Categoria: CINÉLIDE

Com Michael Jackson, a música encontrou a linguagem do cinema

Cena 1:
– Conversível que leva um jovem e bonito casal para, sem gasolina, em uma rua escura;
– Eles saem caminhando e aproveitam para conversar, se declararem.
– O rapaz começa a dizer que não é como os outros caras que ela conhece
– Enquanto isso uma lua cheia sai detrás de um manto de nuvens no céu
– O rapaz começa a contorcer-se em caretas até se transformar em um monstro, diante dos gritos da mocinha;

O que começou como um filme romântico agora parece um thriller de terror.
E é!
Assim começa “Thriller”, de Michael Jackson, o videoclipe com de mais de 13 minutos de duração (até hoje um recorde para o gênero) que revolucionou a forma como se fazia vídeos musicais até então. Depois dele – e de muitos outros clipes de Michael desta época, como “Beat it” – nunca mais esse tipo de produção se restringiria a apenas encadear cenas de shows ao vivo ou de músicos dublando as próprias gravações em um cenário imóvel.

Os clipes de Michael eram diferentes e super-produzidos. Contavam uma história, assemelhando-se por isso a curtas-metragens, mas ao mesmo tempo diferenciando-se deles pela forma fenomenal como combinavam números de dança e música a hipnotizarem o espectador.

Com o sinal verde de Michael para casar da melhor forma a força de sua música à imagem em movimento, os diretores de seus clipes, recrutados no cinema, como John Landis e Spike Lee, deixavam a criatividade rolar, sempre auxiliados pela melhor e mais recente tecnologia que o dinheiro podia pagar. Vide “Black and White”, primeiro clipe a usar o efeito morfo para mostrar imagens de pessoas de várias raças transformando-se umas em outras, ou “Stranger in Moscow”, que usou o recurso da câmera ultra lenta de uma forma inédita para a época.

A lista de videoclipes memoráveis não para aí e inclui, só para ficar entre os meus favoritos, “Smooth Criminal”, “Heal the World”, “Earth Song”, “Childhood” (além dos primeiros citados acima).

Michael Jackson pode não ter sido o idealizador de todas as músicas deliciosamente dançantes ou de todos os clipes fantásticos que protagonizou, mas ter sabido se cercar das melhores cabeças do ramo já era uma prova irrefutável de sua genialidade. Não por acaso tudo o que fazia virava ouro – digo, milhões de dólares.

Mas nem os orçamentos milionários, nem diretores de cinema ou as tecnologias de última geração fariam desses videoclipes o sucesso que são até hoje não fosse um componente fundamental: o TALENTO do próprio Michael Jackson. Fora dos palcos ou das câmeras ele parecia um sujeito mirrado, magricela, de voz infantil e identidade sexual duvidosa, mas à frente deles transformava-se em um gigante, um fenômeno!!! Um showman de carisma, presença e ginga até hoje incomparáveis e sem similares na história da música pop.

Restrinjo-me aqui a comentar apenas a parte de sua carreira que “namorou” com o cinema por motivos óbvios [é um blog de cinema, minha praia…], mas confesso que, a despeito de todas as polêmicas e escândalos que rondaram sua vida pessoal, sempre AAA-DOOO-REEEEI o trabalho de Michael e nunca dei a mínima para os preconceitos dos puristas, sempre contrários, por princípio, a tudo o que faz sucesso em escala de massa.

Não dá para ninguém negar. O cara era talentoso!

Até hoje sinto saudades de como novas músicas e videoclipes seus me faziam sentir.

Ralph Fiennes: todas as emoções no olhar

Considero Ralph Fiennes um ator completo, por dominar tanto linguagem corporal quanto expressão facial, voz e timing de cena. Mas o que mais me atrai nele é, sem dúvida nenhuma, seu meigo e expressivo olhar, que ele sabe tornar ora sensual, ora doce, às vezes, implacável e, quando preciso, assustador.

