Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2019 trabalhando free lance com produção e edição de conteúdos; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

Meu colar roxo

Andava eu orgulhosinha de mim, achando que perseverava no desapego, quando meu Márcio Pelegrina veio me apresentar o conteúdo resgatado do bagageiro de minha moto acidentada para inventariar.

Roupa de chuva, ok; cadeado de roda, ok; pashmina que levava pro trabalho, check; bota que calçava na hora do acidente, check; Colar roxo preferido…

(?)

Pronto! Eu, que só havia chorado de dor até então – nem pela moto quebrada, nem pela troca de roupa que arrancaram a tesouradas do meu corpo -, senti o nó na garganta se formar porque não me reencontrei com o colar roxo de tecido com lycra que Zélia Lazarini fez de encomenda pra mim.

Eu o colocava sempre que queria acender um visual monocromático com um ponto de cor – a “minha cor” (já disse que lilás e roxo fazem meus olhos felizes?), para desespero da querida Valeskinha.

Escondi uma lagriminha teimosa assim que ouvi o Márcio voltando da garagem. Trazia meu capacete protegido numa sacola de supermercado amarrada. E eis que, ao desamarrá-la, vejo um volume roxo lindo se destacar contra o fundo preto do estofo.

Beijei, abracei e agradeci por meu colar de malha que as mãos de artesã da Zélia criaram só pra mim. E tudo ficou lindo de novo.

Vai me entender…

Sobre o solitário aprendizado da gratidão

Hoje quase senti saudades de quando praguejava por problemas como um gasto imprevisto com o carro, uma jornada de trabalho exaustiva ou um desaforo no trânsito – aliás, o motivo de estar numa cama de hospital hoje, por minha própria imprudência.

Tenho tido pretextos para praguejar: hoje as dores em meus membros multifraturados me acordaram e, como não tenho autonomia de buscar meu próprio remédio, preciso esperar que uma das auxiliares de enfermagem (sempre muito atarefadas) atendam a meu chamado e, cientes de minha demanda, consultem em minha ficha o que posso tomar, para, em seguida, acionarem a farmácia e só então colocarem-no para correr por minhas veias.

Outro motivo: as veias de meus braços se cansam após alguns dias recebendo medicação intravenosa pesada (tive uma infecção). Tive de passar – não pela primeira vez – pela experiência de tê-los cutucados inteiros antes de decidirem que o melhor é apelar para uma veia de minha jugular.

Podia ter praguejado todos os últimos dias em que tenho feito doloridos malabarismos só para usar a “comadre” (pra quem não sabe, o penico que se usa na cama do hospital) e tomar um banho de leito. Tenho feito essas necessidades tão básicas – de que antes me desencumbia no automático, sem dar grande importância – com dor e sem privacidade, necessitando da ajuda de muitos e testemunhada por companheiras de quarto.


“combinei com Deus que, se sobrevivesse sem
sequelas permanentes aguentaria tudo o que viesse”


Mas combinei com Deus, no dia do acidente, enquanto aguardava que me avaliassem, rezava e chorava de preocupação com as preocupações dos meus, que se sobrevivesse sem sequelas permanentes aguentaria tudo o que viesse.

E, para minha surpresa, acabei encontrando facilitadores no aprendizado do “não praguejar”:

Mesmo muito atarefadas, as auxiliares de enfermagem e enfermeiras sempre têm uma palavra de incentivo e de reconhecimento por meus esforços (todo o meu respeito a elas daqui pra frente; que profissão difícil essa de lidar com as dores dos outros!);

Minha família sempre arranja uma forma de me lembrar o quanto me ama e como minha dor é também a deles – o que me faz querer ser forte para que não sofram;

Meu marido largou tudo para cuidar de mim em tempo integral, ainda consegue me fazer rir e jamais me deixa sentir auto-piedade;

Amigos queridíssimos têm se feito presentes, fisicamente ou a distância;

Aprendi a fazer origamis, uma arte que sempre respeitei, mas jamais pensei em dedicar um segundo de minha rotina para aprender (que gratificante ver as enfermeiras andando com os que lhes presenteei colados em seus crachás pelos corredores!);

E por fim – e aqui me permitam ser Pollyanna total -, eu podia estar muito pior. Podia ter quebrado coisas que não se consertam e podia nem estar aqui hoje.

