Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2019 trabalhando free lance com produção e edição de conteúdos; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

Olhares falantes

Nossos olhos se encontraram assim que me sentei em uma das cadeiras na recepção da clínica fisioterápica. Elas ficam dispostas em fileiras, umas viradas para as outras, talvez para forçar a interação entre os pacientes – mas o que costuma acontecer é de todos ficarem passeando as pupilas, nervosa e artificialmente, por tudo o que não forem “os outros”.

Ele não. Já devia estar me observando há alguns segundos quando meu olhar foi atraído pela insistência do seu. Nem piscou quando finalmente o notei. Continuou a me esquadrinhar com naturalidade e até um certo sentido de direito.

Mandei-lhe uma piscadela.

Ele não reagiu logo, mas o risquinho que era sua boca relaxou levemente no esboço de um “quase sorriso”.

Continuou a me encarar tranquilamente, como se eu não percebesse, e assim permaneceu mesmo quando desloquei minhas pupilas num olhar vesgo.

Desta vez o desenho de um sorrisinho foi inequívoco e passamos então a uma “conversa” sem falas, feita só de pequenas contrações musculares de rosto: um arquear de sobrancelhas como interrogação, um enrugamento de nariz em aprovação, uma tremidinha de olhos – como a de meus gatos quando me acarinham de longe.

Tudo à vista de todos, mas de ninguém ao mesmo tempo, já que “os outros” continuavam a se ocupar de seus esforços em ignorarem-se mutuamente.

Entramos assim numa “bolha” só nossa, feita de compreensão silenciosa.


Entramos assim numa “bolha” só nossa, feita de compreensão silenciosa


Sempre tive facilidade em atrair o olhar de crianças em lugares públicos. É como se eu ocupasse junto com elas uma dimensão especial, como se a criança que sobrevive em mim fosse reconhecida e cumprimentada. Assim foi com aquele menino de óculos grossos e perninhas atrofiadas que agora me acariciava com um meio sorriso e olhar de curiosidade.

Mas então um chamado nominal que ignoramos acionou sua mãe, que o empurrou do próprio colo para levantá-lo e colocar seu corpinho magro na posição de elevá-lo novamente em seus braços. E ele seguiu agarrado ao pescoço dela, mas de rosto e olhar voltados para mim, como a despedir-se em silêncio.

Retribuí com o formato de um beijo mudo nos lábios, que desta vez me valeu um indubitável sorriso de rosto inteiro, que expôs a gengiva alta emoldurando dentes encavalados.

Uma doçura de sorriso! Franco, genuíno, sem medos.

Quando eu mesma fui chamada, do corredor o vi deitado no divã de uma das salas tendo as perninhas atrofiadas manipuladas por uma fisioterapeuta. Ela lhe arrancava gargalhadas fazendo dos exercícios brincadeiras.

Um sorriso involuntário me escapou e tive vontade ir lá abraçá-lo e lhe dizer o quanto é especial. Não por ser criança e menos ainda por ser diferente, mas por se deixar amar tão facilmente.

Uma leonina chamada Jô

Um dia depois de enterrar seu primogênito, morto de repente, aos 52 anos, de problemas de que ninguém (nem ele) suspeitava que sofresse, Jovelina Helena Bortoluci Pelegrina – a dona Jô – fez tudo igual, como em todos os outros dias. Acordou às 6h da manhã, ligou o rádio sintonizado na estação local para ouvir as primeiras notícias, fez sua toalete, o café e ligou a TV no canal que transmite a missa do “Divino Pai Eterno” – nunca perde uma.

Coincidência ou não, neste domingo o padre falou sobre resiliência. Pude ouvir do quarto em que dormi com Márcio – seu caçula – alguns trechos do sermão: “é nos momentos difíceis que temos de exercitar a nossa fé. É nesses momentos que Deus espera de nós…”.

Eu quase podia ver, como se através da parede, sua cabeça balançando em concordância, o olhar reverente e as mãos cruzadas sobre o peito. Na hora dos cânticos, que conhece de cor, eleva a linda voz de soprano com vibrato natural em louvor, como fez em tantos outros domingos durante a missa.

