Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2019 trabalhando free lance com produção e edição de conteúdos; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

O alemão que caçou nazistas

O drama alemão “Labirinto de Mentiras” (Im Labyrinth des Schweigens, 2014), de Giulio Ricciarelli, é inspirado em fatos reais.

Na Alemanha de 1958 – portanto mais de uma década após a derrota de Hitler na 2ª Guerra Mundial -, um jovem promotor de Frankfurt decide dar ouvidos a um ativista solenemente ignorado pelos colegas que pedia a investigação de crimes de guerra.

Da primeira entrevista com um judeu sobrevivente de um campo de concentração nazista, Johann Radmann (Alexander Fehling) e sua secretária saem incrédulos e chocados. Mal sabem que o relato era apenas o primeiro de muitos – milhares – que desnudariam uma rotina de tortura e desumanidades praticadas pelo regime de Hitler e que a sociedade alemã estava feliz em ignorar àquela altura. Mas Radmann não deixa por menos e começa não só a investigar como a caçar as principais autoridades responsáveis pelos crimes relatados – Josef Mengele entre eles. Claro que enfrenta a chacota de seus pares e muitas dificuldades impostas pela ordem vigente, que acha muito conveniente deixar tudo no passado.

Mas não é o isolamento e nem as forças contrárias que chegam a abalar a determinação de Radmann, mas a constatação de que o nazismo não foi algo que uma minoria enfiou goela abaixo dos demais alemães, mas um regime abraçado, aprovado, aceito por uma porção majoritária da sociedade e que estendeu seus tentáculos até o núcleo imaculado da família do próprio promotor.

A história não confirma a crise de identidade que chegou a levar Radmann a desistir – ainda que por um curto período de tempo – de sua cruzada, mas o conflito descrito no filme confere humanidade e, consequentemente, identificação àquela figura que começava a ganhar contornos heroicos. Salutar em um momento que tende-se a entronizar acima do bem e do mal um “Sergio Moro”, por exemplo.

Hoje sabemos que Josef Mengele, o médico-monstro que usava prisioneiros dos campos de concentração como cobaias de experimentos científicos, sobreviveu incólume à caçada de Radmann e morreu livre no Brasil, seu último esconderijo. Mas a Alemanha e o mundo todo devem ao jovem promotor a punição de muitos nazistas responsáveis pelas histórias de horror do holocausto judeu.

O longa faz jus a isso sem mergulhar no ufanismo Recomendo!

ARTIGOS: série ‘Pílulas de memória’

Série de artigos publicados no jornal A Cidade, de Ribeirão Preto.


Artigo publicado em 30/12/2016

Olhos de distância

Postei a foto desta página inteira porque morri de orgulho de ter um artigo meu publicado ao lado de colunistas que admiro tanto!
Suas bençãos, Veríssimo e dona Ely (querida do meu coração)!

Marciana na farmácia

Diálogo presenciado numa farmácia.
Após cumprimentar um cliente conhecido na fila, uma das caixas lhe pergunta:
– Verdade que você é polícia?
– Já fui. Não sou mais.
– Mas você consegue tirar umas multas de trânsito do nome da gente?
– Já tirei muito. Hoje em dia só do meu.
Ela entrega o troco, agradece, chama o próximo, volta à carga:
– Nem tirar pontos da minha carteira? Ainda deve ter amigos lá.
O cliente pensa um pouco… responde:
– Passa os pontos para a minha [CNH]. Aí eu vejo o que eu faço. Acho que dá sim.
A caixa do lado felicita a colega:
– Tá vendo? Pra tudo na vida tem jeito.
Devido à distância entre os interlocutores, o pequeno ato de corrupção foi combinado em voz alta, à vista de todos.
Procuro identificar um olhar de indignação entre os outros cinco clientes que aguardam. Nada!
Provoco:
– E ainda reclamamos dos políticos corruptos – digo para ninguém e para todos.
Silêncio sepulcral.
Dois clientes me endereçam olhares indiferentes e logo voltam aos seus próprios pensamentos. Os outros, nem isso – “não devem ter ido a nenhuma passeata contra a corrupção”, penso.
Só o cliente ex-policial fecha a cara.
E é a caixa-multada quem passa minha compra. Pelo sorriso sem culpa que acompanha seu “bom dia e volte sempre”, tenho a certeza de que não entendeu minha provocação.
Quase tenho pena. É óbvio que não se acha uma corruptora e jamais vai entender a relação entre o seu pequeno ato e os mensalões da vida.
Saio da farmácia me sentindo uma marciana.

Obrigada, Paralamas!

Chorei sim! E não foi a primeira vez em um show do Paralamas do Sucesso.

Há alguns anos, no Sesc Araraquara, era a primeira vez que via Herbert Vianna no palco após ele quase ter morrido numa queda de avião. O vocalista e guitarrista ainda não formulava bem as frases. Seu cérebro se recuperava do acidente grave que levou a mãe de seus três filhos, mas a (grande) habilidade na guitarra continuava lá, e o som do Paralamas, que por muito tempo achamos que não faria nada novo, seguia vigoroso, vivo, eletrizante! Como não se emocionar sendo fã de carteirinha?