Mas estou e sei que hoje foi um dia melhor que o de ontem, que por sua vez foi melhor que o de anteontem e que nesta toada, mesmo demorando muuuuuito (é a previsão), todo este sofrimento vai passar e eu terei aprendido a ser grata – de verdade – por estar viva, por ter privacidade e autonomia nos banheiros e por ter amor em torno de mim.

Se você já tem tudo isso, não espere um acontecimento grave lhe obrigar a colocar tudo em novas perspectivas.

Seja grato já!

Acidente

Lembro de ver o sinal vermelho por milésimos de segundo… a visão embaçada de um carro… Escuro… Dor.

O impacto das costas no asfalto me tira o ar. Tusso muito para puxá-lo e recupero uma respiração sôfrega de engasgada.

Passos. Gritos.

Um gelo imenso cresce na boca do estômago e um gosto de sangue me vêm à boca.

“Água. Preciso de água”, ouço minha voz dizer.

“Alguém busca água pra ela”, um homem grita.

“De jeito nenhum”, proíbe uma voz de mulher. “Está tudo bem”, agora pra mim. “Sou enfermeira. Não se mexa”.

Chega outra – também enfermeira. As duas se ajudam na retirada de meu capacete sem perigo. Improvisam-me algum tecido de travesseiro.

Choro. Odeio-me. “Por que fui deixar o carro na garagem para dar carga na bateria arriada da moto?

Pedem o número de meu marido. Ouço a enfermeira Patrícia ligar. Entendo que ele duvida – despachou-me de carro de Jaú – e mando explicar a “péssima decisão”.

Soluço de medo. Não por mim. Não tenho dores… ainda. Adivinho o desespero de meus pais, do Márcio…

“Meu Deus, o que eu fui fazer?! ”, choramingo alto sem noção de vergonha.

As lágrimas lavam a visão do céu emoldurado de galhos e folhas de árvore. Não me deixam olhar dos lados, mas ouço o burburinho de gente rodeando.

Um policial me pergunta o que ocorreu. Confesso.

Choro. Odeio-me. Tenho medo.

O policial se apieda de minha preocupação com o Márcio na estrada.

“Qual o número de seu marido? Pode deixar que eu acalmo ele”, oferece-se numa voz compassiva, que admiro agradecida.

Colocam meu celular ao ouvido. Minha irmã mais velha questiona, irada, a “péssima escolha”. “Eu sei, eu sei…”, soluço humilhada.

Choro. Tenho medo.

O celular de novo. Virginiana (como eu), a outra irmã pede calma com voz de mãe (que é). Avisa que já escalou quem busque a moto. “Tudo vai ficar bem”, ordena com autoridade que é dela.

Choro.

Não me lembro de quanto me perguntaram ou respondi nos 40 minutos que o socorro demorou pra chegar. Confusa, autorizei me levarem para a UPA.

Enquanto me instalam na maca ouço o cumprimento de Edilson – o cunhado de minha irmã – que chegou para resgatar a moto.

Ao me levantarem do chão, ouço meu próprio urro de dor como se de dentro de um túnel.

Na ambulância, maldigo cada buraco do asfalto.

Já não penso em nada mais além da dor.

Na chegada à UPA a visão querida do cunhado Batista. Compartilho a preocupação com os pais e ele me acalma.

Na sala de acidentados, respondo perguntas idênticas a diferentes pessoas de branco. Suporto injeções e manipulações na sala de raios X.

Uma hora de espera e descubro que vão me transferir de novo, desta vez para o hospital de meu convênio.

Na saída para a nova ambulância, minha irmã Liz me dá a mão. Estendo-lhe meu celular e solto um urro de dor no estender do braço.

Reconheço a anjinha Vivi – secretária na redação onde trabalho – ordenando providências.

No trajeto, novos e numerosos solavancos de buracos no asfalto.

