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Que número sou eu?

Sou várias pessoas, pois muitos números me identificam. Tenho pensado nisso. Se vou ao médico, sou aquela de cartão número tal, que está com ar desanimado por causa da dor. Assim sou vista pela recepcionista e pelo médico que, aliás, só vai tomar conhecimento mesmo do meu joelho ou do meu estômago.

Já, no banco – aí são muitos números – sou a mulher que retira dinheiro para fazer compras, um pouco mais animada que a anterior. Aí chego ao posto de vacinação, carteira número tal, sou aquela mulher que ama a vida e, por isso, quer prevenir doenças. Então, o guarda de trânsito me para na rua e pede vários números: carteira de habilitação, documento do carro. Sou a mulher ágil e independente que não depende de ninguém para levá-la para lá e para cá.

Então, assisto a um filme no on demand e sei que meus números estão quase todos lá na provedora: celular, CPF, endereço, telefone fixo, Rg, sou a mulher ligada em cultura, documentários, arte.. Chegam as eleições. Outros números no título de eleitor: sou a mulher que cumpre seus deveres cívicos na esperança de um país melhor

Ah, o meu passaporte! Bem vestida, fazendo o check in, mulher que ama viagens e sempre aberta a conhecer outras culturas. E têm as senhas: do banco, do Face, do e-mail, do site de notícias e de qualquer outro lugar em que me cadastrei. É isso: sou uma pessoa cadastrada também na pizzaria, na lanchonete, na livraria, na farmácia, no supermercado, na lojinha de roupa, no posto de gasolina, na lista telefônica e em todas as páginas que eu abro para procurar um simples perfume, um aspirador de pó ou um liquidificador. E tem a placa do carro.

É a matemática comandando a vida. Todos sabem tudo a meu respeito através dos números. Quando foi que isso aconteceu?

Se tudo é número, eu também devo ser um. Procurei a numerologia e descobri: sou número três.

Isso é bom? Bem, alguns pontos muito positivos, interessantes, e outros nem tanto e prefiro pular essa parte. Mas, um dia fui número cinco. E isso ficou gravado em mim. E é isso que quero contar.

Eu estava na escola ( ginásio na época) e pode parecer estranho, mas eu era número cinco, quando deveria ser um número maior por uma questão de ordem alfabética, Acho que era pelo lugar que ocupava. Havia cinco fileiras de carteiras e eu sentava na primeira carteira da quinta. Daí, número cinco. Ficou marcado porque o professor de matemática – vejam só, matemática outra vez- me odiava. Era nítido. Todas as perguntas que ele fazia eram para mim.

– Número cinco, responda.

Resolver exercício na lousa?

– Número cinco, lousa!

Eu ia mal em matemática apesar de me interessar pelo mistério dos números. Ia mal por causa da implicância do professor.

Bem, o tempo passou e muitos, mas muitos anos depois, um belo dia, entrei em uma mercearia e, pouco depois, percebi que um homem me olhava como se tentasse me reconhecer. De repente, em meio a várias pessoas, ele perguntou – em voz alta e apontando o dedo para mim:

– Você não é o número cinco? Foi o mesmo que dizer:

– Você não é aquela que ia mal em matemática?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Efêmera

ELY VIEITEZ LISBOA *

O Criador chega perto de suas criaturas no pátio do Limbo. Estão sonolentas, enoveladas, em latência, à espera do vir-a-ser. Toca com indicador em Efêmera. Ela se abre em flor, espreguiça-se, bela, nua, pura. Os olhos azuis veem o Criador.

– Que quereis de mim?

– Tu vais ao mundo lá embaixo, em missão especial. Tens um dia para te tornares adulta, sábia, encontrares um parceiro, ficares grávida, deixar lá teu filho e voltar.

– Um dia?!

– Não te preocupes; é no meu calendário. Lá, os homens marcam o tempo de maneira complicada e não muito eficiente, com minutos, horas, dias, semanas, meses, anos.

Efêmera cobre os pequenos seios claros, firmes, os mamilos róseos. Depois as mãos longas descansam no colo, como folhas justapostas. Vira-se para o Criador. Os cabelos muito claros reluzem, trespassados de sol.

– Quando devo partir?

O Criador nada responde; com um simples aceno de mão dá a silenciosa ordem.