Assisti-lo pela primeira vez no cinema como o Heathclif de “O Morro dos Ventos Uivantes” (Wuthering Heights, EUA/ING, 1992, dir: Peter Kosminsky) foi para mim um choque! Perguntei-me na hora “de onde surgiu este ator de traços refinados, que carrega todas as emoções do mundo no olhar?”. Passei a procurar por filmes em que ele atuava e não me decepcionei uma única vez.

Workaholic, Fiennes atua em duas a quatro produções cinematográficas por ano e ainda tem tempo de fazer muito teatro, sua grande paixão. No cinema, não tem medo de aceitar papéis desafiadores, como o mordomo alcoólatra e homossexual de “Bernard e Dóris” ou os vilões do filme “Spider” e da série “Harry Potter” (é ele por trás de toda aquela maquiagem de Lord Voldemort).

Suas atuações conseguem provocar tanto sentimentos de rejeição, como o fez seu perverso Amon Goeth de “A Lista de Schindler” e seu Duque de Devonshire em “A Duquesa”; quanto seus personagens românticos conseguem enternecer em filmes como “Estranhos Prazeres”, “O Paciente Inglês”, “Paixão Proibida” e “Fim de caso”. Sob a direção do brasileiro Fernando Meirelles (de “Cidade de Deus”), ele encantou como o apaixonado protagonista de “O Jardineiro Fiel”.

Sua presença em cena consegue dar dignidade até a personagens improváveis como o político da bobinha comédia romântica “Encontro de Amor” – pobre Jennifer Lopez, desfilando seus limitados dotes dramáticos ao lado de tal ator.

Mas lindo e apaixonadamente vulnerável ele está mesmo em “Paixão Proibida” (título idiota que ganhou no Brasil “Onegin”), adaptação para o cinema da obra clássica “Eugene Onegin”, do russo Aleksandr Pushkin – a mesma da ópera famosa, com músicas de Tchailovski. A irmã de Ralph, Martha Fiennes, estreou na direção de longas com este filme e não fez feio. Ralph muito menos!

Fracassados que são um sucesso!

Não é preciso assistir a muitos filmes norte-americanos para perceber o quanto o rótulo “looser” (perdedor, fracassado em inglês) é temido como a pior das humilhações nos Estados Unidos. Não a toa uma das trilogias mais festejadas do cinema hollywoodiano, “De Volta para o Futuro“, explora esta fobia americana (viajando para trás ou para a frente no tempo, o jovem Marty McFly tem a chance de checar o quanto suas ações podem, numa reação em cadeia, influenciar o futuro de sua família, de forma a tornar seus integrantes eternos fracassados ou distintos e invejáveis membros da sociedade).

Andie McDowell e James Spader em ‘Sexo, Mentiras e Videoteipes’

Para a nossa sorte, o cinema não é veículo exclusivo do status quo ou morreríamos de um tédio sem fim ao pé da tela grande, já que o circuito comercial brasileiro é mais de 70% abastecido pela indústria cinematográfica norte-americana. Uma corrente iniciada no cinema independente, com “Sexo, mentiras e videoteipes” (1989) – a estreia de um então jovem e promissor Steven Soderbergh (“Erin Brockovich” e “Che”) – tem redimido os “loosers” ou, político-corretamente falando, este perfil de norte-americano fora dos padrões.

Em “Sexo, mentiras…”, Graham (James Spader, lindo por volta de seus 30 anos) é um desempregado que tem como hobby coletar depoimentos em vídeo de desconhecidos sobre suas relações com o sexo. Tornou-se um “looser” por opção depois que a noiva o traiu às vésperas do casamento deles, nove anos antes. Desde então, ele se distancia das pessoas e de qualquer tipo de relacionamento ou intimidade por não aguentar mais conviver com as mentiras que acompanham a vida em sociedade. Seu reencontro com o amigo de infância John (Peter Galagher), perfeitamente adequado ao “sonho americano” e um mentiroso de carteirinha, vai provocar uma revolução na família deste.