“Que dor, meu Deus!”.

Choro. Odeio a cidade esburacada.

Chego ao Hospital São Francisco. Liz já me espera na Emergência – calma, confiante, mãe.

Novas perguntas respondidas a pessoas de branco. Novas manipulações. As dores nos membros são indescritíveis.

Chegam os anjos Vivi e Elielton, do RH da empresa. Vão-se pelo mesmo lado em que, instantes mais tarde, sorvo a visão de Márcio chegando calmo, carinhoso, acolhedor, envolvendo-me numa nuvem de prazer e alívio.

Choro. Sinto dores. Ele me mima. Mas precisa sair para tomar providências burocráticas.

Começo a sentir dores no estômago vazio – almoçaria no refeitório da empresa. Em seguida, uma ducha invisível de gelo me escaneia dos pés à cabeça e minha visão falha.

“Vou desmaiar”, aviso alto, enquanto sinto meu corpo perder-se numa tremedeira involuntária. Uma náusea violenta sacode meu peito em esgares de vômito. Parece que vomitarei para sempre.

Enfermeiros se arvoram. A médica corre pra mim gritando ordens. Pessoas de branco me cercam. Uma agulha injeta na veia do meu braço esquerdo uma solução qualquer que faz todo o processo parar instantaneamente.

A médica decide minha transferência para a sala de observação, para onde meus parentes não podem me acompanhar.

Ali me aguardam solitárias horas de espera, entrecortadas por dolorosas escalas em salas de raios X e ressonância.

Passo o tempo em rezas, pedindo por meus pais, por Márcio, por mim. Barganho com Deus. Prometo que, saindo dessa sem sequelas permanentes, aguento tudo o que vier.

Tenho o segundo daqueles ataques de vômito e ondas de gelo, novamente interrompido com a tal solução na veia. Desta vez a tremedeira não passa.

“É a dor”, comenta um enfermeiro com o outro, como se eu não estivesse ali.

Márcio consegue autorização para me ver. Finge não se impressionar com a tremedeira e me diz carinhos ao ouvido. Sai.

Quando o ortopedista finalmente chega para me ver já estou há oito horas sofrendo com fome e dores, sem direito a anestesia – compromete a avaliação, explicaram.

Mais manipulações. Dores insuportáveis e a terceira daquela crise de gelo-vômito-tremedeira.

Decide-se por cirurgia naquela noite mesmo e sigo para a preparação.

Na mesa de operações, quase choro de gratidão ao sentir o sedativo avançando por minhas veias para trazer o sono sem sonhos, que rouba a passagem do tempo.

Quando acordo na sala de recuperação, o rosto de Márcio – que desafiou proibições para estar ali – é o primeiro que vejo.

Já não sinto medo.

Einar não mora mais aqui…

Vamos lá tentar encontrar as palavras certas para exprimir a delicadeza e toda a curva emocional de “A Garota Dinamarquesa” (The Danish Girl), de Tom Hooper – mesmo diretor de “Os Miseráveis” e “O Discurso do Rei”.

Esperava uma história linear e documental sobre o primeiro transgênero a realizar uma operação de mudança de sexo na longínqua década de 1920, mas é mais – muito mais – que isso.

É um filme sobre amor – puro, genuíno, incondicional, para além de tudo… de gêneros, estereótipos, sexo.

Esqueça a indicação de Melhor Ator para Eddie Redmayne – ele é quase só um pretexto aqui para a interpretação arrebatadora da sueca Alicia Vikander. Testemunhar as milimétricas nuances de emoções que ela consegue expressar em cada cena me faz considerar aviltante, incompreensível e injusta sua premiação como atriz coadjuvante.

Merecia o Oscar, sim, mas na categoria de atriz principal. O filme é todo dela! (que entrega! que inteligência emocional!).

A história é sobre Einar Weneger, mas o tempo todo é com o sofrimento resignado de Gerda que nos identificamos. É ela quem faz Lili emergir de dentro de Einar, movida por uma intuição primal.