Mas este não é um domingo qualquer. Além do dia seguinte ao enterro de seu filho mais velho, também é Dia dos Pais (o segundo que passa sem o pai de seus filhos, morto há 1 ano e meio de câncer) … e seu aniversário de 81 anos!

Sim, Jô é leonina. Mas, apesar da juba exuberante, que mantém sempre tingida de ruivo para disfarçar os brancos, prescinde daquela auto-estima solar, típica dos nativos. Deve ter trocado sua cota por outra a mais de força, que tem de sobra.

Agora mesmo a ouço dar outra prova de como conjuga com tocante sabedoria essa força impressionante, temperada com muita humildade e fé.

Márcio vai lhe dar um beijo de “bom dia”. Ouço do quarto apenas sussurros ininteligíveis de sua voz embargada, mas a resposta de minha sogra sai nítida, tranquila e sem dúvidas: “Pensei muito. Eu não tenho o direito de… Deus me deu ele [seu filho] e Deus me tirou quando achou que era a hora. Não sou ninguém pra questionar”.

Esta é a parte em que esta virginiana, supostamente palavreira, fica sem mais palavras.

 

‘Dunkirk’: cinema de imersão da melhor qualidade

Christopher Nolan fez de novo.

Com “Dunkirk”, drama de guerra sobre episódio real da Segunda Guerra mundial – a evacuação de mais de 300 mil soldados ingleses de praia de Dunquerque, na França, durante cerco do exército alemão -, volta a proporcionar cinema de imersão da melhor qualidade. Faz valer a pena deixarmos o conforto de nossas casas, com telas de alta definição, para nos internarmos dentro de uma sala escura de cinema por um ingresso já nada barato.

E olhe que desta vez o diretor saiu de sua, digamos, “zona de conforto” – se é que se pode chamar assim materializar na tela roteiros esquemáticos, cheio de cenas fantasiosas, como os de “A Origem” e “Batman – O Cavaleiro das Trevas”. Digo conforto referindo-me a todo o suporte de efeitos especiais e atuações memoráveis de alguns dos mais bem pagos atores da indústria, que ajudavam a “garantir o show” nos títulos citados.

Em “Dunkirk” os poucos efeitos especiais não visam criar ilusões ou sensações, mas reproduzir um episódio real com a máxima fidelidade. E o elenco, apesar de contar com medalhões aqui e ali, em papéis coadjuvantes – Kenneth Branagh como um oficial que comanda a evacuação, Tom Hardy como um piloto heroico, por exemplo -, é capitaneado mesmo por atores semi-desconhecidos e/ou estreantes. Harry Styles, da banda One Direction entre eles.

Também ao contrário das produções anteriores do diretor, “Dunkirk” não acompanha a jornada de um herói. Há vários, mas nenhum com superpoderes – bem ao contrário. Confrontados pela iminência da morte em batalha, estão todos com suas fragilidades expostas, o que dá a pequenos gestos de humanidade grandes dimensões.


Também ao contrário das produções anteriores do diretor,
“Dunkirk” não acompanha a jornada de um herói. Há vários,
mas nenhum com superpoderes – bem ao contrário.


É heroica a forma como o dono de uma das embarcações civis convocadas pelo exército inglês para buscar os soldados não hesita em levar o filho que lhe restou para uma missão com perigo de morte. Também heroicas as decisões do piloto do único avião inglês que permanece no ar tentando proteger a evacuação dos soldados por mar.

Mas também há decisões de um egoísmo desesperado entre as várias histórias contadas dentro da grande história da evacuação. – sim, também é um roteiro intrincado, com idas e voltas no tempo para mostrar diferentes pontos de vista de um mesmo momento da batalha, mas de que, novamente, Nolan se desincumbe muito bem, sem confundir (demais) o espectador atento.

E não tem como não ficar atento. O ritmo do filme hipnotiza a atenção, para o que tudo contribui: a montagem impecável, a trilha enxuta, as imagens bem cuidadas… Imersão!

Ao final, assistimos a um filme de guerra que não mostra nenhum sangue derramado, nenhuma cena de grande selvageria. O realismo de Nolan prescinde dessa crueza. É onde “Dunkirk” se encontra com os demais títulos do diretor: não precisa apelar para o óbvio.