Muitos anos depois de “Sexo, Mentiras e Videoteipes“, um de meus diretores preferidos, Cameron Crowe, conseguiria a proeza de, em um filme comercial, dar tratamento de herói a um protagonista rotulado como looser (ainda conseguir ótima bilheteria!!!).

É verdade que ajudou ter sido Tom Cruise a dar vida ao personagem-título de “Jerry MaGuire” (foto à esquerda), um executivo até então carreirista que, num surto de humanidade, passa a ser frito na empresa em que trabalha depois de distribuir um manifesto pregando um tratamento mais humano aos clientes. Colegas e clientes, com exceção de uma secretária idealista e um cliente também com complexo de “perdedor”, passam a fugir dele como o diabo da cruz. Claro que ele encontrará uma forma de se reinventar, como profissional e ser humano.

Já “Pequena Miss Sunshine” conquistou público e crítica com a história de uma família inteira de fracassados, formada por um pai metido a coach motivador, um avô viciado em heroína, um adolescente depressivo que não fala há nove meses, um tio gay que acaba de tentar suicídio, uma dona-de-casa insatisfeita e uma filha gorducha e míope – única a dar aulas de auto-estima a todos. É a pequena quem motiva a família toda a atravessar o país numa Kombi velha para levá-la participar do concurso que dá nome ao filme. Nas situações inusitadas e hilárias que ocorrem pelo caminho, eles descobrem uma nova forma de agir como família e, de quebra, nos fazem refletir sobre a complexidade e as armadilhas que encerram os conceitos de “fracasso” e “sucesso”.

Adoro quando ótimos entretenimentos também nos incentivam a pensar.

Sobre Shirley, Rosalba e Mercedes

A inglesa Pauline Collins no papel de Shirley Valentine

Se não sabe a quem diabos me refiro no título deste texto, não se preocupe. Shirley, Rosalba e Mercedes são personagens femininas de filmes com pegada mais independente (portanto menos distribuídos que os “arrasa-quarteirões” da indústria), produzidos com baixo orçamento, de uma as três décadas atrás – “Shirley Valentine” (Inglaterra, 1989 – inspirado em peça teatral homônima), “Pão e Tulipas” (Itália, 2000) e “Divã” (Brasil, 2009 – também egresso do teatro), respectivamente.

Foram exatamente estes os motivos que me fizeram escrever sobre elas, pois acho um desperdício personagens tão inspiradoras não serem revisitadas com a mesma frequência que uma “mulher maravilha” – o que, aliás, elas também são a seus modos.

A inglesa Shirley, a italiana Rosalba e a brasileira Mercedes têm de diferente a nacionalidade e a década em que foram apresentadas ao público ocidental, mas se assemelham em quase tudo o que é importante. São amorosas, dedicadas, inteligentes e, acima de tudo, corajosas!

A italiana Licia Maglietta como Rosalba

Na pele das atrizes Pauline Collins, Licia Maglietta e Lília Cabral, respectivamente,  elas empreendem lindas viagens – literais e interiores – em busca das próprias identidades, que perderam enquanto assumiam (e se perdiam dentro de) papeis de mães e esposas. E vocês sabem: quando o mundo começa a confundir nossa identidade com os papeis que assumimos é quase certo que nós também nos confundiremos – por isso se chama “crise de identidade”.

Shirley e Rosalba resolveram suas próprias crises viajando. A primeira aceitou o convite de uma amiga para passar férias na Grécia após constatar que, para os filhos e o marido, representava pouco mais do que um móvel da casa. A segunda foi aprender a viver sozinha em Veneza depois de ter sido esquecida pela família em um posto de gasolina durante uma viagem de férias. Já para  a brasileira Mercedes, a viagem foi interior e começou no divã de um psicanalista, que ela resolve procurar “por curiosidade”, pois está convencida de ter uma vida feliz.

A brasileira Lília Cabral é Mercedes

Assisti às três questionarem a vida que construíram até ali e traduzirem suas reflexões em atitudes é redentor!