No começo, Einar e Gerda são pintores e se amam. Eles se dão perfeitamente bem na cama e em todo o resto. Um dia, ela pede que ele sobreponha um traje de bailarina sobre as vestes masculinas e pose para que ela possa terminar um quadro encomendado.

Lili começa a emergir.

Numa noite posterior, Gerda descobre sua camisola por baixo das vestes masculinas de Einar. Surge a ideia de um jogo de casal. Gerda traveste Einar. Eles vão juntos a uma festa. Um homem rouba um beijo de Lili/Einar, que “menstrua” pelo nariz – o fluxo nasal passa a ser mensal.

Gerda sente e expressa, através de sua arte – que, ironia!, finalmente desabrocha – a chegada de Lili.

Einar desaparece, mas o amor de Gerda permanece. Transfere-se para Lili. Não sem dor, não sem luto (por Einar)… mas constante.

Muitas dúvidas, muitos médicos e diagnósticos equivocados interpõem-se à busca por entendimento e identidade, mas o amor de Gerda e Einar está lá o tempo todo.

Embalando toda essa barafunda emocional uma fotografia primorosa – cada cena um quadro com toques renascentistas -, mas a história é tão forte que o visual fica em segundo plano.

Tocante!

Cópia mal feita

Acabo de assistir a “Olhos da Justiça” (Secret in their eyes, 2015), de Billy Ray, supostamente a refilmagem hollywoodiana do argentino “O Segredo dos Seus Olhos” (El Secreto de Sus Ojos, 2009), de Juan José Campanella, que tenho como um dos filmes mais completos já realizados na história recente do cinema mundial.

Sério, como já disse em um post da época, o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2011 reúne vários gêneros em um só roteiro – romance, comédia, suspense, terror psicológico e crítica política, tudo muito bem alinhavado e equilibrado – e atuações sensacionais de Ricardo Darin, Guillermo Francella e Soledad Villamil.

Já “Olhos da Justiça”, que dó! Salvo duas ou três frases-chave que manteve do primeiro e a espinha dorsal do argumento – ambos pauperrimamente aproveitados -, não sobrou nada da grande história da investigação de um estupro violento seguido de assassinato, que corria paralelamente à de um amor inconfesso, desembocando em uma trama de impunidade e suspense psicológico.

Hollywood não é uma indústria à toa. Possui uma linha de montagem de filmes destinada a produzir em série um mesmo tipo de produto, ainda que com penduricalhos de cores diferentes em cada exemplar para passar a ilusão de exclusividade, tal como as bonecas que saem de uma linha de produção, com o mesmo corpo e rosto, mas cabelos e roupinhas diferentes entre si.


tudo se apequena na refilmagem hollywoodiana


Daí que, no caso específico desta joia de roteiro, o processo foi de desmontagem de uma história cheia de subtextos e referências cruzadas para encaixá-la ao padrão hollywoodiano de produção. Assim, o título não guarda mais a dupla interpretação – os olhos apaixonados de Irene e os de terror da vítima de um crime -; o amor inconfesso de Irene e Benjamin torna-se um flerte frígido; a malha política que permitiu a impunidade e a perseguição dos mocinhos simplesmente desaparece; e os diálogos – ah, os diálogos, a maior perda – espirituosos e esquemáticos do original tornam-se frívolos e comuns.

Enfim, tudo se apequena na refilmagem hollywoodiana. E isso vale para as atuações também de Nicole Kidman e Julia Roberts, que se deixa enfeiar – mais – para o papel, mas nem por isso nos arrebata.

O andamento da história resulta tão previsível que sequer a surpresa do final chega a chocar de verdade, de tão “mastigada” que a trama é entregue ao espectador – pobre espectador ainda considerado como limitado por sua indústria de cinema, mesmo após Christopher Nolan ter provado que um roteiro intrincado e inteligente não é impeditivo para um filme vendável!

Enfim, fica a dica: se assistiu a “O Segredo de seus olhos”, não o desonre comparando-o a “Olhos da Justiça” e, se não viu, nem perca tempo com seu arremedo americano.

Vá direto ao original. Garanto que não vai se arrepender.

