som das rolimãs deslizando pelo asfalto fazia qualquer ronco de F1 parecer um liquidificador engasgado


As corridas. 10, 15, 25, 35… acho que ninguém contabilizava os participantes. Essa mania de precisão numérica deve ter vindo depois. O importante era a vibração na rua e o som…

Aaaaah o som!

Vivo, encorpado, selvagemente metálico e assustador!

Daqueles que quem sentiu – pois era um som pra ser absorvido por todos os poros e sentidos do corpo humano – nunca mais esqueceu.

Mas sempre tinha um morador que se incomodava com essa rascante sinfonia. E aí chegava o camburão lá de cima.

Falei em medo e obediência?

A molecada jogava os carrinhos dentro dos altos matos do entorno, quase florestas. E se divertia vendo os homens da lei adentrando na busca e apreensão. Invariavelmente lotavam o chiqueirinho com o comboio tão arduamente construído. 

Uma vez um dos pilotos sorrateiramente tentou tirar o adesivo grudado em seu carrinho já acomodado na caçamba. Bastou um olhar do oficial.

Sabe que eu acho que no fundo os milicos se divertiam com a coisa toda?

Eram tempos de chumbo – torturas, terrorismo, desaparecimentos, bombas e sequestros.

Ali, naquelas ruas de um bairro sendo colonizado, numa cidade do interior que poderia até ser chamada de pacata na época, uma molecada reproduzindo Interlagos com direito a derrapagens e sentidas escoriações… agora tenho quase certeza… se divertiam sim.

Por trás dos raybans e fardas acontecia de vez em quando um comentário jocoso sobre a operação em andamento. Todos ríamos: PMs e pilotos. Naqueles distantes dias, até o medo, de vez em quando, tinha motivos para brincar.

 

De São José a Olavo – A Trajetória de Um Casal Inesquecível

JORGE RODINI *

Um amor de amoreira. E mangueiras, limoeiros e tantas árvores frutíferas naquele pomar enorme que circundava nosso mundo. Cavalos de vassoura “Aiô Silver”, o cinema paradiso, a praça da Igreja, os bancos marcados com nomes das famílias.
E o quadro do São Jorge? Imponente na sala pequena ao lado da Mor. Pilhas de revistas hoje antigas, com fotos de mulheres belas de cabelos armados, de produtos inovadores à época. Na cozinha, um fogão de lenha impecável. Inesquecíveis momentos da velha senhora que sofria com feridas na perna e jamais desistia.
De tempos em tempos, repouso. Mas aquilo só lhe fazia bem quando os netos a paparicavam. E brincavam e escondiam debaixo da cama, agora já na cidade grande. Cama de ferro, fabricado pelo dono do cartório, seu marido, ex-presidente da Câmara da cidade de onde vinham.
Agora, uma casa menor, que abrigava cada vez mais gente. É uma casa árvore, onde a raiz foi se solidificando e gerando frutos e frutos dos frutos e sempre frutos. O portão branco, fácil dos pequenos pularem, o pinheiro que se empolgava, a netaiada que chegava. Na calada do dia, no silêncio da noite. E o senhor da casa árvore, lendo seus jornais, agora já de lupa, com um terno que lhe conferia austeridade, uma credibilidade patriarcal. Terminava as refeições pela salada, fazia contas enormes de somar começando pelos algarismos da esquerda. Era tradicional com o básico, mas liberal com o importante.
Aquele casal, com quadro emoldurado na sala principal, era só um. Único, imponente, humilde. Doce mulher, homem guerreiro. Um sem o outro, só pelos filhos e pelos netos.
Daquela harmonia, uma história fincou na terra. E parece que todos são pautados pela mesma fome de família.
Em todos os 25 de dezembro desde 1966, o Natal é realizado naquela casa árvore, já sem pinheiro, sem portão baixo, sem os donos legítimos, sem um par de tios, sem um par de primos, mas com alegria ímpar. A admiração é de muitos com aquela festa-bagunça organizada na varanda, na sala, na copa-cozinha, no quintal e na calçada. Sem perder a foto do meio da rua.
Cada vez mais família, cada vez menos rua. E a cada novo membro, a árvore, em forma de concreto, cuida e acolhe. Parece que a porta da casa é aberta a cada nova vida que se inicia, pelos que nunca serão esquecidos.
E, lá pelas três, a mesa está servida! Saúde! TIM TIM!

 

* Jorge Rodini é engenheiro, empresário, pai de quatro filhos e avô de quatro netos,
que gosta  de números, palavras e pessoas


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