Logo nos primeiros 10 minutos do filme “Gata em Teto de Zinco Quente” (Cat on a Hot Tin Roof, EUA, 1958) o espectador recebe, com um primor de concisão e densidade dramatúrgica, as principais informações sobre os personagens: que o principal é um alcoólatra, seu irmão um tolo, a cunhada uma interesseira, a esposa linda, mas desprezada … e todos – menos ele – estão de olho na herança do patriarca doente.
Não quis dar spoiler, mas uma amostra do grande talento com que o dramaturgo norte-americano Tennessee Williams – que assina a peça roteirizada para este filme de Richard Brooks – tece histórias fortes com muito poucos recursos cênicos, em tomadas alicerçadas principalmente em diálogos robustos, carregados de significados. São traços de sua verve de bem-sucedido autor teatral (escreveu mais de 30 peças ao longo da carreira).
A dramaturgia de Williams é tão forte que, mesmo quando suas peças viram filmes com roteiro adaptado por outras pessoas, sua assinatura pode ser percebida no estilo da narrativa e dos diálogos. Costumo dizer que ele usa as palavras como lâminas cortando os interlocutores, despindo-os de suas máscaras de normalidade para mostrar angústias, medos, desejos, culpas e pecados. Também ajudam a revelar o contorno psicológico que o autor desenha meticulosamente para cada um.
É verdade que só “feras” pegaram a direção de filmes com histórias de Williams, como os mestres John Huston (“Noite do Iguana”), Elia Kazan (“Boneca de Carne” e “Uma Rua Chamada Pecado”) e Joseph L. Mankiewicz (“De Repente, no Último Verão”), além dos ótimos Sidney Pollack (“Esta Mulher é Proibida”), George Hoy Hill (“Contramarcha Nupcial”) e Brooks (além de “Gata em teto…”, “Doce Pássaro da Juventude”), entre outros. Mesmo assim, para mim, não deixam de ser todos “filmes de Tennessee Williams”.
O dramaturgo também roteirizou muitas de suas peças para a tela grande, a maioria em parceria com outros roteiristas mais afeitos à linguagem cinematográfica. As mais famosas são a já citada “Gata em Teto de Zinco Quente” e “Uma Rua Chamada Pecado” (A Streetcar Named Desire, EUA, 1951), que imortalizou as atuações memoráveis de Vivien Leight (a Scarlett O’Hara de “E o Vento Levou”) e Marlon Brando.
Um jeito de dizer claramente sem dizer de fato
Outra característica que considero genial na obra deste escritor é sua habilidade em abordar tabus sexuais de forma subliminar, numa época em que a sociedade consumidora de dramaturgia ainda era muito pudica e a censura rígida quanto aos chamados “moral e bons costumes”. Era preciso prestar muita atenção a certas metáforas inseridas nos diálogos e também nas construções sugestivas de algumas cenas para “enxergar” as situações que envolviam sexo.
Graças a este modo de dizer claramente, sem dizer de fato, os mais ingênuos simplesmente não entendiam a totalidade do que era exposto, mas o pouco que entendiam era o bastante para não perderem o impacto da história. Por exemplo: na primeira vez que assisti a “Uma Rua Chamada Pecado”, muito jovem ainda, na cena mais forte do filme só entendi que Leigh e Brando se enfrentaram numa cena em que ela saiu subjugada. Só na segunda vez que o vi, mais velha e amadurecida, compreendi como: houve um estupro ali. Também só entendi da segunda vez que Blanche era ninfomaníaca (uns pedaços de diálogos dela aqui, uma tentativa de sedução de um jovem acolá são as evidências). O filme, aliás, é todo sobre desejo e suas implicações, como o nome original (Um bonde chamado desejo) sugere. Consideradas as minhas perspectivas em cada ocasião, a importância da cena mais forte foi assimilada por mim em ambas as vezes, e saber ou não sobre a compulsão sexual de Blanche não diminuiu a força da história em nenhuma delas.
A leitora Carmen Cagno também lembra, muito acertadamente, a sutileza com que é dada a entender a homossexualidade do protagonista em “Gata em Teto de Zinco Quente”.
E um último exemplo: em “De Repente, no Último Verão” (Suddenly Last Summer, EUA, 1959), Katherine Hepburn (divina, como sempre) acaba de perder o filho adulto, Sebastian, e entrega a sobrinha com tendências suicidas (Elisabeth Taylor) aos cuidados do psiquiatra Montgomery Clift, confiando que ele a tratará com lobotomia. Quando o psiquiatra inicia uma terapia com a paciente, porém, médico e espectador vão descobrindo juntos que, de todos os segredos escondidos na história daquela família, os da instável sobrinha não são os mais escandalosos. Uma das cenas mais fortes do filme consegue passar ao espectador toda a selvageria de um episódio de homofobia sem mostrar a violência de fato.
Crítico do establishment
Outro traço da dramaturgia de Williams é a crítica ácida e impiedosa à ordem estabelecida na sociedade norte-americana, com sua ideologia dominante impregnada de alienação e individualismo. É verdade que o conjunto de sua obra descreve mais a cultura sulista dos EUA, já que ele era daquela região (nascido no Mississipi, viveu também no Missouri), mas Williams consegue colocar todo o pensamento estadunidense nos microscosmos de suas peças.
Sinto falta, na dramaturgia cinematográfica de hoje, desse sotaque teatral nos roteiros, de histórias que não subestimem nossa capacidade de dedução e raciocínio e de roteiristas que não tenham medo de criar diálogos robustos e cheios de camadas. Mas, infelizmente, Tennesse Williams só existiu um!