O dia em que morri

Ontem eu morri.
Durante os poucos segundos em que um carro que saía do portal de um condomínio fechou minha moto, vi um trailer da minha vida sem mim – vi o carro que vinha em alta velocidade à minha esquerda não conseguir frear e me pegar em cheio após eu desviar em cima da hora do que me fechou; meu corpo voando e caindo sobre o asfalto; as fraturas ou – pior, um fatal traumatismo craniano… minha família chorando no hospital… meu marido assustado, perdido… tudo passou pela minha cabeça naqueles poucos segundos.
Mas o carro que vinha à esquerda conseguiu frear a tempo e nasci de novo.
Parei no semáforo 50 metros à frente trêmula, com mãos suando frio e batimentos no ritmo da bateria da Mangueira, bem ao lado do carro que me fechou. Ao volante, uma mulher elegante, de cabelos escovados e maquiagem impecável, aparentando ter mais ou menos a minha idade.
– Você podia ter me matado… disse eu alto, para que ela ouvisse através dos vidros fechados.
Ela riu…
Riu!!!
Não foi para mim, mas de mim e não era um riso simpático de desculpas, mas um desdenhoso, daqueles que dizem: “não estou nem aí pra você, que não é nada pra mim, segura e linda que estou dentro de meu semi-novo branco com ar-condicionado e vidros com insulfilm.”
Pensei: que tipo de pessoa ri de alguém que quase matou?
Que tipo de pessoa para ao portão de seu condomínio, olha para o trânsito e decide sair, va-ga-ro-sa-men-te, ciente de que está fechando uma moto que vem em sua direção? – “a moto que desvie, fechando o carro que vêm à sua esquerda”… “o mundo que mude para que eu siga meu caminho sem ser incomodada!”.
A bela no veículo branco seguiu seu caminho deixando em mim um sentimento de ser nada.

Olhos de ternura (Seo Dema)

Não me lembro exatamente da primeira vez que  conheci.

Sei que a simpatia foi imediata.

Saquei de cara que seu jeito quieto e sério escondia uma ternura caudalosa que lhe saia pelos olhos.
De rotinas sólidas, por anos Seo Dema acordou sempre à mesma hora, tomou seu café na mesma cadeira da mesa da cozinha, leu os dois jornais do dia – um nacional e um local – e foi trabalhar.

Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação.

Não era de reclamar de nada. Os filhos afligiam-se por isso, pois enxergavam, às vezes, abusos de quem sabia aproveitar-se de seu temperamento humilde e trabalhador.

Também viviam comentando que nunca foi de conversar. Mas era, sim, de gestos, reparei logo.

Meu marido conta, emocionado, das idas para o sítio em sua infância, quando o pai fazia questão de parar no início da trilha de terra entre os canaviais, descarregar a bicicleta e ir guiando o carro na frente, com filho feliz da vida voando pelos barrancos de seu bicicross particular.

O sobrinho lembra com carinho de quando quis treinar futebol contra a vontade do pai e o tio ofereceu-se para ser seu motorista. Aparecia sempre pontualmente para pegá-lo em casa, acompanhava o treino inteiro e o entregava são, salvo e feliz aos pais.


“Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito
e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação”


Tudo sem uma palavra. Apenas uma presença mansa, constante… e os olhos ternos.

Crescidos os filhos, cada um pra sua casa, surpreendia-os durante as visitas deles limpando o carro de um antes que acordasse; enchendo o tanque de gasolina do outro sem que percebessem. Chegando no endereço dos pais um imposto de qualquer filho, ele corria ao banco pagar.

Não era para agradar. É que precisava colocar pra fora de alguma forma o carinho que represava no peito. Era sua forma de “amar” sem precisar falar.

Quando sabia que um filho estava pra chegar de visita, ia para a frente da casa esperar. Não saudava. Abria o portão e cumprimentava como se tivesse acabado de vê-los e entrava junto. Mas nos sentíamos bem-vindos.

E quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio.

Também não conversava muito comigo, mas nem precisava.