Como ensinar seus gatos a gostarem de rock

“Mamãe, o monstro ‘Rock’ já foi embora?”

Primeiro contato da audição sensível de meus gatos com nosso som reinstalado na sala, com as caixas mais altas, para dar uma acústica melhor.

Tacamos logo “Daughter”, do Pearl Jam, em alto volume.

Pulos, sustos e correria de patinhas pelo corredor em direção ao refúgio no quarto de casal.

Loki é o primeiro a vir voltando devagarinho, todo encolhido encostado à parede, como que investigando de longe um inimigo.

Corajoso, atravessa a sala, passando em frente ao som, e dá uma corridinha até a mesa onde Márcio estuda em frente a seu laptop. Sobe à cadeira ao lado da dele e usa seu miado “lamento-pedido-de-socorro” para chamar a atenção.

Márcio para e sorri pra ele: “E aí, cara?”.

Ele continua a miar, como se conversasse. Na certa reclamando com o “pai” sobre aquela barulheira desconhecida, enquanto se esfrega pra cá e pra lá nas costas da cadeira.

“É rock, bicho. Vai ter que se acostumar!”, diz o Ma.

A esta altura já está tocando “Lightining Bolt”. Na hora dos solos de guitarra mais irados, Lóki escancara os olhos de pupilas dilatadas e corre para a outra extremidade da sala, como se fugisse de um inimigo invisível.

Maya também deixa o refúgio, mas não se arrisca pela sala. Estaca na porta do corredor, olhando em minha direção com orelhas arrebitadas para trás e olhos amarelos arregalados, mas com uma curvatura que sugere braveza, mais do que susto.

“Pode vir, neguinha! É só música”, digo.

Ela não se arrisca. Continua a me olhar fixa e diretamente, como se indagasse: “Não vai fazer nada?”.

Saco do controle remoto para procurar “Sirens”, mais calminha e sem tantos graves pra espocar pela saída do subwofer.


“Concordo com Márcio que está na hora de entenderem que
é uma casa de roqueiros. Se toda a vizinhança já sabe…”


Loki já relaxa. Esparrama-se ao chão em sua famosa pose “deitado-despreocupadamente”, mas a uma distância segura do centro da sala, onde estão as caixas.

Maya, ainda na porta do corredor, senta-se agora sobre as patas traseiras – ainda de orelhas para trás, ainda brava, ainda atirando fixa e continuamente seu olhar amarelo-preto-de-pupilas-dilatadas em minha direção.

Voluntariosa a bichinha!

Resisto. Concordo com Márcio que está na hora de entenderem que é uma casa de roqueiros. Se toda a vizinhança já o sabe…

A sequência de “Sirens” é “Infalible”, mais cadenciada, mas de riffs agudos, que fazem Lóki levantar as orelhas, mas nem por isso sair de sua pose descansada. Olha em minha direção como a perguntar: “É isso mesmo?”

Eu sorrio sem desviar o olhar e ele volta, obediente, a fechar os olhinhos pra dormitar.

“Bom garoto”!

Maya já não me olha, mas nem por isso abandona a posição estratégica. Ensaia deitar como esfinge e suspeito que já não lhe incomoda tanto o som e continua distante por pura rabugice. As pupilas já não estão dilatadas, as orelhas voltaram a apontar para o teto e o formato do olho relaxou na posição amendoada, que lhe dá aquele ar característico de descaso.

Eu a ignoro também.


“Começo a escrever este texto sobre eles, mas
mantendo uma meia atenção em minha visão periférica”


Começo a escrever este texto sobre eles, mas mantendo uma meia atenção em minha visão periférica.

Dali a pouco, percebo um vultinho negro aproximando-se à direita da tela do laptop.

Maya adianta sua posição alguns passinhos, até a porta da sala. Olha pra um lado, para o outro, observa Lóki deitado despreocupadamente, olha pra mim de novo com a cabecinha meio pendendo pra um lado, como numa interrogação.

Dou uma piscadinha. Ela não.

“Metidinha”!

Exatamente nesta hora espocam pelas caixas as guitarras nervosas de “Mind Your Manners”.