Longe de seus papéis de mães e esposas, as três personagens se auto-conhecem novamente e descobrem-se como seres humanos mais complexos do que aqueles a que os papéis que assumiram durante a vida as reduziram. São mães e esposas, sim – com muito orgulho! -, mas também muito mais!

Nenhuma delas perde tempo jogando a culpa de suas rotinas alienantes em outras pessoas. Sabem que não há vítimas onde existem escolhas. Foram elas que escolheram seus papeis e se acomodaram neles, a ponto de, em dado momento, deixarem-se confundir com eles.

Shirley, Rosalba e Mercedes escolhem agir sem ódios nem rancores e mudar suas vidas radicalmente porque entendem que podem escolher sempre. Escolheram ser inteiras!

‘X-Men Origens: Wolverine’ fica aquém da franquia

Fã que sou da série “X-Men”, estava ansiosa para assistir ao produto da franquia que conta a história pregressa do seu herói mais carismático. Mas “X-Men Origens: Wolverine” (Men Origins: Wolverine, EUA, 2009) me decepcionou, apesar de reunir os principais requisitos de um eficiente filme de ação. Para mim, a produção fica aquém da proposta maior da série, de provocar reflexão sobre os vieses inconscientes que nos levam a temer e segregar o diferente.

Não que a ação seja o ponto fraco dos produtos anteriores da série – “X-Men” (2000), “X-Men 2″ (2003) e “X-Men 3: O Confronto Final” (2006) – muito pelo contrário! A diferença é que neles, esta pegada é tratada como um entre muitos recursos à favor de contar histórias com um propósito: provocar reflexões sobre os mecanismos do preconceito.  Seus roteiros tecem alegorias de situações de intolerância com as quais convivemos no dia a dia, às vezes sem percebermos. Oo espectador fisgado pela ação acaba convidado a, subliminarmente, refletir sobre de que lado dos conflitos entre mutantes e não-mutantes estaria: dos que lidam com o preconceito dando o exemplo da tolerância com a qual não contam, ou dos que escolhem se vingar e subjugar quem os segrega.

Já o filme sobre Wolverine sobrevoa a questão ao contar sua história pessoal, que começa em 1880, quando ele nasce filho de ricos fazendeiros de Alberta (Canadá), e vai até o momento em que, adulto e amargurado pelo assassinato da esposa, aceita ser cobaia em um projeto secreto do governo. Finalmente descobrir como Stryker – o militar sem escrúpulos que conhecemos mais velho em “X-Men 3 – comandou a experiência de fortalecer o esqueleto de Logan com adamantium, e como este ganhou o condinome Wolverine são pontos a favor da história. Até concedo que, em dado momento, o roteiro sugere um dilema interior do herói, entre ser humano e deixar sua natureza animal aflorar, mas nada que encontre similares na realidade pra instigar a reflexão.

“X-Men Origens: Wolverine” acaba fazendo dos recursos de ação da franquia a própria razão do espetáculo. Agrada, claro, aos fãs do gênero, com suas lutas, assassinatos espetaculares e perseguições, mas perde os espectadores que, para além da experiência sensorial, valorizam as perguntas que uma boa história é capaz de suscitar. Somando tudo, resulta em um ótimo filme de ação! Mas só.

Richard Armitage

Richard Armitage

Se você considerar separadamente cada traço do inglês Richard Armitage – os lábios muito finos para o tamanho da arcada (levemente recuada em relação ao queixo meio pontudo), o nariz grande e mal desenhado e os olhos fundos – concordará que ele também não se encaixa no padrão masculino de beleza do cinema.

Mas assista-o utilizando este conjunto na interpretação de uma cena de grande emoção (como a que postei ao final deste texto, por exemplo). O olhos azuis claros adquirem uma intensidade de agulha, os músculos da face se contraem à mercê da expressão e a boca articula com ferocidade e determinação. E a voz…

Ahhhh, a voz de Richard Armitage…! Como no caso de Matthew MacFadyen, é seu grande trunfo, com a diferença de que Armitage é muuuuito melhor ator. A ira de seus personagens dá medo, bem como sua tristeza desperta vontade de niná-lo ou sua expressão amorosa faz derreter. Por este motivo não entendo o porquê de sua carreira continuar restrita à TV inglesa, onde até recentemente ele arrancava suspiros no papel de Guy of Gisborne, do seriado “Robin Hood”.