No último sábado, em Ribeirão Preto, o show da turnê “30 Anos” não era para chorar. Bem ao contrário… uma paulada sonora, que a acústica perfeita do Centro de Eventos do RibeirãoShopping turbinou bem!

Por 1h inteira, sem paradinhas pra respirar, Herbert, Bi (no baixo) e Barone (bateria) e seus fieis escudeiros (o tecladista João Fera, o saxofonista Monteiro Jr. e o trombonista Bidu Cordeiro) encadearam alguns dos melhores exemplares do seu rock brasileiro com pegada latina: “Vulcão Dub”, “Alagados”, “Cinema Mudo”, “Ska”, “Perplexo”, “O Calibre” (rockaço!), etc, entremeados de baladas não menos empolgantes, como “Lanterna dos Afogados”, “Tendo a Lua”, “Quase um Segundo”.

O público até se manteve – visivelmente a contragosto, a julgar pelas “cadeiras dançantes” – sentado por boa parte do show, como obriga a estrutura da sala. Mas então, lá pela 10ª, 11ª sequência, “Meu Erro” explodiu do palco e pareceu uma ação combinada: não teve quem, de adolescentes imberbes a sessentões (tinha de todas as idades), não chacoalhasse os esqueletos. E seguiu assim por “A Novidade”, “Melô do Marinheiro”, “Perplexo”, “Loirinha Bombril”…

E em “Óculos”, quando Herbert editou o refrão – “por cima dessas rodas também bate um coração”-, uma ovação foi a resposta.

No Bis, mais alguns sucessos e covers de “chegados”, como Lulu Santos e Ultraje a Rigor. Pra não perder a verve de contestação que sempre os acompanhou, “Que País É Este”, do Legião, encerrou com chave de ouro.

Claro que cantei todas, dancei todas, sentada, em pé… e chorei em algumas. Novamente de gratidão. “Vi o meu passado passar por mim”: a adolescente problemática, a jovem adulta batalhadora, a mulher madura estressada… para todas o som desses caras criaram oásis de alegria e festa no meio de cotidianos difíceis. E os versos enganadoramente banais de Herbert sempre me falaram muito mais do que as palavras que eles encadeiam: “Eu hoje joguei tanta coisa fora” – a lição de desapego de “Tendo a Lua” muito menos sobre “cartas e fotografias” do que “gente que foi embora”.

Fico pensando se nossos ídolos fazem alguma ideia do quanto entram em nossas vidas e as influenciam. No caso dos Paralamas, pulsa em mim um “amor de turma” – para citar a Paula Toller – cheio de gratidão, ternura e reverência. Se eu nunca tiver a oportunidade de dizer isso pessoalmente a eles, que fique ao menos este testemunho público: obrigada, caras! Vocês trouxeram (trazem) muita alegria à minha vida.

‘Grace & Frankie’

Era uma vez dois casais amigos. Uma noite, em um jantar que prometia ser parecido com todos os outros que compartilharam ao longo de 40 anos de amizade, Robert e Sol pedem o divórcio de Gracie e Frankie. A razão para terem feito o pedido juntos e ao mesmo tempo é que, aos 70 anos, eles resolveram “sair do armário”. Isso mesmo: enquanto seus filhos cresciam misturados e as duas famílias tiravam até férias juntas, os dois maridos mantinham um caso de amor secreto, cheio de idas e vindas temperadas por culpa e vergonha.

Assim começa a mais nova série original da Netflix, “Grace and Frankie”, protagonizada por quatro veteranos de respeito: Martin Sheen (The West Wing), Sam Waterston (The Newsroom), Jane Fonda (no papel de Grace, linda aos 70 e com uma bunda torneada por jeans de fazer inveja) e Lili Tomlin (ainda feia, mas igualmente engraçada no papel de Frankie).

O humor brota principalmente das confusões surgidas em situações sociais a que a nova configuração das duas famílias é exposta nestes novos tempos de (bem-vinda) tolerância de gênero. Mas é um humor de classe, nada apelativo, que não precisa de interpretações caricaturais para provocar o riso.

Nos momentos tragicômicos surgem as melhores pérolas do roteiro, não por acaso co-assinado por Marta Kauffman, de “Friends”. Eles convidam à reflexão sobre a vida, o amor e a sexualidade na terceira idade.

Os personagens são críveis, claramente inspirados em um novo perfil de idosos que permanecem pró-ativos social e profissionalmente. Os de Robert e Sal representam pessoas que passaram a vida escondendo sua homossexualidade dentro de casamentos hetero – nem sempre  infelizes (o de Sol e Frankie, por exemplo, era feliz em todos os aspectos que não envolviam sexualidade).

O grande trunfo da série é mostrar os desafios que surgem a partir de uma pretensa “libertação” favorecida por estes tempos “gay friendly”. Eles são muitos, imprevisíveis e legítimos.

Suuuuper recomendo!