Susto!

Maya corre desenfreada de volta para o quarto e some. Lóki levanta-se calmamente e vai atrás dela. Na certa tentará acalmá-la a lambidas, como já o vimos fazer tantas vezes. Um cavalheiro cuidador este meu menino!

Espero.

Nada.

Demora dez minutos pra que Lóki comece a voltar, vencido.

“Maya teimosa”!

Na sala, Loki dá uma volta inteira de reconhecimento por toda a área de circulação, esfregando-se em pés de mesa, de sofá e em nossas pernas antes de voltar à pose “deitado-despreocupadamente” ao lado de minha poltrona. Começa a se limpar a golpes de lambidas – uma lindeza, não canso de assistir – e relaxa ao som de “Alive”.

Oooooooh… I’m still alive / Hey, hey, I, oh, I’m still alive

Eles também vão sobrevivendo.

Agora silêncio na troca de faixas. Identifico nova pasta do pen drive sendo lida…

… E o som cospe a algazarra sonora do início de “Around the World”, dos Red Hot Chilli Peppers, que o Ma reverencia de braços pra cima, achando-se em um show de rock.

Desta vez Lóki se assusta e corre desabalado para o quarto, derrapando na curva do corredor e divertindo-nos com o barulho de suas patas escorregando pelo piso frio.

“Paciência. Vão ter que se acostumar”, decreta Márcio.

Eu concedo e venho terminar este texto imaginando como será quando eu tiver de apresentá-los ao Aerosmith ou ao Queen – o que, fatalmente, vai acontecer em algum momento deste fim-de-semana de folga… Ah vai!

‘O Mínimo Para Viver’: perturbador!

Se você é do mesmo time das pessoas que consideram irresponsável falar sobre um problema com medo de multiplicá-lo, não leia este post.

Alerto porque, assim como ocorreu com a série “13 reasons Why” (“Os 13 Porquês” no Brasil), que trata de um suicídio motivado por bullying, já li pela internet alguns posts vociferando contra o filme “O Mínimo Para Viver” (To the Bone), da diretora estreante Marti Noxon, por considerarem que mostra a pessoas com predisposição à anorexia o “como fazer” para perder peso propositalmente.

Não discutirei este mérito, pois não sou especialista. Registrarei meu ponto de vista apenas como espectadora e ser humano, que achou de grande importância entender um pouco mais sobre as compulsões, os truques e a grande angústia que leva anoréxicos a evitarem comida, comprometendo a própria sobrevivência.

De fato, o filme é, no mínimo, perturbador!

Entendi que não trata-se apenas de uma dismorfia corporal (transtorno psicológico que faz o indivíduo se incomodar profundamente com “defeitos imaginários” ou triviais de seu corpo). Este é, antes, um do grande espectro de sintomas a convergirem para o gigantesco problema da Anorexia.

Da forma como entendemos a vida de Ellen – a protagonista, vivida por uma Lily Collins impressionantemente CADAVÉRICA -, é uma doença da alma, que leva à negação de tudo o que é vida por meio da recusa em comer e a obsessão por perder peso.

Tudo vale para alimentar essa obsessão: vomitar, correr, fazer exercícios escondido, tomar laxantes, entre outros inacreditáveis estratagemas que podem levar à morte.

No filme, acompanhamos um pedaço da vida de Ellen, 20 anos, a partir de sua expulsão da última clínica para a qual foi enviada pelo pai ausente e a madrasta preocupada-mas-bem-intencionada. Motivo: a ironia ácida de sua incontinência verbal começava a perturbar os demais pacientes.

Como último recurso, a madrasta falante tenta um especialista conhecido por seus métodos não-convencionais, interpretado por ninguém menos que Keanu Reeves (pausa para um suspiro), ainda lindo em seus 53 abençoados anos de vida.

Na casa que Ellen passa a dividir com outros recuperandos, ela tem contato com todo tipo de estratagemas para perder peso e também com o inglesinho e ex-bailarino Luke (Alex Sharp – estreante no cinema, mas já premiado por um musical da Broadway), que demonstra responder bem aos métodos do dr. Beckham.