Um dia, o vi cuidando de uma família de passarinhos que montou ninho no xaxim de planta que descia pendurado do teto da área de serviço. Minha sogra contava que ele os visitava todos os dias, zeloso dos filhotes que a mãe-passarinha alimentava.

Saquei de uma máquina com lente zoom que trazia emprestada e emparelhei com ele pra “assistir” o ninho. Quietinhos, respeitando a distância, esperamos a família se acostumar com a companhia e disparei a fotografar.


“quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura
nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio”


Como ele não sabia sequer entrar no computador à época – depois que o descobriu, virou habituè do jogo Paciência na tela -, imprimi a melhor foto e confiei a meu marido entregar.

E esqueci.

Em uma de minhas visitas seguinte, muitos meses depois – demorava pra voltar por causa do trabalho –, admirei um quadro de passarinhos pregado na parede atrás da sua cadeira predileta. Não reconheci de pronto, mas ele veio logo em meu socorro. “É a foto que você fez”.

E me senti assim envolvida naquele mar de ternura que até então eu só assistia de longe, feliz de sentir-me no rol dos merecedores de seus gestos.

Em suas últimas semanas, ele não pode mais sentar-se. Não conseguia nem falar e os olhos de ternura quedavam, às vezes, inexpressivos, outras doloridos. Tentava falar às vezes, mas a voz não saía. O que será que diria?

Impotente, só rezo pra que tenha lido em nós todo o amor que líamos nele, para que seu olhar parado signifique que enxerga os anjos que devem estar a velá-lo e para que descanse em paz.

  • ao meu sogro, com carinho, aonde estiver.

Sobre preconceito e segundas chances

Durante a última semana, ouvi pelas ruas e redes sociais as mais diversas opiniões sobre a morte do ex-interno da Fundação Casa Patrick Cardoso dos Santos, 20 anos, por PMs que invadiram sua casa, na zona norte de Ribeirão Preto.

“Vagabundo tem que morrer”; “não podia ter outro destino uma vida como a dele”; “não tinha conserto”. Tais eram os teores dos comentários.

Voltou-me à memória o polêmico documentário “A Ira de um Anjo”, que me chegou via Facebook sob o título “Crianças psicopatas: a incrível história de Beth Thomas”. O vídeo de 40 minutos começa mostrando uma menina de 6 anos respondendo a perguntas de seu psiquiatra. Seu rostinho angelical não trai o menor traço de emoção ao dar respostas desconcertantemente sinceras numa vozinha doce de criança.


“Vagabundo tem que morrer”; “não podia ter outro
destino uma vida como a dele”; “não tinha conserto”


“Eu batia a cabeça dele no chão (…) eu queria matá-lo”, contava, quando questionada sobre agressões feitas ao irmãozinho. “Eram para matar mamãe e papai”, respondia sobre as facas que escondia em seu quarto.

A norte-americana Beth Thomas tinha 1 ano e meio quando foi adotada, junto com o irmão ainda bebê, por um casal religioso. Durante os quatro anos seguintes, seu comportamento entrou numa espiral de agressividade que levou seus pais adotivos a trancarem seu quarto a chave quando ela ia dormir, para que não atentasse contra a vida da família.

Mas o casal não desistiu de Beth. Procurou ajuda.

O psiquiatra que atendeu a menina descobriu que ela foi molestada pelo pai biológico durante todo o seu primeiro ano e meio de vida, o que a impediu de desenvolver afeição por qualquer ser humano – o outro era sempre uma ameaça. Desenvolveu no lugar muita raiva e uma sexualidade antinatural para sua idade – masturbava-se em qualquer lugar.

Enquanto me inteirava dessa parte da história, mesmo extremamente penalizada, fui traída por um primeiro pensamento preconceituoso: “essa menina não tem conserto, só poderá virar um adulto ruim”.

Não virou.


“essa menina não tem conserto, só
poderá virar um adulto ruim”. Não virou


Beth foi internada em uma instituição especializada no atendimento a menores com problemas comportamentais. O programa consistiu em reconstruir sua auto-estima para torná-la apta a desenvolver laços afetivos e, na sequência, conquistar a capacidade de colocar-se no lugar do outro – o que comumente chamamos empatia.