Efêmera, aureolada por uma energia azul, vai desaparecendo. Surge lá embaixo, na terra dos Homens, em um trigal, pintalgado de papoulas. Ama a cor do trigo, que se mistura com o dourado de seus cabelos. Acaricia as pétalas das papoulas magriças, equilibrando-se sobre os caules frágeis. Efêmera caminha entre os trigais, passa por um regato límpido. Para, encantada: a água é prata líquida, escorrendo sobre as pedras limosas. É belo o mundo dos Homens! Pouco adiante, a macieira pejada de frutos mata-lhe a fome, o caldo doce, de gosto bom, descendo-lhe pela garganta. Efêmera procura as grandes estradas que a levarão aos Homens, onde está o seu destino, a missão. À noitinha, cansada, repousa perto de um caramanchão de buganvílias coloridas, que se esparramam sobre um grande muro de pedra. Do outro lado estão os Homens.


“Efêmera, aureolada por uma energia azul, vai desaparecendo. Surge lá embaixo,
na terra dos Homens, em um trigal, pintalgado de papoulas. Ama a cor do trigo”


Quando entra na Vila, todos se espantam com o insólito de sua nudez, o exagero da beleza, o translúcido de pela alva. Ela caminha vagarosamente e vai sentar-se sob uma figueira centenária. A vida na pequena aldeia muda. Todos vão lá para vê-la, os homens a desejam, as mulheres a odeiam. Só as crianças e os cães a recebem normalmente, com carinho, e estão sempre aos seus pés. O chefe da Comunidade presenteia Efêmera com um manto azulado, quase tão belo quanto seus olhos, manda-lhe joias, manjares finos. Ela aceita o manto. Para se alimentar, prefere figos e amoras sumarentas que as crianças lhe trazem.

Como tudo na vida, o povo acostuma-se à presença de Efêmera. Ela espera, calma, porque sabe. A hora certa de realizar sua missão está próxima.

É ao entardecer do sétimo dia, no calendário dos Homens, que Sore chega. Vem das montanhas. Entra na aldeia, belo, alto, o largo peito nu, os ombros cobertos de peles. Os cabelos vão até os ombros e são escuros como seus olhos grandes. As mãos enormes seguram o bastão real; ele é o sucessor, o príncipe. Seus pés o levam até a figueira. Olha para Efêmera com o deslumbramento das surpresas únicas, o coração batendo acelerado. Ela, ereta, sorri, atraindo-o como um ímã. Deixa cair aos pés o manto. Estende-lhe a mão. Sore encontra sua companheira, ele, o guerreiro mais cobiçado por todas as mulheres.

Envolve-a com os braços, misturam-se os cabelos, os dois corpos se juntam. Deitam-se. Sore cobre-a com a doçura das brisas e rega seu ventre com o néctar da vida. Efêmera sabe. Uma criatura dorme no seu útero, túrgido de futuro: Ele, o Salvador. Será um guerreiro belo e forte como o pai e terá o céu nos olhos, como Efêmera. No dia certo ela se deita e espera. O filho sai-lhe do ventre. Ela o envolve com o manto real. Beija-o e parte.

Muitos anos depois, ainda contam que no dia em que encontraram a criança, uma luz azulada envolvia a figueira. Sore viera, tomara o filho nos braços e o levara para cumprir o seu destino.

Lá no alto, no calendário eterno, havia se passado mais um dia. E tudo se cumprira como se deve, nas sábias leis do Criador.

 

* Ely Vieitez Lisboa
escritora com 14 livros publicados, autora do romance epistolar “Cartas a Cassandra”, tem uma coluna dominical nos jornais A Cidade e Metrópolis, de Ribeirão Preto, no jornal Sudoeste, de São Sebastião do Paraíso, e escreve eventualmente no Linguagem viva, de São Paulo.

 


Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!

Pedras no caminho

Agora sei. Somos pedras. Viemos dela. Um estudo da NASA mostra que a primeira receita de DNA está contida em meteoritos. Mas gosto de pensar que cada um se originou de uma pedra preciosa.

Há quem afirme que viemos do pó e ao pó retornaremos. É bíblico, e outras teorias nos confundem como: somos fruto de geração espontânea – e também que nosso berço é a África: todo o DNA presente nos humanos é derivado da Eva mitocondrial, conforme dizem alguns cientistas.