Desenha-se um potencial romance, mas a compulsão da anorexia é mais importante, por isso a diretora atém-se a mostrar como a arte, o carinho e a atenção podem ajudar no processo de tratamento, e como um único e isolado incidente pode colocar tudo a perder.

Perto do final do filme, há uma cena tocantemente íntima entre Ellen e sua mãe bipolar, cheia de lições subliminares sobre amor, aceitação e disponibilidade, que fez eu me liquefazer em lágrimas. Para bom entendedor, dá pistas de como minar a fortaleza erguida pela doença em torno do anoréxico.

Talvez o segredo não seja tentar trazê-lo, à força, para o nosso “mundo real”, mas entrar no dele para explorar alternativas de resgate.

Dá pra entender que não existe um tratamento ou remédio milagroso, mas que cada doente demanda diferentes tentativas e que o único ingrediente indispensável é o amor.

Talvez, “O Mínimo Para Viver”, que está disponível para ser assistido na plataforma Netflix, não seja mesmo recomendável a quem já sofre com o problema, mas considero indispensável para quem deseja saber lidar com pessoas queridas acometidas por ele.

De minha parte, merece cinco estrelas.

 

 

 

Lóki & Maya – uma relação

A relação entre meus gatos, Lóki e Maya, é de amor e ódio desde que ela chegou à nossa casa, pouco mais de um mês depois dele – ela com quatro, ele com três meses.

Era novembro de 2016.

Eu andava de muletas, após quatro meses de imobilidade total e cerca de 30 dias reaprendendo a me mover com andador, por conta do acidente sofrido em julho. Márcio começava a planejar sua volta ao trabalho após meses parado só para cuidar de mim.

Nos primeiros dias de Maya em casa, Lóki fez greve de fome. Vivia de orelhas arrebitadas para trás – sinal de braveza nos gatos – a evitar os cômodos em que ela transitava. Trocavam sibilos ao se esbarrarem pelos corredores.

Preocupei-me.

Consultei amigas gateiras, que aconselharam: “dê-lhes mais uns dias”. E eu dei.

Após uma semana, já se alimentavam lado a lado e compartilhavam sonecas no mesmo cômodo. Logo passariam a dormir lado a lado também sobre sofás, camas e no arranhador caseiro – um no topo, outro na redinha de baixo – que montei a partir de um banco de madeira, tapetes e cordas.

Hoje chegam a dormir entrelaçados, com o queixinho de um repousando sobre o pescocinho do outro. Uma lindeza de ver!

Quando compartilham a mesma fonte de água – geralmente uma torneira de banheiro que abro a pedidos (miados) -, derreto-me de paixão.

Deram um trabalhão quando Maya entrou no cio, uma semana antes de sua cirurgia de castração. Lóki já havia passado pela sua, mas ainda assim caiu na sedução da bichinha – quem o condenaria?

Castrados, ainda se atracam de vez em quando, mas para brigar, a golpes de unhas e dentadas, sem que nenhum dos dois saia machucado. Dali a pouco voltam às boas, feito irmãos.

E não se largam. Nenhum fica muito tempo sozinho em um cômodo sem sair para descobrir aonde está o outro.

Não raro assistimos a Lóki – o afetivo da dupla – lamber rosto e pescoço de Maya, num carinho de macho cuidador nem sempre bem recebido. Quando está de ovo virado, ela o rejeita com uma patada na fuça, que ele revida jogando-se em cima dela para outra briga, daquelas de rolarem pelo chão (assista a seguir).

Mais individualista, Maya nem liga para os miadinhos de protesto de Lóki em dia de banho. Já ele fica esperando à porta do box, perdido em longos miados de aflição ante o escândalo de Maya ao ser banhada – e é um baita escândalo! É necessário dois de nós para banhá-la, pois a danada arma as unhas, debate-se e nos arranha de todo jeito tentando se livrar, enquanto mia alto de desespero, como se estivesse sendo castigada.

Noturnos, continuam ativos na perseguição um ao outro muito depois de seus humanos recolherem-se para dormir – ouvimos seus trotes ecoando pelos corredores e móveis antes de cedermos ao sono.