Quase ao final do vídeo assistimos Beth aos 10 anos chorando amargamente ao tentar responder às mesmas perguntas do primeiro vídeo. Já tinha sentimentos.

Se os pais, médicos e psicólogos que a acompanharam tivessem se rendido a um primeiro pensamento-reflexo como o que tive – ou a preconceitos semelhantes aos das pessoas que aplaudem a morte Patrick -, a “criança psicopata” não teria sido recuperada para um final de infância e adolescência normais e nem se formado enfermeira aos 20 e poucos anos para ajudar outras vítimas como ela.

Hoje Beth também trabalha numa instituição especializada no atendimento a crianças abusadas. Transformou a experiência ruim em aprendizado útil a outrem.


Sem o acolhimento que teve Beth Thomas, cumpriu, nos dez anos seguintes, oito internações na Fundação Casa, por crimes que foram de latrocínio a homicídio


Patrick não foi abusado – não sexualmente. Seu trauma foi o abandono, que o fez, aos 10 anos de idade, pegar a arma do pai para fazer o primeiro assalto – longe da mãe e com o pai preso, já estava por sua própria conta.

Sem o acolhimento que teve Beth Thomas, cumpriu, nos dez anos seguintes, oito internações na Fundação Casa, por crimes que foram de latrocínio a homicídio. Mas quando conversou com nossa colega Daniela Penha, há alguns meses, ainda falava em dar um rumo diferente à sua vida.

Psicólogos e assistentes sociais que o avaliavam desde a primeira internação, em 2008, acreditavam nele, pois o descreviam como comunicativo, calmo, respeitoso e com liderança positiva.

As várias vezes que Patrick voltou pra escola ao longo dos últimos anos também deram pistas de suas intenções de mudar, mas algo sempre o levava a abandoná-la e voltar ao crime.

Na última semana, menos de um mês após cumprir sua última internação, Patrick foi apontado como autor do homicídio de um policial e acabou morto por outro – legítima defesa, alega a polícia.

O Ministério Público investigará se a morte do jovem foi uma retaliação, mas já não fará diferença para ele. Ao contrário de Beth Thomas, Patrick nunca terá outra chance.

Sobre ‘Creed’e o legado de ‘Rocky’

Sou uma espectadora de cinema de gosto específico (sei que já disse isso),  do tipo que adora chorar com um bom drama, refletir com uma história densa ou derreter-se com uma comédia romântica inteligente, mas que boceja de tédio quando começa uma cena de tiroteio ou perseguição e fica procurando rachaduras na parede quando os diálogos ganham doses extras de testosterona ou violência gratuitas.

Dito isso, não pense que já não me perguntei por que diabos consigo me sentar para assistir a um filme como “Creed: Nascido para Lutar” (Creed, 2015), que, vejamos: tem cena de violência (check), sangue (check) e diálogos banhados em testosterona (check)….

A resposta não é curta e começa assim: pelo mesmo motivo pelo qual sentei para assistir todos os “Rocky” (e também amei): não são apenas sobre lutas. Elas são o motor a impulsionar personagens arquetípicos dos “loosers” (como os norte-americanos adoram rotular quem consideram fracassados pela cartilha do “American Way of Life”) a erguerem-se acima das limitadas oportunidades que uma vida à sombra lhes oferece.


As lutas são o motor a impulsionar personagens arquetípicos dos “loosers”


Rocky e Adonis têm origens na massa de excluídos sociais – mesmo tendo sido adotado pela madrasta rica, Adonis Creed teve lá sua infância abandonada em casas de correção -, mas não se resignam ao roteiro previsível de seus pares. Pegam a raiva dentro de si e a purgam no ringue, onde apanham, sangram, caem, levantam, caem de novo e continuam levantando, até o momento em que sairão vitoriosos.