Bem, pensando em minha mãe como uma pedra, imagino que ela tenha sido um diamante. Faz sentido: ela amava jóias, principalmente com brilhantes. Algumas pessoas me lembram uma esmeralda, outras, rubi, safira, água marinha….

Parece uma discussão boba, e é boba mesmo. Temos tanta coisa para fazer, e saber como foi o começo e como será o fim não muda nada, e estamos sempre no meio – agora de um lamaçal – nem passado, nem futuro – e ninguém bate o martelo, muito menos o Papa.

O que penso que sei é que a evolução tem fases e não pode ser que acabe aqui, em nós, assim sem mais nem menos, só para dar serviço para o IBGE.

Tudo isso para falar de pessoas que pensam ser o topo da evolução humana. Que não precisam aprender mais nada, ou melhor, ninguém tem nada para ensinar nem algo a se descobrir já que a presença delas na Terra é um favor para os outros. Existem pessoas assim? Já vi algumas. E uma delas conheci – infelizmente – numa reportagem para um jornal de São Paulo, quando eu morava lá.


Bem, pensando em minha mãe como uma pedra, imagino
que ela tenha sido um diamante.  Algumas pessoas me
lembram uma esmeralda, outras, rubi, safira, água marinha….


Precisava entrevistar famosos sobre uma viagem que fora muito especial, um marco na vida deles. Não vou citar os nomes. É desagradável. Não é ético. Todas foram muito elegantes, colaborativas, e os casos contados, bons também. Menos uma.

Um publicitário de renome ( palavra mais pernóstica) parecia ter engolido o rei. Aconteceu assim: sou míope, uso óculos, então não enxergo a uma certa distância. Naquele dia, muito calor e sol, eu estava de óculos escuros (de grau) e quando cheguei à agência do rei na barriga, vi que havia esquecido meus óculos de lentes claras em casa. Acontece.

Depois de uma longa espera – acho que estava em um processo de criação muito importante – ele me atendeu. Ele de um lado e eu do outro de uma mesa enorme, bem larga. Tirei os óculos escuros porque é muito deselegante e sem sentido falar com alguém sem poder olhar nos olhos, ver o gestual. E me dei conta que àquela distância eu não poderia, digamos, interagir: ele se tornou uma imagem borrada. Então, com educação – sou educada – expliquei que esquecera meus óculos e sugeri sentarmos mais próximos um do outro. Ele me pareceu indignado e com ar meio enojado, respondeu:

– Não, não!! Está muito bom assim.

Minha vontade foi de ir embora sem dizer nada. Apenas dar as costas. Mas, sabem… é trabalho, precisava do dinheiro. Então não tive dúvida: coloquei os óculos escuros e falei com ele. Aliás, só pra encerrar: uma entrevista pífia, uma historinha sem graça. Como ele. Há pouco tempo, li uma declaração dele na imprensa afora, que enfureceu muitas mulheres. Pensei: não mudou nada. Qual pedra ele poderia teria sido?

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um fusca, um húngaro e sua aldeia tropical

JANICE KISS *

Éramos uma família simples, iguais a tantas outras que viviam na cidade que ainda não havia delimitado suas fronteiras entre o urbano e o rural. Ter fazendas a curtas distâncias da casa, criar sua galinha, plantar sua própria verdura era cena comum de uma Ribeirão Preto dos anos 1970. Hoje tem até nome pomposo para isso, “locavore” – movimento que prega o consumo de alimentos cultivados localmente. Éramos vanguarda e sequer desconfiávamos.

Mas esse nosso quintal diversificado e produtivo não era nada perto do que vi tantas vezes no preferido passeio dos domingos. Quando o Fusca azul, 66, do meu pai pegava a estrada rural que levava (ainda leva?) a Santa Cruz das Posses, distrito de Sertãozinho, eu sabia que nossa hortinha era um nada e que minha criação imaginária de porquinhos era puro devaneio de menina perto da aldeia de Joseph Kiss, o tio Zé, ou o Zé hungarês, como a pequena cidade achou por bem chamá-lo.

Não sei dizer ao certo como tio Zé, um húngaro de cabelos e olhos escuros, foi parar em Santa Cruz. Ele veio da Hungria com sua extensa família antes da Segunda Guerra porque o pai, que havia passado por toda a Primeira Guerra, anteviu que épocas sombrias se aproximavam. Muito tempo depois, conclui que de certo modo ele nunca abandonou a sua aldeia do leste europeu. Apenas adaptou-a aos trópicos, onde certamente produzia boa parte do que necessitava.


