Categoria: CINÉLIDE

‘Clube de Compras Dallas’: filme de atores

Clube de Compras Dallas” é um filme de atores. Parece ter sido feito para fazer brilhar Matthew McConaughey, no papel de um machão homofóbico, e Jared Leto, convincente na pele de um travesti.

E eles brilham. Não só porque McConaughey encarou a perda de 20 quilos – assustadoramente magro, está quase irreconhecível no filme – ou porque Leto fica lindo até vestido de mulher. Eles dominam as cenas, apoderam-se com gana dos diálogos secos do submundo pelo qual suas personagens transitam.

Dá prazer assistir a dois atores talentosos pegarem papéis tão espinhosos “pelos chifres”, como os peões na arena de rodeios onde o filme começa.

O Ron Woodroof de McConaughey é politicamente incorreto do começo ao fim – os anti-heróis estão em alta nesta temporada em Hollywood. Eletricista de profissão e trambiqueiro por vocação, ele gosta de tirar vantagem financeira de qualquer situação e mais ainda de “torrar” seus lucros em orgias sexuais regadas a álcool. É como ele provavelmente contraiu o vírus da Aids numa época em que ainda se sabia muito pouco sobre a doença e acreditava-se que seu contágio dava-se, principalmente, através da relação homossexual.

Naqueles anos 1980, o AZT ainda passava por testes médicos e as vitaminas e drogas que viriam a integrar o “coquetel” de tratamento da doença – hoje usado com sucesso – sequer eram aprovados nos Estados Unidos. Woodroof foi encontrá-los em uma clínica clandestina do México, para onde viaja depois que “seca a fonte” de AZT que contrabandeava de testes hospitalares.

Não demorou a passar da preocupação com a própria saúde para a elaboração de um meio de lucrar com a venda desses medicamentos a outros soropositivos. Mal sabia que teria pela frente uma boa briga contra dois “Golias”: a indústria farmacêutica, que começava a assistir seu monopólio ameaçado por aquele “Davi” do submundo, e o próprio governo norte-americano, que passou a considerá-lo contrabandista.

Sem pieguices

É muito sutil a forma como o filme mostra Woodroof mudar da preocupação só com seu lucro para com pessoas morrendo. Mas o roteiro não cai na armadilha fácil de santificá-lo e nem por um minuto apela para o sentimentalismo, mesmo ao tratar de um tema tão nevrálgico quanto a iminência da morte.

Esta não é uma história de dor e sofrimento, mas de sobrevivência, que é a característica, afinal, que se sobressai nos dois principais personagens, mais do que a transformação física, mais do que suas posturas politicamente incorretas.

‘Azul é a cor mais quente’: uma história de amor (e muito sexo) em dois atos

Muito se falou sobre as longas cenas de sexo lésbico em “Azul é a cor mais quente”: que são um libelo pela liberdade sexual, pornografia embalada em filme de arte, voyeurismo e por aí vai.

Esse barulho todo é, ao mesmo tempo, o maior trunfo e a maior fraqueza do filme dirigido pelo tunisiano naturalizado francês Abdellatif Kechiche (“O Segredo do Grão” e “Vênus Negra”). Trunfo porque funciona como marketing e fraqueza porque o impacto causado pelas cenas de sexo “asfixia” os demais aspectos do filme. Ninguém dá importância ao fato de que, por trás de todo o voyeurismo, existe uma história adaptada livremente da graphic novel homônima de Julie Maroh pelo próprio Kechiche.

E ela vem dividida em dois atos, como entrega o título original (“La Vie d’Adèle – Chapitres 1 et 2”): o primeiro mostra a descoberta da sexualidade pela jovem Adèle; o segundo descreve a trajetória de sua relação com Emma.

Adèle sente-se “incompleta” após a primeira transa com um rapaz de sua idade e fica ainda mais confusa quando uma colega lhe rouba um beijo. Quando conhece Emma, liberal e irreverente em seu cabelo azul, entrega-se à paixão.

A cor azul aparece nos cabelos de Emma e também no tom das roupas de Adèle em seu momentos mais cruciais, marcando de descobertas a transições.

A atriz Adèle Exarchopoulos empresta à Adèle do filme uma sensualidade natural, que equilibra com um inacreditável ar de inocência. No primeiro ato, a personagem não tem grandes ambições. Basta-lhe ser professora primária e a dona-de-casa da relação.