Lóki diverte-nos com sua peraltice incorrigível, e Maya deleita-nos com seu charme arrebatador (como é linda!).

De manhãzinha, na cama, aninham-se sobre meu corpo (tá vendo meu pé lá atrás? rs)

Juntos, eles me ensinam paciência, pois não dão seu afeto na primeira hora ou incondicionalmente – tente pegá-los no colo sem suas concordâncias, por exemplo, e eles se debaterão até se livrarem. Quando estiverem prontos, eles mesmo se oferecerão a carícias e colos, como uma concessão a nós.

De manhãzinha, perto do nascer do sol, ambos vêm para nossa cama de casal. Maya se acomoda em posição de esfinge sobre meu peito ou barriga, e Lóki se enrodilha no espaço entre minhas pernas cobertas, onde sempre tem um travesseiro para amortecer o contato de meu fêmur operado com o colchão ortopédico.

E assim ficam até eu fazer o primeiro movimento de acordar, que eles brindam com lindas espreguiçadas e miados de “bom dia”.

É enganosa a ideia de que gatos não sabem amar. Amam um amor não-servil, mas inequívoco, cheio de presenças silenciosas, olhares demorados, mordidinhas indolores e chamegos de corpo todo em nossas pernas.

Impossível não amá-los de volta com a mesma dignidade.

 

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P Â N I C O!

Precisei de novo… Que droga!

Estava orgulhosa de mim, acreditando que havia aprendido a dominar meus medos, a ser a guerreira que todos me julgam, mas precisei de novo da muleta.

Não a de metal, que ainda ajuda minha perna esquerda a suportar o peso do corpo na troca do passo… a outra… a que usei pela última vez muito antes do acidente de um ano atrás.

Ah… como estava feliz comigo por não ter precisado durante todo o período de recuperação das fraturas!

Achei que estava no controle.

Mas o susto veio de novo, no caminho pro trabalho (de novo), no cruzamento de um semáforo (de novo).

O sinal abriu pra nós, mas a Kombi que vinha na transversal não parou – o motorista não deve ter visto o vermelho (como eu há um ano e pouco) –  nem diminuiu. Cresceu rápido para cima do banco do passageiro, onde eu estava, como o carro que me fez voar da moto há 374 dias – devo ter gritado alto, porque minha garganta ficou raspando depois, como que machucada.

Parecia aquele carro de novo.

Habilidoso na direção, o Ma acelerou e jogou nosso carro pra esquerda, invadindo a pista contrária por um segundo e meio, quase batendo nos outros veículos que vinham no sentido inverso. Mas escapou da Kombi e não bateu em ninguém!

Pro meu cérebro, bateu. Foi o acidente de um ano atrás (de novoooo!).

Meu coração disparou igual, mas o pânico foi maior… muito maior do que eu me lembrava. Maior que eu! Maior que todas as certezas que eu vinha construindo dentro de mim. E não segurei…

Ele – o pânico – explodiu de dentro pra fora numa torrente descontrolada de choro, falta de ar e taquicardia.

Chorei na frente dos outros ao chegar à redação (vergonha no nível daqueles sonhos em que nos descobrimos nus em público!).

E cedi à “muleta”… a outra… Ainda tinha em minha gaveta da mesa de trabalho, intocada por todo o último ano.

A pilulinha desceu garganta abaixo com gosto de fracasso. Cedi à p… do ansiolítico após mais de dois anos aguentando minhas dores sem pânico; após um ano exercitando a serenidade.

Mas uma Kombi me desmascarou.

Lições do episódio: não sou guerreira, não domino meus medos e não controlo p… nenhuma!

 

B R U X I S M O (ou o que chamo de ‘enxugar gelo’)

Silvia Pereira

Sobre aquele “botão de emergência” a que me referi em uma #crônicadeacidentada… acho que foi definitivamente desligado.

Talvez porque minha parte física esteja sarando mesmo ou porque a volta ao trabalho trouxe ansiedade… o fato é que, nos últimos dias, não consegui manter a mente semi-vazia, como quando concentrada nos esforços da recuperação de meu acidente.

Prova disso foi a volta de sintomas funestos de um bruxismo severo – que durante os períodos críticos de recuperação do acidente concederam-me a graça de diminuírem.

