Socorro, Guima!

João Pedro. 14 anos. Setenta tiros. Se-ten-ta-ti-ros. Dentro de casa. Setentatirosdentrodecasa. Ágata. 8 anos. Oitenta tiros. Oi-ten-ta-ti-ros. No carro. No carro da família. Oitentatirosemumcarrocomumafamíliadentro. Quem mais? Quantos nomes não sabemos? Alô, Brasil, quem vamos matar hoje? Quantas crianças? Mas crianças negras, hein! É, a carne negra é a mais barata do mercado. A primeira vez que li essa frase… só consegui paralisar.

E tem o Covid-19 e quase vinte mil mortos no Brasil. Quase vinte mil pessoas mortas e os feriados de novembro e julho e junho, nem sei mais que dia, mês ou ano é hoje, os feriados adiantados e nós vamos para a praia, que é para onde se vai nos feriados se você não for parte dessas famílias mortas pelo Estado dentro do carro ou dentro de casa. E não tem ministro da saúde. Nem da cultura. Mas não precisamos. Tem cloroquina e tubaína. E parece que tubaína era o apelido de uma tortura praticada na ditadura militar. Não vou conferir a veracidade da informação. Não quero saber. Não aguento. Tudo dói. A unha, o fio do cabelo, as solas dos pés e as palmas das mãos. A minha incapacidade dói. Ser essa pessoa que nada faz diante do horror dói. Dói em lugares fora do meu corpo, como se a alma fosse concreta. Uma dor que tento alisar com a mão, mas a mão não alcança. Porque não há algo para ser alcançado. Não há coisa a ser alcançada. Coisa.

Meu filho não dormiu uma noite inteira assustado com um vídeo que viu dentro de um jogo que nem sei qual é porque ou trabalho e cozinho e limpo ou vejo o que as crianças estão fazendo na Internet, aqui, ao meu lado. O vídeo era sobre pessoas que moram em uma cidade e tomam uma pílula da felicidade, mãe. O nome disso é São Paulo e Rivotril, respondo para o meu filho, que não entende, claro, ainda bem, e me olha arregalado e diz que felicidade não se toma. Felicidade se sente, mãe. Sim, meu filho, é isso, felicidade é rara e se sente, e geralmente naqueles momentos de distração, horinhas de descuido, como escreveu o velho e grande Guimarães Rosa! Salve, Guimarães! Felicidade singela que tem me escapado porque tem morte demais e descaso demais e ódio demais e falta de responsabilidade demais. Porque tem meu pai no hospital sem poder receber visitas e não, não é Covid-19. É que outros vírus e bactérias e células cancerígenas também não respeitam o isolamento e continuam por aí, rondando nossos corpos e o ar poluído que ainda respiramos. É que tem a vida.

E tem a Internet que cai. O aplicativo do banco que não funciona. O sobrepeso. A fruta que apodreceu e ninguém viu. O leite que azedou. O supermercado que não entregou. A ligação via Internet que precisa ser reiniciada uma, duas, três, não aguento mais, vezes. A minha angústia que é mais veloz que meus dedos no teclado e sai tudo errado, tudo confuso, tudo cansado.

Tem um grito aqui, preso entre o estômago e a garganta. Um grito que fermenta, sem buraco por onde sair. Vou inchar. Estou inchando. Estou inchada. Essa semana, acho eu, porque certeza não tenho nenhuma, só Guimarães pode me salvar.

9 comentários

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    • Márcia em 27 de maio de 2020 às 21:57

    Se não fosse triste, doído, desesperançoso, eu diria que é lindo. O que ele é é real. Parabéns.

    • Vera Lucia Rodella Abriata em 22 de maio de 2020 às 10:31

    Catarse pura. Pra lembrar
    o Guima, pode ser que haja “um milagre” sendo gestado e não estamos vendo.

    1. Obrigada. Vamos manter olhos, coração e mentes abertos, né? Luciana

    • Alexandre Bastos em 22 de maio de 2020 às 10:27

    Adorei seu texto.

    1. Muito obrigada, Alexandre. Um abraço, Luciana

    • Matilde Leone em 22 de maio de 2020 às 10:01

    Luciana, o Brasil está inchando e vai explodir em brasas. Como disse Lima Duarte sobre a morte de Flávio Migliacio, “eu entendo”. Mas eu não aceito. Lindo texto sobre a dor, a desesperança é a indignação.

    1. Obrigada, Matilde. Esse saiu doído.

    • Márcio em 22 de maio de 2020 às 08:19

    Belo texto num contexto triste de ler, de viver, de sentir. A dor não passa, só alivia quando lemos algo assim que nos dá esperança em saber que não estamos vendo tudo isso, vivendo tudo isso, sentindo tudo isso… sozinhos. A solidão da clausura angustia, mas a leitura liberta, aconchega, faz parecer junto o que está separado. Obrigado!

    1. Obrigada, Márcio! Escrevemos para isso, para não estarmos sozinhos. Obrigada, mesmo.

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