‘minha criação imaginária de porquinhos era puro devaneio de
menina perto da aldeia de Joseph Kiss, o tio Zé, ou o Zé hungarês’


Tio Zé tinha um quintal gigantesco, talvez hoje classificado como chácara ou pequeno sítio. Ali havia uma vaca (pois é, húngaros não sabem brincar), um paiol para guardar milho, galinhas com vida digna (em contraponto com a criação de escala industrial de hoje), chiqueiro com porcos (os dele eram de verdade), horta e uma infinidade de frutíferas. Na farta mesa do café, tinha pão, manteiga, queijo e sei lá quantas coisas mais produzidas pela família ou trocadas com vizinhos e amigos – e há quem tenha descoberto o conceito de economia colaborativa apenas agora…

Mas Joseph Kiss jamais se sentava para conversar com os seus. Parava na mesa, tomava uma xicrinha de café e ia debulhar o milho. Voltava, comia um pedaço de queijo e ia ver a água e o sal da vaca. Para conversar com ele, só mesmo o acompanhando na expedição pelo seu universo rural, tentando compreender seu português arranhado. Coisa que apenas gente adulta fazia, como meu pai ou meu avô Alexandre (irmão de José).

Ao modo de uma criança, eu observava atentamente o silêncio dele e o admirava por ser incansável. Muitas décadas depois, essa forma de prestar atenção foi essencial para o meu ofício, muito ligado à agricultura, onde a urgência tem outro tempo e há que se ter uma prosa cuidadosa e sem pressa  para encontrar o que procura.

Quando o Fusca 66 rumava de volta para casa, havia sempre uma parada na beira dos canaviais (às vezes isso acontecia na ida). Meu pai cortava pedaços de cana para chuparmos ao longo do caminho. Nesse percurso foram sendo construídas histórias e memórias, das quais me afastei por muito tempo e hoje volto para elas, na esperança de um dia ter minha própria aldeia tropical. Será que Joseph, que há muito tempo vive em algum lugar desse universo, vai me visitar?

 

* Janice Kiss
Jornalista ligada à agricultura, meio ambiente e ao valor histórico dos alimentos. É ribeirão-pretana, vive em São Paulo e já andou muito por aí escutando e contando histórias

 


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No abismo

Havia uma criança, sei que ela estava lá, com os olhos escuros cheios de lágrimas, esperando por alguém, não sei quem, quando os cavalos passaram galopando balançando as crinas sedosas, espirrando água das poças da rua esburacada. Um deles parou de repente e olhou para a criança como se criança também fosse, e começou a relinchar puxando conversa e a criança parecia entender porque gesticulava em resposta. Acho que ela pedia socorro, mas o cavalo tinha de continuar a marcha e não fez nada.

Não vi quando a criança desapareceu, quando olhei não estava mais lá, nem o cavalo, somente um cachorro pequeno de rabo comprido e pelo amarelo e olhos vermelhos. Fiquei com medo, muito medo, pois parecia que ia me arranhar e morder. Então, eu chamei alguém, não sei quem, que veio correndo em meu socorro, me puxou pela mão e deslizou comigo por um abismo do qual nunca voltei.

Quando acordei estava olhando para o fundo na esperança de encontrar um apoio, mas não via nada, apenas uma espiral que levava para mais fundo ainda, talvez para o centro da terra. Seria eu Alice? Mas nada me parecia ser o país das maravilhas e sim, um amontoado de dores e lágrimas de pessoas esquecidas no corredor da existência. Procurei forças para me apoiar em um pedaço de tempo, mas o tempo se esvaiu e senti que não teria mais salvação. Mas qual seria a salvação? Uma voz me disse que não seria ali que encontraria a salvação, pois a Terra se abrira em todos os cantos do mundo e, em todos os lugares, as pessoas estavam sofrendo, jogadas de um lado para o outro, rejeitadas aqui e ali, mães não podendo amamentar seus filhos, atravessando mares revoltos, afogados nas águas azuis, para fugir da fome e da morte, das bombas atiradas por homens sem coração, destruindo casas, palácios e jardins e mais os pactos de sangue, as ameaças nucleares, as florestas ressecando, os governantes imorais, o Brasil enlameado. Por quê? – perguntei. Mas a voz não soube responder, pois ela mesma já havia fugido do rugido ensurdecedor de monstros pré-históricos que surgiam ressuscitados cobrando vingança por eras passadas.