Já a Emma de Léa Seydoux é madura, intelectualizada e sustenta discussões cerebrais com seus amigos exuberantes.

O distanciamento desses dois mundos vai se dando gradativa e sutilmente até um episódio mundano precipitar tudo.

É uma história de amor tão legítima como a de qualquer casal – homo ou heterossexual –, mas cuja percepção pode escapar ao espectador que demorar-se demais no choque com as cenas “calientes”. Tente driblar essa armadilha.

‘Como não perder essa mulher’: frescor

Frescor é o adjetivo que me veio à mente após assistir a “Como Não Perder Essa Mulher” (“Don Jon”), em que  Joseph Gordon-Levit (de “500 Dias Sem Ela”e “50%”) atua e dirige. Mas o maior mérito dele foi ter também escrito esta história autêntica sobre um jovem viciado em pornografia que não consegue se satisfazer sexualmente em relacionamentos reais.

O começo engana. Começa transbordando testosterona, com o protagonista Jon descrevendo sua rotina de jovem ítalo-americano católico, bombado e pegador, daqueles que se referem a mulheres como se falassem de gado – com direito a dar nota para as candidatas ao “matadouro”.

Quando ele conhece Barbara (Scarlett Johansson), uma “nota 10” que faz “jogo duro”, começa a abrir exceções em suas regras de solteiro convicto. Afinal, vale tudo para “ganhar” essa mulher.

Você acha que o roteiro está caminhando para aqueles desfechos manjados de “o amor transforma”, mas a história já havia começado a dar sinais sutis de que nada é o que parece – o que era caça vai se revelando caçador – quando, de repente, dá uma guinada.

Claro que não vou estragar a surpresa de quem ainda vai assistir, mas adianto que a outra surpresa do roteiro é revelar-se romântico (a sua maneira muito original) quando parecia que se resumiria a um tratado do macho-comedor (é também, mas não só).

Nessa indústria que vive de histórias-receitas para vender ingressos em larga escala, um roteiro que surpreende é ouro!

Depois de ‘Orgulho e Preconceito’

Sempre lamento a finitude da obra da escritora Jane Austen. Sou uma “caçadora” de produtos dramatúrgicos ou literários com características semelhantes às de sua obra – romances de época, de preferência ambientados na Inglaterra e, com alguma sorte, com aquela agudeza de análise social embutida nos subtextos – seja em que formato for: séries de TV, filmes, livros…

Sempre posso contar para isso com a BBC, que a cada ano inventa uma forma nova de adaptar alguma obra da escritora e a cada temporada lança outros produtos de épocas de origens e autores diversos.

Sua última investida foi “Death Comes to Pemberley” (A Morte Chegou a Pemberley). Sim, coleguinhas austenmaníacos, trata-se da Pemberley de “Orgulho Preconceito”, propriedade onde nossa heroína predileta, Elisabeth (ex-Bennet, agora mrs. Darcy), foi morar com seu amado após se casarem.

A nova série, dividida em apenas três capítulos, encontra nosso casal em feliz idílio doméstico na mansão inglesa, como pais do pequeno Fitzwilliam Darcy 3º. Georgiana, irmã de Darcy – que era uma adolescente à época de “Orgulho e Preconceito” – é uma jovem casadoira na casa dos 20 anos.

A atual Mrs. Darcy está às voltas com a organização do baile anual realizado para a comunidade, mas um incidente sinistro muda todos os planos.

Um crime ocorre na floresta de Pemberley, do qual o único suspeito passa a ser George Wickham – aquele mesmo que casou-se em circunstâncias escandalosas com a irmã de Elisabeth, a louquinha Lydia, que continua tão fútil e chiliquenta quanto sua mãe.

A chegada do casal indesejável – que vinha para o baile mesmo sem convite – detona uma crise na relação de Elisabeth e Darcy, ao mesmo tempo que a investigação de assassinato envolve todos em uma aura de deconfiança e medo.

O elenco é de respeito. A habitué das séries de época da BBC Anna Maxwell Martin é Elisabeth; Matthew Rhys, que conhecemos primeiro como o filho gay de “Brothers and Sisters”, convence como um legítimo (e viril sim) Mr. Darcy, e o ótimo Matthew Goode (“Match Point”e Ïmagine Eu e Você”) é Wickham.

A história é tão envolvente que dá para perdoar não ter sido escrito por Jane.