‘Selma’: uma reflexão

Assistindo emocionada ao filme “Selma”, sobre os bastidores da marcha liderada por Martin Luther King pelo direito ao voto dos negros,  melancolicamente passei a refletir sobre a diferenças entre aquele momento político e o nosso atual no Brasil.

Quase senti inveja daquelas pessoas que tinham como inimigos opressores muito claros – o ódio e preconceito de uma parcela da população branca e a omissão da classe política –, mas como líder o pastor Martin Luther King, que conseguiu conduzi-las através de um mar de violência e ódio de forma pacífica, embora firme.

Hoje, no Brasil, a grande maioria da população é oprimida pela privação de direitos constitucionalmente essenciais, que são educação, saúde e alimentação decentes e dignos. Mas seus algozes não são declarados como os racistas norte-americanos. São pessoas que passam por respeitáveis na estrutura social enquanto integram redes de corrupção entranhadas em todas as estruturas de poder. E não temos um líder compassivo e justo como King para nos conduzir – achamos que Lula o seria, que pena!

Enquanto em “Selma” assistimos a pessoas de todas as cores de pele, religiões e crenças solidarizando-se com os oprimidos negros, no Brasil assistimos a uma triste desunião. Uma grande parte da classe média e a maior parte da classe alta saem às ruas fazendo manifestações preconceituosas (contra nordestinos, pobres e a quem mais pensar diferente deles), desrespeitosas (xingamentos de baixo nível principalmente contra a maior autoridade do País) e (absurdo dos absurdos!) de incitação a golpes ao Estado de Direito. Tudo para defender os interesses de sua classe.

Em “Selma”, a união venceu a opressão e, por aqui, brasileiros destilam discurso de ódios contra outros brasileiros apenas por discordarem.

E assim seguimos um País enfraquecido pela cisão e a intolerância mútua.

‘Orgulho e Esperança’: delícia de filme!

Sabe aqueles filmes que te deixam super leve, feliz e enternecida? Chamo de epifanias, por considerar pequenos milagres de alegria no meio de nossa vida corrida e estressante.

Pride” é a história de como um pequeno grupo de gays e lésbicas de Londres decidiu apoiar a fatídica greve dos mineiros, ocorrida no Reino Unido em 1984.

O grupo “Gays e Lésbicas apoiam os mineiros” decidiu começar a arrecadar recursos para ajudar os grevistas de uma vila do País de Gales a se manterem durante a paralisação.

Como todos os apoiadores do movimento eram recebidos na sede do sindicato da cidade apoiada, lá foram os oito amigos em um furgão conhecer os mineiros broncos e preconceituosos em seu habitat.

Claro que eles são recebidos, na primeira vez, com muitas reservas e até hostilidades. Mas, aos poucos, com sua alegria, tolerância e humanidade, o grupo vai conquistando até os mais machões.

Todos tornam-se heróis no vilarejo. A recíproca, tempos depois, foi linda, de fazer chorar mesmo.

No meio da história maior, o caso específico do jovem Joe (“Bromley” para os novos amigos), que está se descobrindo como gay e ainda se esconde da família. O filme também mostra como ele encontra o próprio caminho da aceitação.

Tudo emocionante. Quero assistir de novo sempre que minha fé na humanidade estiver em um nível precário.

ARTIGO: Este gigante não me representa

Publicado no jornal A Cidade, de Ribeirão Preto.

‘Para Sempre Alice’: tocante

“Para Sempre Alice” (Still Alice) não é um filme fácil. É sobre a força do espírito humano numa luta inglória, sem chances de vitória. Julianne Moore – que super mereceu o Oscar deste ano por seu papel no filme – interpreta a linguista Alice, que recebe o diagnóstico de um tipo precoce do Mal de Alzheimer.

Assistimos ao desmantelamento gradual de sua vida, com a perda de sua cadeira numa eminente universidade, e à fragilização de suas relações familiares.

O diretor – que também assina o roteiro com Richard Glatzer – conta essa história, baseada no romance homônimo de Lisa Genova, sem apelar para os recursos fáceis do melodrama.

Mas nem é preciso. Já é triste o bastante assistir a cenas como a de Alice perdendo-se dentro da própria casa ou desconhecendo a própria filha. Não precisamos de uma trilha sonora melosa avisando que é hora de chorar.

É uma lição de vida acompanhar como Alice enfrenta com classe e sem nenhuma auto-piedade a perda de suas próprias referências de identidade – identidade que, ironicamente, construiu em torno de seu intelecto privilegiado e de sua grande capacidade de comunicação.

Entendemos que a tal luta inglória do Alzheimer é sobre agarrar-se, um dia de cada vez, aos fiapos do que ainda se reconhece de si mesmo. Porque a doença é isso: perder-se de si.

Ainda que Alice não se reconheça, conseguimos enxergar, de nosso ponto de vista, sua altivez por traz da vulnerabilidade e sua gradual regressão mental.

No fim das contas, constatamos: ainda que a luta seja inglória, o amor que fica ainda faz valer a pena.

P.S. “Deeply touched too, Luciana Segantin