Tenho uma inveja boa da geração que cresceu assistindo/lendo à série Harry Potter. A minha não contou, no cinema, com um produto dramatúrgico que lhe alcançasse tão certeiramente neste período crucial de passagem da infância para a adolescência. Descontados os resumos inevitáveis para fazer caber a história de cada livro nos roteiros de cinema, a saga do bruxinho resultou muito bem filmada e interpretada para as telonas. Acaba sendo um suporte visual para a mágica obra literária de J. K. Rowling, que soube dosar com maestria em seu caldeirão doses de fantasia, mitologia, arquétipos psicanalíticos e temas caros ao universo infanto-juvenil.
Vamos deixar de lado os preconceituosos que torcem o nariz para qualquer dramaturgia que vire fenômeno de massa e admitamos: a série “Harry Potter” é a obra (bem sucedida) de uma geração. E esta é uma ótima notícia! Porque quem cresceu com a série pode ter apreendido, com os conflitos enfrentados pelo bruxinho órfão, valiosos valores morais por assimilação inconsciente – alguns deles perdidos dentro dos novos modelos de família, em que muitos pais atarefados (ou desinteressados) demais deixam à escola a formação moral que deveria vir de casa.
É grande a carga de lições passadas pela obra e elas podem salvar uma geração da tendência ao ódio e à intolerância, por exemplo. Entre as mais importantes, a de que são as escolhas pessoais e não uma pré-determinação genética ou cármica que definem o tipo de pessoas que somos/seremos. Outra: de que a intolerância está na raiz dos regimes autoritários e de toda guerra.
A saga traz ainda lições sobre amizade, abnegação e sacrifício – qualidades reduzidas ao status de cafonice em um modelo de conduta individualista cada vez mais em voga nesta era da informação. Harry não será o único herói a dar exemplo delas. Como pontuou muito bem o crítico de cinema Luiz Carlos Merten, à época do lançamento de “Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2”, o último filme da saga descortina outro herói, “o verdadeiro herói, que tem que trair para servir o objeto de sua devoção”. O que carrega bravamente o ônus da antipatia e do julgamento injusto em nome de uma causa maior que ele mesmo.
E correndo o risco de assumir de vez a pecha de cafona, atrevo-me a dizer que ainda não inventaram nenhuma motivação mais legítima para escolher o que é certo – pautando como certo o que é bom para toda a coletividade – do que “gostar do outro como de si mesmo”. Isso lembra alguma coisa?