Adorei, BBC… de novo!

‘Questão de Tempo’: menos é mais

Ao lançar “Questão de Tempo”, o cineasta inglês Richard Curtis anunciou que este será seu último filme como diretor. Uma pena, pois ele escreveu o roteiro de alguns dos títulos mais românticos do passado recente de Hollywood – “O Diário de Bridget Jones”, “Um Lugar Chamado Nothing Hill” e “Cavalo de Guerra” entre eles – e ainda assinou como diretor duas de minhas comédias românticas favoritas: “Quatro Casamentos e Um Funeral” e “Simplesmente Amor”.

Todos esses títulos dão pistas sobre uma pessoa que acredita no amor em todas as suas formas e com uma visão que chega a ser ingênua de tão benevolente.

Em “Questão de Tempo”, ele lança mão de um artifício muito usado em roteiros de cinema da última década, que é a viagem no tempo. O jovem Tim recebe de seu pai, aos 21 anos, a notícia de que é capaz de viajar no tempo dentro de sua própria vida. Diante de uma infinidade de possibilidades, ele decide usar o dom para encontrar o amor. Entre idas e vindas, descobre o que pode e o que não pode, e até o que não deve mudar – em dado momento que “não quer” mudar mais nada.

Suas descobertas são simples. Nada que vá ajudar o espectador a encontrar o sentido da vida ou um remédio para suas relações, razão pela qual, suspeito, a crítica especializada deve rotular a história como banal, simplória ou medíocre.

Para mim não tem nada de banal concluir que, quando se aprende a reagir a tudo que acontece de forma mais leve – o que ocorre quando Tim começa a seguir um certo conselho do pai -, ampliando o contexto para além da circunferência de nosso próprio umbigo, aprendemos também a extrair/enxergar o melhor da vida.

‘Once Upon a Time’: desconstruindo contos de fadas

Era de se supor que uma produção intitulada “Once Upon a Time” (“Era Uma Vez”), cuja proposta é alinhavar continuações para contos de fadas universalmente conhecidos, tivesse uma narrativa simples, ingênua, voltada para o público infantil. Mas “simples” é tudo o que esta série de TV não é, por mais que se apodere da fantasia.

Os roteiristas Adam Horowitz e Edward Kitsis controem um edifício narrativo engenhoso, usando como espinha dorsal a história de uma cidade com o sugestivo nome de Storybroke (trocadilho em inglês para “história quebrada”), onde personagens de um certo Reino Encantado vivem esquecidos de suas verdadeiras identidades devido a uma maldição lançada pela Rainha Má.

A trama da primeira temporada gira em torno dos esforços do filho adotivo da Rainha, que na cidade assume a persona de prefeita. Ele tenta convencer sua incrédula mãe biológica de que ela nasceu predestinada a libertar aquela população aprisionada em sua própria amnésia.

No meio de cada trama, narrativas paralelas contam em flashback a vida de cada personagem (Branca de Neve, Cinderela & cia), mas a partir de seus finais clássicos, ou seja, para além dos “felizes para sempre”. E assim vai desconstruindo os contos de fadas como os conhecemos.

A cada flashback, a história de um personagem esmiuça as motivações para o conjunto de escolhas que lhe confere – ao menos nas histórias originais – o rótulo de vilão ou herói. À medida que o espectador se aprofunda, descobre que nada – melhor dizendo, ninguém – é (só) o que parece.

A Rainha Má, por exemplo, não foi sempre rancorosa. Forçou-se a endurecer após uma trágica perda. E a Branca de Neve não é exatamente um modelo de virgem casadoira e submissa.

Ambíguo, o mago Rumpletilstiskin passa o seriado todo oscilando entre o bem e o mal, motivado ora pelo medo, ora pela vingança, ora pelo amor. E a grande heroína da trama, a “salvadora” – o vínculo com a vida real na trama – já sobreviveu de pequenos golpes.

Ironicamente, esta abordagem ajuda a tornar os personagens de contos de fadas mais próximos dos seres humanos “reais” – o que, no final das contas, também é a função dos arquétipos – e elimina o recurso “moral da história”, tão caro ao gênero. Simplificador, ele não cabe numa narrativa que explora também os semitons das tramas.