Na última semana voltaram com força total: a aflição de ser puxada de dentro do sono por uma dor-de-cabeça terrível… ser despertada por ela… iniciar o dia cansada, como se tivesse passado a noite toda me exercitando; sentir bolsas de inchaço debaixo dos olhos; tijolos pesando sobre pescoço e o trapézio doloridíssimos – de onde, às vezes, as dores se ramificam para a cabeça toda (rosto incluso)…

Uso placa de mordedura para dormir já há uns 15 anos, mas tenho a sensação de que ela é mais eficaz em proteger meus dentes do que em amortecer o travamento de minha arcada “nervosinha” – só o que muda com o uso ou não dela é o feixe de músculos que doem, o que me leva à conclusão de que dormir “sem ela” é ligeiramente pior do que “com ela”.


“a aflição de ser puxada de dentro do sono por uma dor-de-cabeça
terrível e ser despertada por ela… de iniciar o dia cansada…”


Já me meti em tratamentos os mais variados contra o problema: de acupuntura a uma técnica inventada por profissional ribeirão-pretana que prefiro não citar (longa história). Em todos só consegui melhorar os sintomas por algum tempo.

Pesquisando a literatura disponível sobre o assunto, minha impressão é de que a comunidade médica não está empenhada em encontrar uma cura para o problema, pois conhece-se muito apenas seus sintomas e sabe-se que está  intimamente ligado ao sistema nervoso, mas não há certezas sobre suas muitas prováveis causas (de mau posicionamento dental a fatores psicológicos).

Assim, quando os sintomas pioram muito, só me resta tentar apaziguá-los com analgésicos (pobres rins e estômago!), pomadas e massagens local com eletrodos, com os quais a querida, doce e fofa Dani Ramos presenteou-me numa visita. Isso tudo  sabendo que, com o sono da noite, podem voltar a piorar.

É o que chamo de “enxugar gelo”.

A fisioterapeuta e o gato fujão

Desde minha última cirurgia, as terças e quintas de manhã eram de fisioterapia. Em um desses dias, a fisioterapeuta que me atendia em casa extrapolou sua função para tornar-se a heroína de uma aventura entre minha família “multiespécie”.

Como eu sempre a esperava à porta do apartamento, após abrir o portão do prédio remotamente, tinha de esgrimar com as investidas de Lóki (o gato) tentando fugir porta afora. Neste dia, enquanto cumprimentava a profissional, deixei a barreira de muletas ceder um pouquinho e o danado do bichano ganhou o corredor, sumindo ligeiro escada abaixo.

Meu susto deve ter desenhado uma expressão de alarme em meu rosto – “e se ele aproveitar a abertura do portão por algum vizinho para ganhar a rua e… sumir?!”, pensei, com susto de mãe.

Já a fisioterapeuta não se alarmou nada. Mas também não teve dúvidas: sem perder seu jeito todo manso de falar e se mover, perguntou se havia algum petisco com o qual atraí-lo. Dei-lhe os biscoitinhos de carne com os quais premio os gatos vez ou outra… e lá foi ela, devagarinho, à caça do fujão.

Por sorte, Lóki não estava longe. Manso, apesar de travesso, deixou-se pegar sem debates, protestos ou arranhões. Quando a vi subindo aquela escadaria “ingrata” pela segunda vez no dia, com o gato ao colo, tive vontade de enchê-la de beijos.

Passado o susto, caímos na gargalhada. “Deixe a porta destrancada da próxima vez, que eu mesma abro sem deixar o gato sair”, instruiu a heroína, ao se despedir.

E assim ela tornou-se praticamente “da família”.

Lóki passou a se sentir à vontade para brincar com ela. Adorava escalar o sofá atrás da cadeira de onde ela supervisionava meus exercícios, para dar patadas e mordidinhas no rabo-de-cavalo às suas costas. Ela ria, encantada, e chacoalhava ainda mais as mechas de cabelo douradas de luzes (assista a seguir).

Despedidas

Na última quinta não houve sessão. Tive retorno com meu ortopedista, que me encaminhou para fisioterapia na clínica – “Há aparelhos que aceleram os resultados”, disse.