Índios passaram galopando, armas em riste, gritando guerra, reclamando terra, lagoas e matas, montes de esqueletos se moviam buscando ar no fundo das covas, balas chicoteavam no ar, crianças caíam atingidas no peito. Então, não quis ver mais nada, nem ouvir e deixei o abismo me engolir.

Ah! Mundo. Ah! Mundo, para quê foi criado? Para isso?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um Amor para o Rei Lear

Ele parecia um velho feliz. Quem dizia isso? Todos os que o conheciam. Sim ele estava sempre sorrindo apesar da artrite que corroía suas articulações, das dezenas de comprimidos para o coração, diabetes e pressão alta. Mas ninguém nunca perguntou o que Rafael sentia, como ficara depois da morte de sua mulher, Lavínia, quando ficou sozinho naquela casa grande onde foram tão felizes, as noites insones, a solidão dos domingos infindáveis. Nem mesmo os filhos, para os quais ele deixou a empresa próspera, construída com muito suor e pelo comando da qual eles viviam se digladiando. Já disse várias vezes que os filhos não conhecem a história de vida dos pais, como se eles, os pais, existissem apenas depois que eles, os filhos, ficavam adultos.

Nas ocasiões em que estavam juntos, como um almoço comemorativo, Natal e outros desses momentos em que todos parecem se amar, depois de três taças de vinho as coisas mudam um pouco de direção e os assuntos começam a ficar estranhos e cada um vai para um canto formando grupinhos de conversas paralelas. Família.

Ninguém falava com Rafael, podem estar pensando. Engano, falavam sim: como vai a perna, melhorou um pouco? E o cachorro, está lá ainda? Aquele tipo de pergunta feita para não ouvir a resposta, do tipo função fática de linguagem, conversa de elevador – vai descer no quarto andar mesmo, pra que ouvir a resposta? – se é que podemos levar para um lado mais gramatical.

E ele tinha sempre um sorriso, um sorriso de quem sabe ser a vida assim mesmo, um grande teatro que inspira dramaturgos desde que o mundo é mundo. Depois de comer duas fatias de tender ou peru e uma fatia de bolo, ele voltava para casa de táxi ou levado por um amigo do amigo dos filhos que, condoído, dizia: – Eu levo o senhor, não me custa nada – Existe sempre alguém gerado numa forma adequada.

E ele passava três ou quatro semanas sem notícias, sem alô, sem “como vai”. Quando ligava para um deles – os filhos – era tudo muito rápido, estavam ocupados, não podiam falar agora, ligo mais tarde. Ligavam?

Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu. Se eu tivesse estudado em tal escola, se, se, se… Simples assim? Não: é um pouco mais complicado. Mas esse não é o tópico da história.


‘Os pais são figuras eternamente devedoras dos sonhos não realizados dos filhos, culpados disso, daquilo e do que ainda nem aconteceu’


Rafael tinha um cachorro, Titã, seu companheiro silencioso, sempre encostado nos pés do dono quando este acomodava os ossos doídos na velha poltrona azul para ler ou assistir a um programa qualquer na televisão, ou passar longo tempo mergulhado em lembranças. E em uma dessas caras lembranças, estava Helena, mas não era a de Troia.

Rafael estava fazendo café quando ouviu a campanhia, numa manhã de setembro, e ficou intrigado, pois era ainda muito cedo para alguém fazer uma visita, o que, aliás, era raro. Não era uma visita e sim a vizinha com um envelope na mão dizendo que o correio colocou a carta por engano em sua caixinha. Uma carta? De quem? De onde? Nesses tempos de email e Facebook? Olhou o remetente e seu coração taquicardou: Helena Viesti.

Caro Rafael… Helena queria revê-lo… sua primeira namorada… Meus Deus, quanto tempo faz isso? Não vou contar aqui a história de Rafael e Helena, só posso dizer que o passado voltou e, com ele, a sensação de ainda ser aquele moço de cabelos negros e olhos verdes fazendo juras de amor àquela moça loira de olhos negros no banco da praça, encantada com o sorriso fácil e gentileza do amado, falando em casamento e felicidade sem fim.