Para resumir, desconfio que Carl Gustav Jung – para quem “os arquétipos do inconsciente coletivo também se expressam através de narrativas, especialmente o mito e o conto de fadas” – teria aprovado “Once Upon a Time”.

‘Gravidade’ é de tirar o fôlego

Depois de tudo o que li sobre o filme “Gravidade” na imprensa, fui ao cinema preparada para cenas contemplativas do espaço e um ritmo de narrativa mais lento. Afinal, é um filme todo rodado dentro de estúdio e seu elenco tem apenas dois atores, que passam a maior parte do tempo em trajes espaciais.

Mas devo dizer que o espaço sideral do diretor mexicano Alfonso Cuarón está mais para uma Marginal Pinheiros em horário de pico se comparado, por exemplo, ao de Stanley Kubrick em “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Tudo acontece neste território hostil, que parece regido pela Lei de Murphy (segundo a qual tudo o que pode dar errado, dá!).

A ação começa eletrizante logo nas primeiras cenas, quando uma nave da NASA em missão de conserto no telescópio Hubble é arrasada, deixando apenas dois sobreviventes: o experiente Matt Kowalski (George Clooney) e a novata Ryan Stone (Sandra Bullock). Lançados à deriva no espaço, sem comunicação com a base terrestre, eles precisam lidar com a gravidade zero e um estoque limitado de oxigênio para alcançar um dispositivo de reentrada na Terra.

Bullock carrega o componente trágico do roteiro. De luto pela filha morta recentemente, terá de escolher, a certa altura, entre entregar-se à morte ou lutar para sobreviver.

O diretor Cuarón constrói metáforas visuais sugerindo o significado da segunda escolha – repare na posição fetal de Sandra Bullock ao entrar na cápsula de reentrada. Muitos dos acontecimentos e imagens a seguir sugerem o simbolismo de um certo processo humano – a sofrida saída de um ambiente tranquilo para a entrada na Terra, o (re)aprender a andar…

Bullock defende bem a personagem, mesmo passando maior parte do tempo atuando apenas com a metade do rosto que o traje espacial deixa ver. Nada mal.

Três questões sobre ‘Elysium’

Wagner Moura com Matt Damon em cena de “Elysium”

Elysium”, longa metragem de ficção científica estrelado por Matt Damon, entrou em cartaz no Brasil sob a pressão de três grandes pontos de interrogação:

O primeiro diz respeito às expectativas dos brasileiros em geral, ansiosos por ver como Wagner Moura se saiu em seu primeiro papel hollywoodiano; o segundo, de interesse dos cinéfilos em particular, remete à comparação deste segundo trabalho do cineasta sul-africano Neill Blomkamp, após seu retumbante sucesso de estreia com “Distrito 9”; e o terceiro, feito a todos os apreciadores de cinema em qualquer nível, é sobre se o filme, independente de qualquer comparação, funciona como entretenimento dentro de suas propostas.

Como me encaixo nas três categorias de apreciadores de cinema, vou dar minhas respostas:

1) Wagner Moura não me surpreendeu no papel do coiote Spider simplesmente porque eu não esperava dele menos do que uma atuação fantástica, como são todas as suas performances, seja em teatro, televisão ou cinema.

Para quem quiser mensurar seu talento pela comparação, basta lembrar as atuações de Matt Damon em quaisquer outros de seus filmes – da franquia Bourne a “Compramos um Zoológico”, só para focar dois gêneros bem díspares. É sempre “Matt-Damon-interpretando-alguém”.

Depois veja Moura em “Deus é Brasileiro”, “O Caminho das Nuvens” e “Tropa de Elite”: você se lembra  que é Wagner Moura ali? (eu não). O ator some atrás do personagem, tão perfeita fica sua caracterização. Em “Elysium” até me esforcei para encontrar a familiaridade das expressões de Capitão Nascimento no seu personagem, Spider, mas o que vi foi uma persona totalmente estranha, com um sotaque indefinível e um rosto que apenas lembrava o de Moura.

Só o carisma funcionou como sempre.

E o que deve estar enchendo todos os brasileiros de orgulho (a mim, inclusive) é que Spider e Frey – personagens de Moura e Alice Braga, respectivamente – são personagens tão importantes na trama que podem ser considerados co-protagonistas.

Ao contrário de Rodrigo Santoro, que começou em Hollywood com pontas sem fala e evoluiu gradativamente de pequenos papéis a co-protagonista, Moura pode se orgulhar de ter entrado em Hollywood pela “porta da frente” das grandes produções.

