Minha relação com o cinema existe desde tenra idade. Posso dizer que a sétima arte ajudou a me formar em um tempo sem computadores, aparelhos celulares e videogames. Aquele período crucial da infância, que a literatura costuma identificar como a de início da formação da personalidade, passei descobrindo tesouros cinematográficos em frente à tela de uma TV em preto-e-branco.
No Brasil da década de 1970, enquanto a Ditadura Militar seguia perseguindo opositores do regime e censurando toda expressão artística que considerasse subversiva, minha vidinha era acordar de manhã na parte de cima de um beliche, ir à escola, fazer o dever de casa e sentar-me para assistir à Sessão da Tarde, enquanto as outras crianças de minha idade assistiam a desenhos de Tom & Jerry, Patolino, Frajola e Coiote, que eu odiava! (definitivamente não fui uma criança normal!)
Preferia assistir a filmes de Blake Edwards, Elia Kazan, Michael Curtis, Joseph Mankiewickz, Charles Vidor, entre muitos outros grandes diretores estabelecidos na velha Hollywood que ajudaram a escrever a história do cinema mundial. Admirava heroínas fortes como Katherine Hepburn em “Núpcias de Escândalo” (The Philadelphia Story, 1950); confiantes como Bette Davis em “A Malvada” (All About Eve, 1950); sensuais como Rita Hayworth em “Gilda” (Gilda, 1946) ou determinadas como Holly Goolightly em “Bonequinha de Luxo” (Breakfast at Tiffany’s, 1961).
Mas eram personagens simplórias que eu assumia quando me imaginava na continuação de um filme que havia acabado de assistir – hoje sei que são chamadas fanfic (de fan fiction) os roteiros que os próprios fãs criam a partir de personagens já existentes. Eu os criava em minha cabeça aos montes desde muito jovem.
A lembrança mais remota que tenho de um alter ego é a personagem Tammy, de Debbie Reynolds, em “Flor do Pântano” (Tammy and the bachelor, 1957).
No quintal gramado de nossa casa, antes de meu pai construir uma edícula para abrigar meus avós maternos, eu costumava colocar uma das extremidades de uma tábua longa apoiada sobre uma lata velha de tinta. Descia essa rampa improvisada imaginando-me Tammy galgando as escadarias da mansão sulista onde estava hospedada… seus anfitriões e convidados, acostumados a vê-la de tranças, metida em camisas de flanela xadrez e jeans sujos, sorviam surpresos e encantados a visão dela em um vestido do século 18.
Revivia secretamente Tammy salvando um belo homem do pântano, sendo acolhida pela família dele numa mansão sulista e metamorfoseando-se em uma linda mulher na festa em memória dos mortos na Guerra Civil.
Eu não lia contos de fadas, mas o cinema estava cheio delas. Não precisei ler “O Patinho Feio”. mas assisti às suas versões de saias em diferentes filmes – além de Tammy, todas as mocinhas ingênuas vividas por Debbie Reynolds ou Doris Day, inclusive a masculinizada Calamity Jane de “Ardida como Pimenta” (Calamity Jane, 1953), ou as adolescentes boazinhas de Sandra Dee naqueles filmes de praia da década de 1960.
Vejo hoje que Tammy – moleca, infantilizada, vivendo só com o avô numa casa isolada no meio de um pântano – era a imagem que eu já fazia, inconscientemente, de mim mesma.
Mesmo rodeada por uma família, com pais, avós e duas irmãs mais velhas, eu seguia isolada da companhia de outras crianças da mesma idade. Meu pântano era o ribeirão que nos isolava do centro urbano e em torno do qual víamos até vacas, cabras e cavalos pastando, tendo os prédios do Centro da cidade ao fundo. Meu mundo era pequeno.
Ainda sinto um genuíno prazer em rever esses filmes, mas, diferente de quando me projetava nas personagens, hoje os saboreio como espectadora, inundada de nostalgia de um tempo de pureza e magia. Mas, definitivamente não me projeto mais em nenhuma.
Cresci!