Fica implícito que não é pelo dinheiro ou pela glória (não só) que se submetem a perseguir o que parece impossível ao começo de cada filme. Mas suas motivações – o amor pelos seus, a amizade, a honra – os aureolam e nos fazem torcer por eles. Daí que o sangue, a desfiguração dos seus rostos, que em outros filmes tanto me repugnam, não são gratuitos. Estão à serviço de uma história maior. Uma história de gente como a gente (assim nos sentimos, pelo menos).

A história de “Creed” não chega a ser mais forte que às de Rocky, mas nem precisa. Sozinho, o personagem de Rocky preenche todas as lacunas. Sylvester Stallone está adorável emprestando uma maturidade terna e pacífica ao ex-boxeador idoso que aceita treinar o filho de um grande amigo morto. Nada de heroísmo ou exibicionismo machão na terceira idade. O Rocky Balboa de “Creed” aceita sua velhice e as vulnerabilidades que vêm com ela. Ensina o que sabe sobre luta e sobre perdoar e seguir em frente. É sim um tio querido, como o personagem de Adonis o chama por todo o filme.

Como cinema, “Creed” não resulta uma obra-prima, mas faz uma homenagem à altura do legado de “Rocky”, coroando a carreira de Stallone com honras.

Not bad it all, Sly… “Not bad it all” in deed!

‘Acusados’: ninguém é inocente!

Desde que começou toda a polêmica sobre o estupro coletivo no Rio de Janeiro tenho me lembrado cada dia mais do filme “Acusados” (The Accused), de Jonathan Kaplan. Por ter sido dirigido lá pelos idos de 1988, ingenuamente acreditei, no começo de todo o processo no Brasil, que estávamos muito à frente dos exemplos de sexismo e preconceito abordados naquele filme.

Só que não.

A Sarah Tobias que Jodie Foster interpreta em “Acusados” é uma sensual jovem de classe média baixa na casa dos 30 anos, que vai a um bar se divertir para esquecer a briga com o “namorido”. Acaba estuprada por um grupo de homens sobre uma mesa de bilhar. E, para seu horror, ela não passa pela experiência desacordada como a jovem brasileira filmada com suas partes íntimas sendo manipuladas e expostas para uma câmera de vídeo.

O filme começa na cena em que um jovem liga para a polícia de um orelhão para denunciar a “curra” (gíria para o estupro coletivo) no exato momento em que a vítima consegue sair correndo do bar, machucada e em choque. Daí até assistirmos à cena crucial de que trata todo o filme, demora quase o filme todo.

Parece enfadonho, mas acredite, não é.

A escolha do diretor por uma narrativa fragmentada obedece ao nobre propósito de municiar o espectador com os pontos de vistas de todos os envolvidos no fato, para que possamos refletir sobre as motivações tanto dos acusados quanto da vítima. O expediente, que acaba por humanizar (não isentar”) os acusados, evita pra nós a armadilha fácil de escolher um lado logo de cara.

No julgamento, a acusação faz o comportamento extrovertido de Sarah – que após alguns goles de álcool dança sensualmente para a plateia masculina – parecer um incentivo e um indício de que ela queria o que aconteceu a seguir. Até parece que é ela a julgada. Entendemos que tentar criminalizar Sarah não é só uma estratégia dos acusados, mas um senso comum de que uma mulher que dança e flerta em um bar está “pedindo” para ser estuprada.

O primeiro julgamento parece anunciar o final do filme, mas então assistimos a Sarah enfrentar o escárnio e desrespeito da sociedade em seu dia a dia. Isso faz a advogada decidir comprar mais uma briga, desta vez contra quem aplaudiu e incentivou o estupro e até quem simplesmente estava lá e nada fez para impedi-lo.

O recado de “Acusados” é claro: absolver e  aprovar o estupro sob pretexto de que a vítima “o provocou” tem o mesmo peso de praticá-lo. Desse ponto de vista, condenar os acusados não só faz  justiça, mas educa uma sociedade ainda inconsciente do seu machismo estruturado.

Acho que tão importante quanto saber o resultado do segundo julgamento do filme é ouvir os argumentos de defesa e acusação, novamente incentivando-nos a refletir e a nos questionar: a qual grupo pertenceríamos naquele julgamento se também tivéssemos estado naquele bar?