No “The Internet Movie Database” – o banco de dados mais completo sobre o mundo do entretenimento na rede – consta que ele emenda um trabalho em outro na TV desde 1999, sempre em episódios de minisséries ou seriados. Não encontrei nenhum longa metragem em sua cinematografia, mas o registro de experiências anteriores em teatro e musicais explicam a voz forte e sempre bem colocada, o talento interpretativo, a boa linguagem corporal e a grande presença em cena.

Eu o conheci na pele de John Thornton, protagonista de “Norte e Sul”, adaptação em quatro capítulos feita pela BBC de romance homônimo da inglesa Elisabeth Gaskell, cuja obra se assemelha em muitos pontos à de outra inglesa muito filmada pelo cinema ocidental: Jane Austen.

Assisti à série e A-DO-REI! Principalmente, claro, devido à atuação de Armitage. Entendi porque os fãs de Jane Austen estavam defendendo a sua escolha para o papel de Mr. Knightley na adaptação de “Emma” que a BBC rodou em 2009 (volta-e-meia a emissora inglesa programa uma nova adaptação de uma obra da escritora). Mas o escolhido foi mesmo Johnny Lee Miller, o protagonista da série “Eli Stone”, da Sony, que já viveu antes um personagem de Austen: foi Edmund na versão para o cinema de “Mansfield Park” (que no Brasil passou com o título de “Palácio das Ilusões”). A Emma de 2009 tem a atuação de Romola Garai, a boazinha Amélia de “Feira de Vaidades” e a Briony adulta de “Desejo e Reparação”.

‘Dúvida’: todas as certezas são frágeis

“Sempre tive medo de pessoas que têm certeza de tudo”.

Esta frase, que li há muitos anos, não sei em qual livro ou filme, ficou em minha memória para sempre. Hoje sei porque: as pessoas que mais temi na vida exerceram algum tipo de autoridade opressora sobre mim e este é o tipo exercido pela personagem que deu o Oscar de Melhor Atriz deste ano a Meryl Streep, no filme “Dúvida” (Doubt, EUA, 2009), de John Patrick Shanley.

A atriz interpreta (divinamente, como sempre) uma freira assustadora, que dirige com mãos de ferro um colégio religioso. Quando um dos padres professores profere em missa um sermão sob o tema “Dúvida”, ela passa a investigá-lo. Em dado momento, julga-o capaz de molestar o único garoto negro da escola, que, isolado, recebe dele apoio e atenção especiais.

O roteiro é hábil em despertar também em nós, espectadores, a dúvida sobre a culpa ou inocência do padre, mas, a mim, pessoalmente, causou muito maior assombro o comportamento autoritário da freira, que não vacila em acusá-lo, mesmo sem provas concretas. Para culpá-lo, ela maximiza evidências vagas relatadas pela jovem freira interpretada por Amy Adams, também indicada ao Oscar de atriz coadjuvante pelo papel – o filme, aliás, rendeu quatro indicações de atuações naquele ano: além de Meryl e Amy, também para Viola Davis e Phillip Seymour Hoffman.

Assustadora esta freira que olha nos olhos de todos e diz exatamente o que deve ser feito, que não admite que possa haver outras versões para o que é certo, que acua a todos com suas certezas

O desfecho do filme reserva destinos surpreendentes aos antagonistas. Nada é o que parece ser e descobrimos que há algo de frágil na autoridade de quem não admite questionamentos. Se as certezas são sua sustentação, o que acontecerá a essas pessoas quando a mínima dúvida começar a corroer este pilar?

Com o tempo, também deixei de temer as pessoas que têm certeza de tudo, porque, no fundo, todas as certezas são frágeis.