Bem, os caminhos se bifurcaram; ela casou com Alfredo e ele com Lavínia. Mas existem os compartimentos secretos, as caixinhas do coração mesmo infartado. Vamos avançar a fita, pois meu espaço no Palavreira não é tão grande assim.

Helena veio, estava viúva, se encontraram, nenhum dos dois se importou com as rugas e a flacidez do outro. Decidiram ficar juntos, com Titã, é bom lembrar. Mas – existe sempre o mas – os filhos discordaram: – para que isso agora? O senhor vive tão bem sozinho, quem é essa mulher? Ela pode estar querendo tirar proveito de você, de suas posses.

– Que posses? Uma casa, uma poupança de merda e um cachorro? A empresa já é de vocês. Foi um rebuliço. Rafael ouviu sermões, impropérios e ameaças de interdição.

Então, decidiu acabar com o desconforto e reuniu os filhos para uma conversa – eles foram esperando a desistência do pai de ter alguém ao seu lado, de um final de vida mais suave, um afago, uma companheira para todas as horas.

– E então, papai, pensou bem na loucura que está fazendo?

Um filme passou diante de seus olhos. O roteiro fica para a imaginação de todos.
Então, depois de um longo silêncio, Rafael, aquele homem sempre tão gentil, sorriu e respondeu lentamente.

– Sim. Pensei. You know what? GO FUCK YOURSELF!!

 

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um Novo Caso de Amor

CAROL OLIVEIRA *

Quando o ponteiro chegou no 7, o Google enviou um aviso: trânsito intenso na sua área.

Antes que eu levantasse desesperada com a notificação, lembrei que não usava mais o carro e suspirei aliviada.

Olhei pela varanda e vi o Corsinha coberto de folhas de ipê-roxo. Parecia estar num velório, um bonito velório em sua homenagem, que sempre foi muito útil, mas precisava descansar.

Peguei minha bicicleta e segui em direção ao estúdio onde faço aulas de dança. Dei de cara com um dos cenários mais lindos de Brasília: ipês-amarelos contrastando com um grande tapete de folhas secas.

Olhei para o céu, nenhuma nuvem, tudo azul.

Mais algumas pedaladas e pude perceber algumas árvores, as quais nunca havia notado. Suas folhas eram laranjadas e se destacavam em meio a outras totalmente peladas, expondo apenas seus galhos retorcidos.

A sensação foi de felicidade extrema. Daquelas que a gente conquista sem perceber. Depois de anos correndo loucamente para cima e para baixo para chegar a tempo no trabalho, deixar menino na escola, enfrentando engarrafamentos homéricos, finalmente estava me sentindo realizada.

A decisão de estacioná-lo para sempre não foi de repente. Eu estava ensaiando há algum tempo. Fui algumas vezes para o trabalho de bicicleta, mas acabava usando o carro para todo o resto. Ele precisou dar os últimos suspiros para me alertar que não aguentava mais e que uma nova vida nos esperava. Eu ainda insisti. Uma, duas, três vezes, mas ele não resistiu. Morreu ali, em minhas mãos.

Fiquei por alguns segundos segurando o volante, olhos umedecidos tentando organizar os sentimentos. No início senti raiva, logo depois tristeza, gratidão e por fim a aceitação.

Fiz um carinho nele, uma lágrima caiu, sai de dentro, tranquei a porta e parti.

É. Ainda olhei para trás. Mas era mesmo o fim.

Mas veja só! Com a sua despedida pude perceber um mundo novo.

Não vou negar que ainda sinto a sua falta. Sinto! Mas tudo mudou em minha vida.

Gastos com mecânicos nunca mais, gasolina nem pensar, engarrafamentos, não, não.

Claro que para isso ser possível fiz alguns ajustes. Mudei-me para um local mais perto de onde faço minhas atividades, faço meus trabalhos de casa e moro ao lado da escola do meu filho. Assim, conto com caronas, Uber para locais mais distantes e bicicleta na maioria dos casos.

Ah minha bicicleta… Temos tido um lindo caso de amor.

Estou naquele momento de tentar encontrar um apelidinho carinhoso para ela. Tudo muito recente, sabe? Mas o amor tem crescido a cada dia que passa.