Pelo Whatsapp avisei à fisioterapeuta do Home Care que não nos veríamos mais. Seguiram-se congratulações da parte dela, agradecimentos de minha parte e despedidas de ambos os lados… Mas não fiquei satisfeita.

Faltou dizer à Fernanda Pimenta (é o nome dela) o quanto seu incentivo manso e encantador me motivou nos dois momentos em que precisei do Home Care: logo após o acidente, há um ano, e após minha última cirurgia, há pouco mais de um mês.

A Fer é uma graça! Delicadinha até para falar, com sua voz meio anasalada de adolescente, sempre demonstrou demais como ficava feliz com meus progressos. Dizia que eu era a mais aplicada de suas pacientes e que minha musculatura respondia muito rapidamente a meu trabalho.

Mal sabe ela que, em dias frios, quando minhas hastes de titânio ficavam a me lembrar de suas existências entre meus ossos, eu negligenciava os exercícios ao menos uma vez no dia – devem ser duas.

“Caxias”, eu sempre acabava confessando minhas omissões, mas acho que ela nem acreditava. “Se todos os pacientes evoluíssem assim…”, elogiava, tornando-me mais otimista a cada visita.

Portanto, não era justo que eu me despedisse sem testemunhar publicamente minha gratidão.

Obrigada por tudo, Fer. Fica com Deus!

Um certo tipo de solidão

Existe uma solidão que não é de falta de gente, mas de experenciar uma situação que ninguém pode compartilhar com você ou imaginar como é. É como olhar as pessoas em torno de si – mesmo as mais próximas – através de um vidro que nos separa do restante da humanidade.

Eu me senti assim durante uma crise de depressão, mas então existia uma grande dor a me desconectar até de mim mesma – não me reconhecia…  passei a desgostar de tudo o que costumava me dar prazer (música, leitura, cinema, parentes, amigos…).

Mas descobri que não existem só as solidões ruins.

Durante vários períodos de recuperação do acidente senti novamente este vidro me isolando de todos – até de quem eu dependia para as mais elementares necessidades, meus cuidadores. Mas então não havia “a grande dor”, só uma grande percepção, como um estado de alerta constante.

Acho que precisamos de vez em quando dessa solidão. Com ela passei a olhar com mais atenção para as coisas do cotidiano que fazia automaticamente antes e também para as pessoas.

Re-hierarquizei o valor de tudo.

Desenvolvi uma gratidão retardatária por tudo o que podia fazer antes – e fazia no piloto automático, sem dar grande importância -, como andar rápido, correr (não fazia muito, mas deveria), dançar (adoooooro), ir ao banheiro e tomar banhos sozinha, dirigir um carro para onde quisesse… olhar – mas olhar meeesmo! – os caminhos.


“Desenvolvi uma gratidão retardatária por tudo o que podia fazer
antes – e fazia no piloto automático, sem dar grande importância”


E me fazia feliz saber que aquela imobilidade não era definitiva, que, com tempo e esforço, eu voltaria a fazer tudo.

Havia, sim, dias em que acordava triste, com um sentimento de urgência de voltar ao mundo. Eu não os evitava. Vivenciava as tristezinhas pacientemente… esperava passar. Sabia que passariam.

Passavam!

Era fácil enquanto só tinha minha recuperação para me preocupar.

Mas será que conseguirei manter isso? É a questão que tem me vindo muito ultimamente, conforme se aproxima a data da volta ao trabalho e, com ela, todos os gatilhos das antigas ansiedades.

Procuro me abastecer de leituras para a alma… tudo o que me cai nas mãos para lembrar-me que podemos escolher como viver e que teremos sempre ajuda (se a pedirmos).

Por indicação da querida Solange Bataglion, comecei a ler “Todo Mundo Tem um Anjo da Guarda”, do médium católico (sim, católico!) Pedro Siqueira.

Desde então tenho reservado o último momento de minhas orações de antes de dormir para tentar estabelecer contato com o meu. Por ora, tenho lhe endereçado pedidos de ajuda para manter os “ganhos” e administrar as perdas do último ano, mas tenho fé de que chegará o momento de só agradecer.

Que assim seja.