Terapia de grupo para ‘luluzinhas’

A “formulização” dos roteiros de cinema pela grande indústria torna cada vez mais raro eu me divertir com uma comédia romântica. É que assistir muitas vezes a filmes que seguem a mesma fórmula de  roteiro, feita para atrair grandes bilheterias, faz a gente adivinhar  o que vai acontecer e até sentir muita vergonha alheia com cenas e diálogos piegas ou desfechos forçados. Um saco, né?!

Mas, graças à “Nossa Senhora dos Cinéfilos”, alguns roteiristas ainda conseguem inovar e, às vezes, até brincar com as fórmulas batidas do cinemão, como foi o caso em “Sintonia de Amor” (sobre a qual já escrevi aqui), e a comédia romântica tema deste texto: “Ele Não Está Tão a Fim de Você” (He’s Just Not That Into You, EUA, 2009), com direção de Ken Kwapis.

Há muito tempo eu não me entregava sem reservas a um “filme para luluzinhas” (que, aliás, adooooro quando bem feito!). Dei boas risadas, mas também me enterneci com alguns trechos mais românticos e/ou dramáticos de cada uma das histórias paralelas que se entrelaçam no filme.

O roteiro escancara a tendência feminina em encontrar desculpas e significados ocultos para a covardia masculina em “falar a real” para as mulheres. Ou seja, assumirem, sem truques, com toda a franqueza que o sexo oposto merece, o que realmente querem em um relacionamento.

Não posso falar sobre todas as mulheres, mas eu mesma me vi em mais de uma situação emblemática reproduzida no filme e sei que várias amigas também (não é, Karen Rodrigues e cia.?). Todas descobrimos que pode ser bem catártico nos permitirmos dar boas gargalhadas ao nos vermos no “espelho social” que o cinema, às vezes, propicia.

Admiro até que FUI (observem o tempo do verbo) a personagem de Ginnifer Goodwin, romântica incurável que busca um relacionamento sério, mas vive caindo nas “mentirinhas” que os homens contam para simplesmente “pegar” o máximo de mulheres que puderem. E quando os potenciais candidatos a namorado não ligam de volta após o primeiro encontro, levanta todo tipo de hipóteses psicanalíticas para desculpá-los. Quem faz Ginnifer acordar para evidências de que as tais desculpas que os homens dão significam simplesmente que eles não estão a fim dela é o personagem de Justin Long, barman “sincerão” de quem se torna amiga. Ele passa a ser seu consultor na interpretação das “desculpas” que os homens dão, para que ela pare de perder tempo tendo expectativas com quem não merece.

Só cito o perfil da personagem de Ginnifer porque é aquele com o qual me identifiquei, mas a partir das experiências das amigas dela, outras situações se ramificam em um mosaico das dúvidas que assombram os relacionamentos modernos. Tenho certeza que todas encontram similares na realidade, mas desconfio que a coisa toda só terá graça para quem estas situações já ficaram no passado…

Rir de tudo é muito mais fácil quando a doença não está mais instalada.

Harry Potter: lições que podem salvar uma geração

Tenho uma inveja boa da geração que cresceu assistindo/lendo à série Harry Potter. A minha não contou, no cinema, com um produto dramatúrgico que lhe alcançasse tão certeiramente neste período crucial de passagem da infância para a adolescência. Descontados os resumos inevitáveis para fazer caber a história de cada livro nos roteiros de cinema, a saga do bruxinho resultou muito bem filmada e interpretada para as telonas. Acaba sendo um suporte visual para a mágica obra literária de J. K. Rowling, que soube dosar com maestria em seu caldeirão doses de fantasia, mitologia, arquétipos psicanalíticos e temas caros ao universo infanto-juvenil.

Vamos deixar de lado os preconceituosos que torcem o nariz para qualquer dramaturgia que vire fenômeno de massa e admitamos: a série “Harry Potter” é a obra (bem sucedida) de uma geração. E esta é uma ótima notícia! Porque quem cresceu com a série pode ter apreendido, com os conflitos enfrentados pelo bruxinho órfão, valiosos valores morais por assimilação inconsciente – alguns deles perdidos dentro dos novos modelos de família, em que muitos pais atarefados (ou desinteressados) demais deixam à escola a formação moral que deveria vir de casa.