Ela me inspira a manter a saúde em dia, promete deixar minhas pernas mais firmes, me carrega para onde eu quiser, me dá tempo para perceber a vida ao redor, me dá uma sensação de liberdade…

Meu ex-carrinho que me perdoe, mas ele me sufocava. Era tanta tensão no trânsito que eu não respirava. Sou grata a tudo o que ele me proporcionou, mas agora a vida é outra.

Hoje sou mais feliz. Eu e minha bicicleta.

A Branquinha ou Bykinha, quem sabe Tchutchuquinha? Acho que Parceirinha é legal. Não… Brisa. Talvez Nuvem, Leve, Maneirinha, Retrôzinha…

 

* Carol Oliveira
Jornalista, artista e mãe do Miguel


 

 

 

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Meu primeiro amor

Meu primeiro amor foi um menino de não mais de 13 anos. E eu, bem, deveria ter 11. Nunca conversamos. Apenas nos olhávamos de longe e quando o via meu coração dava pulos que eu não sabia reconhecer, pois nunca sentira nada igual.

Isso aconteceu em uma de minhas férias da escola passadas na casa de uma tia querida, em uma cidadezinha, quase uma vila, não muito longe daqui.

Para mim, aquele menino não era um príncipe, porque eu não acreditava em contos de fadas, pois em minhas tardes de domingo eu assistia ao seriado do Zorro no cinema do bairro. Ele era uma pessoa que eu sempre soubera existir em algum lugar me esperando, mas só me dei conta disso quando o vi pela primeira vez. Voltei para casa e pensava nele todas as noites antes de fechar os olhos para dormir. E sonhava com o dia em que voltaria a vê-lo. E o via diante de mim cada vez que meu pai colocava um disco do Caruso na vitrola. Alguém sabe o que é vitrola?

Nas férias seguintes, voltei à casa de minha tia e tudo se repetiu. Nos víamos e parecia haver entre nós um entendimento como se pertencêssemos um ao outro e nada pudesse quebrar aquele encanto. E assim foram três anos seguidos até que minha tia se mudou daquela cidadezinha linda para outra muito, mas muito longe dali. Quando soube da mudança comecei a chorar e ninguém entendia o motivo.

Nunca mais quis passar as férias na casa de minha tia porque naquela outra cidade não havia nada que eu pudesse amar mais do que aquele menino.

Quando adulta, um dia voltei lá. Fiquei dando voltas pela cidade como se fosse possível encontrá-lo e, mesmo se isso acontecesse, será que nos reconheceríamos? E o que eu diria a ele? Eu que nunca ouvi sua voz, nem sei a cor de seus olhos.

Vivi outros amores, com intensidades diferentes porque o coração tem compartimentos onde sentimentos se alojam e um não interfere no outro, como caixas bem trancadas, e mesmo quando esse amor acaba, na verdade não acaba, fica sempre um resquício, como fímbrias em uma janela fechada.

Sim tive outros amores, mas nenhum como aquele que me fez conhecer esse maravilhoso e inexplicável sentimento, capaz de permanecer intacto, preservado, envolvido em uma cápsula e, quando quero me certificar de que estou viva, eu abro e sinto que, como disse Jean Cocteau, “amar é descer bem depressa de elevador”.

Acho que ele disse isso. Se não disse, eu digo.

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

Um Ângelo de Jesus

Um homem tentou invadir a entrada principal do Palácio do Planalto.

A manchete é antiga. Mas ficou gravada. Os jornais, os sites e blogs remetem a um terrorista, munido de fuzil e granadas para passar por cima de quem quer que encontrasse pela frente, disposto a chegar ao gabinete presidencial e fazer sabe-se lá o quê com o presidente.

Um atentado? Jogar uma bomba? Nada disso. A cena era outra.

O que queria o  lavrador baiano Ângelo de Jesus, de Pindobaçu, nas salas refrigeradas do Palácio? Que mal poderia fazer um Ângelo, ainda mais de Jesus, ao presidente popular, a não ser pedir socorro, como pediu ao ser dominado pelos seguranças bem nutridos, no chão e algemado como mostra a foto? “Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo.

De qualquer forma, entrando ou não na sala do presidente, seu pedido seria de socorro. Um homem que se aporta da Serra das Esmeraldas até Brasília e passa quatro dias sem comer para falar com o chefe da nação só pode estar em desespero. O desespero que ainda se avizinha de milhões de brasileiros diariamente, desempregados, subempregados, assistindo aos desmandos e à indiferença oficial, ao desvio de dinheiro público, às obras abandonadas de estradas, escolas e hospitais, enquanto nos ambulatórios superlotados de doentes e lamentos  os médicos não sabem a quem socorrer primeiro, a quem escolher para viver.


