A parábola do “Bode na Sala” me foi contada pela primeira vez por um amigo querido e desde então a recordo sempre que uma situação remete a sua distorcida “moral da estória”. Resumo de memória, não sei se corretamente: conta que um homem pediu conselho a um sábio sobre como melhorar sua vida em família, desestabilizada por queixas da mulher estressada, dos filhos sempre querendo atenção e dele mesmo, desejoso de mais tranquilidade. O sábio o orientou a comprar um pequeno bode e colocá-lo para viver na sala de sua casa. Uma semana depois, o homem voltou dizendo que o clima em família só piorou, porque o bode quebrava as coisas e deixava a sala constantemente suja e fétida, fazendo todos infelizes. O sábio então mandou sumir com o animal e limpar a sala. Na semana seguinte, quando questionado sobre a vida em família, o homem disse que nunca esteve tão boa, agora que os familiares haviam aprendido a valorizar seu lar, que sem o bode tornou-se “o paraíso na Terra”.
Tenho certeza de que quem contou a parábola pela primeira vez não tinha nada contra bodes – que são animaizinhos adoráveis e até bonitinhos, embora incompatíveis com ambientes domésticos – e tinha como única intenção oferecer uma lição de resignação. Ocorre que, desde então, empresas e governos têm aproveitado a ideia como estratégia para livrarem-se de reclamações e cobranças por problemas que têm o dever de resolver – descobriram que fabricar um problema maior e depois eliminá-lo, além de fazer as pessoas esquecerem o anterior, as deixam extremamente agradecidas a eles.
O que me fez recordar a parábola hoje foram vários comentários de redes sociais pontuando que os estadunidenses não votaram para colocar o democrata Joe Biden na presidência, mas para tirar o republicano Donald de Trump de lá. Desse ponto de vista, a grande comemoração que se segue é mais pelo alívio de terem conseguido tirar o “bode da sala” (sendo Trump o próprio), o que faz todos esquecerem que Biden já plagiou discurso, votou pela invasão do Iraque e foi acusado, por ninguém menos que sua hoje vice, Kamala Harris, de ter apoiado congressistas com bandeiras racistas.
Quem me conhece ou me lê sempre sabe que não sou a pessoa mais otimista do mundo, mas desta vez sinto-me na obrigação de assumir, nesta novela, o papel de Pollyanna (a personagem de Eleanor H. Porter que consegue ver o lado bom de tudo com seu “jogo do contente”). Tudo bem que Biden não seja, assim, “um Obama”, mas permitam-me ficar feliz por testemunhar que uma parte majoritária da população do país mais poderoso do mundo decidiu que não quer mais ser governada pela cartilha direitista-armamentista-negacionista praticada por Trump. Mais: os números recordes de votação demonstram que a população se mobilizou para materializar esta escolha e deixar bem clara a rejeição ao bode da vez (nos EUA, além do voto não ser obrigatório, é um processo burocrático difícil, que desanima muitíssimos eleitores a exercê-lo).
Ok, a votação foi apertada… o país seguirá dividido, com pouco menos da metade ainda a defender a cartilha de Trump… podem advir conflitos internos… Biden pode decepcionar… E, SIM, posso estar sob o efeito “bode na sala”, mas (pro diabo com a racionalidade!) neste momento quero mais celebrar o fato de que nem todos enlouqueceram no mundo, que muitos ainda rejeitam líderes que colocam o próprio projeto de poder à frente do bem-estar coletivo e cultivam valores contrários aos Direitos Humanos e à coexistência pacífica entre diversos.
Um bode se foi! É um começo!!! Quem sabe mais pessoas consigam, finalmente, enxergar os que estão vivendo nas “nossas salas”?
Ainda há esperança! E ter esperança sempre vale a pena. Que Deus nos ajude a aproveitá-la.
Amém!
2 comentários
Como eu já lhe disse, meu alívio maior vem de outra fonte: Kamala Harris. Ter uma mulher – negra e filha de imigrantes – à testa da vice-presidência e do senado americano e poder contar com sua história de luta, inteligência, bom-senso e talento de negociação são passos extremamente importantes para “moderar” o comportamento eventualmente belicista/machista de Biden.
Confesso, no entanto, que desejei e rezei muito para afastar o bode laranja das salas da Casa Branca e inspirar o bode tupiniquim a ir procurar sua turma em outro pasto. Estávamos gritando com nossas últimas forças “não consigo respirar”. O clima de ódio, o beneplácito aos supremacistas brancos, a separação de crianças de seus pais imigrantes, a religião servindo para justificar a violência contra tudo e todos, o abandono do Acordo do Clima de Paris, a retirada de apoio financeiro e a ameaça de abandono da OMS, etc. etc. etc. são razões mais que suficientes para celebrar a derrota de Trump.
Tem ainda um outro aspecto de alívio que pouca gente abordou: o encontro de uma alternativa política de centro para acabar com a extrema polarização ideológica que infelicita um grande número de países em todo o mundo. Temos de encontrar urgente o “nosso Biden” – alguém sensato, com visão de futuro e capacidade de gestão, ainda que imperfeito – para devolver um pouco de paz para nossos espíritos. Precisamos todos de um pouco de humildade para reconhecer que não existem – nunca existiram – salvadores da pátria.
Nosso bode tem de voltar logo para seu habitat