Nossos olhos se encontraram assim que me sentei em uma das cadeiras na recepção da clínica fisioterápica. Elas ficam dispostas em fileiras, umas viradas para as outras, talvez para forçar a interação entre os pacientes – mas o que costuma acontecer é de todos ficarem passeando as pupilas, nervosa e artificialmente, por tudo o que não forem “os outros”.
Ele não. Já devia estar me observando há alguns segundos quando meu olhar foi atraído pela insistência do seu. Nem piscou quando finalmente o notei. Continuou a me esquadrinhar com naturalidade e até um certo sentido de direito.
Mandei-lhe uma piscadela.
Ele não reagiu logo, mas o risquinho que era sua boca relaxou levemente no esboço de um “quase sorriso”.
Continuou a me encarar tranquilamente, como se eu não percebesse, e assim permaneceu mesmo quando desloquei minhas pupilas num olhar vesgo.
Desta vez o desenho de um sorrisinho foi inequívoco e passamos então a uma “conversa” sem falas, feita só de pequenas contrações musculares de rosto: um arquear de sobrancelhas como interrogação, um enrugamento de nariz em aprovação, uma tremidinha de olhos – como a de meus gatos quando me acarinham de longe.
Tudo à vista de todos, mas de ninguém ao mesmo tempo, já que “os outros” continuavam a se ocupar de seus esforços em ignorarem-se mutuamente.
Entramos assim numa “bolha” só nossa, feita de compreensão silenciosa.
Entramos assim numa “bolha” só nossa, feita de compreensão silenciosa
Sempre tive facilidade em atrair o olhar de crianças em lugares públicos. É como se eu ocupasse junto com elas uma dimensão especial, como se a criança que sobrevive em mim fosse reconhecida e cumprimentada. Assim foi com aquele menino de óculos grossos e perninhas atrofiadas que agora me acariciava com um meio sorriso e olhar de curiosidade.
Mas então um chamado nominal que ignoramos acionou sua mãe, que o empurrou do próprio colo para levantá-lo e colocar seu corpinho magro na posição de elevá-lo novamente em seus braços. E ele seguiu agarrado ao pescoço dela, mas de rosto e olhar voltados para mim, como a despedir-se em silêncio.
Retribuí com o formato de um beijo mudo nos lábios, que desta vez me valeu um indubitável sorriso de rosto inteiro, que expôs a gengiva alta emoldurando dentes encavalados.
Uma doçura de sorriso! Franco, genuíno, sem medos.
Quando eu mesma fui chamada, do corredor o vi deitado no divã de uma das salas tendo as perninhas atrofiadas manipuladas por uma fisioterapeuta. Ela lhe arrancava gargalhadas fazendo dos exercícios brincadeiras.
Um sorriso involuntário me escapou e tive vontade ir lá abraçá-lo e lhe dizer o quanto é especial. Não por ser criança e menos ainda por ser diferente, mas por se deixar amar tão facilmente.
2 comentários
Vcs dois são igualmente especiais!
Que lindo!!! Me emocionei!!
Parabéns pela sensibilidade de observar, sentir e escrever.