“Socorre eu, socorre eu, presidente”, suplica Ângelo


Por que um lavrador estava há quatro dias sem comer? Justo um lavrador, um homem que aduba a terra, planta e reza para a seca não matar e sobrar um saco de feijão para alimentar a família durante o ano?

Alguma alma boa, um bombeiro talvez (os bombeiros têm alma boa), deve ter dado a ele um prato de comida, um sanduíche algum pão com ou sem manteiga….

Será que deram? Prefiro pensar que sim. E um copo d’água. A reportagem não diz.

Os jornais não contaram a história de Ângelo de Jesus, aquela bela matéria de interesse humano, com uma trajetória comum a todos os pobres e esquecidos nos rincões de norte a sul, ainda mais esquecidos nos nordestes.

Não. Foi só um fait divers. Quem se importa com a vida de Ângelo? Quem se importa com o Brasil?

 


A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.

A memória de velhas crianças

GUILHERME NALI *

A vida do ser humano, se colocada em um plano cartesiano, seria assim: a linha sairia lá de baixo e iria aumentando até chegar ao ponto máximo. Depois entraria em decadência pura. Biologicamente é o ciclo natural da vida. A gente nasce, cresce, se reproduz e morre. Inevitável. Mas existe uma única coisa no mundo capaz de quebrar esse determinismo. A memória.

Há alguns anos tenho pesquisado muito sobre a memória coletiva ao redor de um acontecimento do passado. Um dos temas foi a Revolução de 1932, em Cássia dos Coqueiros – MG. Para entender o que esse evento histórico significou para aquela população fui atrás das testemunhas oculares da época. Descobri um universo de poucos senhores e senhoras de idade avançada, que eram crianças quando as tropas chegaram à pacata cidade.

Eu sabia exatamente o que perguntar a eles, para levantar meus dados. Mas uma dúvida parecia não ter resposta certa: Como eles se lembrariam de algo que aconteceu há mais de 80 anos? O resultado foi surpreendente.

Por se tratar de um acontecimento traumático para a cidade e principalmente para as crianças, que mal entendiam o que estava acontecendo – muitas famílias fugiram de suas casas com medo de tiroteio no meio da noite -, muitas imagens ficaram gravadas na memória. Mas carregadas de sentimentos do universo infantil.

“Eu passava a noite embaixo da cama. A gente ouvia o zunido das balas lá fora assim: zum, zum, zum”, declarou um dos meus entrevistados. Essa fala, cheia de onomatopeias, é característica das crianças, mas está na boca de um senhor de 90 anos. O passar dos anos, claro, trouxe o sentido que eles não entendiam sobre a revolução, mas a memória permaneceu como foi percebida na época.

Por serem os únicos a ter “legitimidade” de contar a história, todos trazem consigo um sentimento de orgulho.


“Por serem os únicos a ter ‘legitimidade’ de contar a história,
todos trazem consigo um sentimento de orgulho”


Principalmente por terem participado, de certa maneira, de um evento importante do país, do Estado – mesmo que SP tenha perdido a guerra.

A memória, carregada de sentimentos, mesmo que a escala da vida do sujeito já esteja em queda, sempre nos remete ao ponto máximo da nossa história. Assim nos tornamos importantes, imprescindíveis, eternos.

Esse é o sentimento que vou levar dos meus velhinhos, quando eles se forem. Meu avô já não pode andar mais, mas mantém a lucidez e a ternura de sempre. Minhas avós também têm lá suas limitações de saúde. Mas são puro amor, quando estão com os filhos e os netos.

Sempre que posso, peço que eles me contem uma história do passado, de quando estavam fortes, saudáveis, produtivos. E instantaneamente, pelo menos por alguns segundos, todas as dores da vida passam e são substituídas por um sentimento de glória.

Quanto mais histórias de vida nós pudermos contar e ouvir, mais chances temos de admirar o ser humano, principalmente os idosos, tão importantes na nossa vida. Essa é minha maneira de manter nossas velhas crianças vivas pra sempre.

 

* Guilherme Nali
Jornalista, editor e apresentador do
Bom Dia Cidade e Jornal da EPTV


 

 

 

 

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