O padrinho Sirius explica a Harry que todos temos o mal e bem dentro de nós e o que define quem somos são nossas escolhas

É grande a carga de lições passadas pela obra e elas podem salvar uma geração da tendência ao ódio e à intolerância, por exemplo. Entre as mais importantes, a de que são as escolhas pessoais e não uma pré-determinação genética ou cármica que definem o tipo de pessoas que somos/seremos. Outra: de que a intolerância está na raiz dos regimes autoritários e de toda guerra.

A saga traz ainda lições sobre amizade, abnegação e sacrifício – qualidades reduzidas ao status de cafonice em um modelo de conduta individualista cada vez mais em voga nesta era da informação. Harry não será o único herói a dar exemplo delas. Como pontuou muito bem o crítico de cinema Luiz Carlos Merten, à época do lançamento de “Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2”, o último filme da saga descortina outro herói, “o verdadeiro herói, que tem que trair para servir o objeto de sua devoção”. O que carrega bravamente o ônus da antipatia e do julgamento injusto em nome de uma causa maior que ele mesmo.

E correndo o risco de assumir de vez a pecha de cafona, atrevo-me a dizer que ainda não inventaram nenhuma motivação mais legítima para escolher o que é certo – pautando como certo o que é bom para toda a coletividade – do que “gostar do outro como de si mesmo”. Isso lembra alguma coisa?

‘O Casamento de Rachel’: de perto nenhuma família é normal

Anne Hathaway e Rosemary DeWitt interpretam irmãs no drama ‘O Casamento de Rachel’

Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira“.
Leon Tolstói, in ‘Anna Karenina’

 

Volta e meia o cinema coloca à prova as frases acima, convidando o espectador a adentrar a intimidade de famílias exemplares na aparência, mas disfuncionais nos bastidores. Esta modalidade de enredo ganhou um representante fora da curva em “O Casamento de Rachel”, produção de um grande estúdio filmada com pegada de independente pelo diretor Jonathan Demme (“O Silêncio dos Inocentes” e “Filadélfia”).

O drama rendeu a primeira indicação ao Oscar de Melhor Atriz da carreira de Anne Hathaway (“O Diário da Princesa” e “O Diabo Veste Prada”), que mereceu! Ela está de arrasar no papel de Kimmy, dependente química que recebe autorização da clínica de reabilitação na qual se trata – não pela primeira vez – para comparecer ao casamento da mais velha, Rachel. A condição é que se submeta a testes de urina antes e depois do evento e freqüente reuniões diárias do Narcóticos Anônimos pelo tempo que precisar se ausentar.

Nos poucos dias entre o jantar de ensaio do casamento e a cerimônia oficial, assistimos à família tentar dar um aspecto de normalidade às relações com a caçula problemática, que tenta fazer “remendos” aqui e ali. Mas há muitas feridas abertas em cada um por episódios traumáticos causados por seu vício. Antigos ressentimentos com os quais todos evitavam lidar vêm à tona, revelando, inclusive, que todos têm sua parcela de responsabilidade em cada drama familiar.

A câmera de Demme acompanha as ações e reações de cada personagem muito de perto, dando, às vezes, um clima de documentário à produção. Em outras de um filme caseiro de evento familiar. Em todos os casos, temos a incômoda impressão de estarmos olhando para o que não deveríamos, por um buraco da fechadura. Talvez até tenha sido esta a intenção do diretor ao filmar de uma forma tão intimista: fazer com que nos sintamos intrusos em cenas que são da conta apenas daquela família.

Ao final, nem todos os ressentimentos são resolvidos e ou todas as culpas perdoadas, mas a mensagem que fica é a de que, por mais forte  os dissabores e decepções, o amor tem o poder de manter unidos entes que nem sempre conseguem conviver juntos sem se machucarem.