Outro dia li em alguma postagem em algum lugar que existe um verbo em alguma língua (tem cara de alemão) para expressar aquele sentimento de cobiça pela luz acolhedora das casas alheias. Nunca resisti a essa luz, que para mim é sempre amarela. Eu, crescida em uma chácara no interior e em uma cidade onde todas as amigas e amigos moravam em casas, ficava maravilhada quando ia a São Paulo. Me demorava em cada prédio com inúmeras luzes que me faziam querer entrar pelas janelas. Além de me perguntar como seria morar em cima ou embaixo de alguém, imaginava que dentro de cada janela com luz amarela havia pessoas reunidas em volta de uma mesa com café e pão quente. Há pouco tempo, com uma amiga ao lado (quer dizer, há pouco tempo antes da pandemia, quando andávamos ao lado de amigos), olhei uma dessas janelas e disse: parece que está tudo tão bem lá dentro, né? É, parece, ela disse, mas você sabe que não está, né? E a pandemia nos permitiu entrar por todas essas janelas.
São tantas reuniões, algumas parecem intermináveis, que depois de uma hora já fico arrastando a tela para o lado para enxergar pelas frestas. Nas estantes com livros, clássico da pandemia, espremo os olhos para tentar identificar algum título. Nessa investigação, sim, eu ficaria horas. Os quadros e pôsteres nas paredes. Os vasos de plantas. Há quem goste de pedras, com ou sem fontes. Janelas com cortinas. Persianas. Outro dia me apaixonei por uma poltrona, mas não tive coragem de perguntar, eu nunca tinha falado com aquela pessoa, onde ela havia sido comprada. Em outra reunião, com alguns conhecidos e outros desconhecidos, vi uma pessoa (dentre as desconhecidas) comendo e tomei a liberdade para dizer que jantaria com ela. Fiz meu prato e até brindamos enquanto a reunião começava. E não são poucas as vezes em que o papo no chat migra para outras questões: Fulano, esse quintal é da tua casa? E você, Fulana, está na praia? Nossa, que objeto é esse aí no canto, uma luminária? Bonita, hein? E aquela máquina de escrever aí no canto, funciona? E por alguns minutos me sinto próxima das pessoas, convidada a entrar em um canto especial da casa de cada um.
Penso agora que a sensação é parecida com a que tenho quando abro um livro. Abrir um livro é sempre aceitar um convite para conhecer algo de especial. E terminar pode deixar tanta saudade. Li a Trilogia do Cairo já faz uns vinte anos. Até hoje penso em Amina, Khadiga e Aisha. Chego a me perguntar, durante uma caminhada ou enquanto seco o cabelo, por exemplo, o que elas estarão fazendo. Porque Naguib Mafhouz me abriu a porta da casa dessa família e eu entrei. E talvez, daqui alguns anos, eu me pergunte como estará a dona daquela máquina de escrever e o que estará fazendo aquele cara com quem jantei antes de começar uma reunião e que provavelmente nunca mais vi.
1 comentário
Altíssima percepção da vivência observada com maestria. O ‘zoom in’ a partir das retinas traz muitas histórias, muitas vidas, muitos relatos que precisam de uma narrativa. Parabéns pelo blog e por este e outros textos, tão inteligentes quanto mágicos.