E chegou arrebentando!

2 e 3) Apesar de “Elysium” atender honesta e competentemente aos requisitos de um “bom” longa metragem de ficção científica, não vai além disso. Quando comparado a “Distrito 9”, com o qual seu diretor inovou, temperando sua história de ficção científica com crítica social e linguagem de documentário, fica aquém das expectativas.

Faltou aquele quê de originalidade que nos surpreendia a cada quadro de “Distrito 9”. Nas sequências de luta, eu sentia uma incômoda sensação de deja vú – a mesma que me assalta em qualquer outro filme de ação hollywoodiano, quando começa a sessão pancadaria.

Fez-me lembrar de um desabafo de José Padilha (diretor de “Tropa de Elite”), que li em algum lugar da internet, sobre sua frustração diante das várias recusas que suas modificações no roteiro de “Robocop” recebia dos chefões do estúdio. Lembro dele dar a entender que originalidade e criatividade são considerados “perigosos” para a bilheteria (será este o caso de Blomkamp?).

Até a crítica social, contundente em “Distrito 9”, sai mais fraca em “Elysium”, principalmente para nós, brasileiros. Pobres morrendo à porta de hospitais ou em macas pelos corredores sem atendimento decente de saúde, enquanto os ricos têm acesso aos últimos avanços na área e seus interesses defendidos por políticos corruptos? Para nós (INFELIZMENTE) é “filme velho”.

Scott Pilgrim contra o mundo: sensacional!

Michael Cera é Scott Pilgrim: rola até duelo com sabres de luz

Acredite, você não precisa ser viciado em videogame ou fanático por histórias em quadrinhos para se divertir a valer assistindo a “Scott Pilgrim contra o mundo” – mas se for dessas tribos, vai se divertir mais ainda.

O filme do jovem cineasta inglês Edgar Wright mistura estética de HQ e estrutura narrativa de videogame para contar uma história de amor adolescente com contornos surrealistas.

O roteiro faz piadas e/ou homenagens a alguns clichês e arquétipos contemporâneos, com inteligência e humor de sobra.

O protagonista, por exemplo, é o clichê do “looser”: nerd, aos 23 anos ainda toca baixo em uma banda de colégio, divide o apartamento com um amigo gay e namora firme uma jovem do Ensino Médio.

As aventuras começam quando ele se apaixona perdidamente pela linda e descolada Ramona Flowers. Contra todas as probabilidades, eles começam a namorar, mas Scott Pilgrim descobre que terá de enfrentar uma certa liga formada pelos sete ex-namorados da garota.

A cada luta que o protagonista vence, aparece um score de pontuação, como em um jogo de videogame.

Não raro a tela ganha visual de HQ.

Os diálogos, tão surrealistas quanto o visual, são de matar de rir e cheios de subtextos irônicos. Tudo isso em um ritmo frenético, bem ao gosto da atual geração, apressada e hiperconectada.

A certa altura, o vilão-mor vocifera, indignado: “Sabe quanto tempo levei para reunir todos os sete ex? DUAS HORAS!!!”.

É garantia de diversão para quem relaxar e deixar-se levar, sem preconceitos, pelo humor do absurdo, exagerado – aquele mesmo que costuma camuflar uma boa crítica.

Violência física x emocional

Filmes feitos para a televisão não costumam frequentar listas de recomendações de cinéfilos e sequer constam em menus de sites especializados em cinema. Considero isso uma injustiça, pois alguns dos filmes que mais me tocaram foram feitos especialmente para a TV (como “Olhos Abertos”, por exemplo, dirigido por M. Night Shyamalan muito antes de seu sucesso com “O Sexto Sentido”).

Outro que ficou profundamente marcado em minha memória foi “Noite de Fúria” (“Sudden Fury – A Family Torn Apart”, 1993), cuja ficha técnica não encontro em nenhum site brasileiro de cinema – entre os internacionais, consta apenas no completíssimo Imdb, ainda assim de forma muito sucinta.

Assinado por Craig R. Baxley – um diretor de TV mais afeito a produtos de ação, mas que se saiu muito bem neste drama de suspense -, o titulo sempre volta à minha memória quando me deparo novamente com a questão da maternidade/paternidade. Vem como lembrete do quão sério considero a decisão de criar outro ser humano e do quão errado é baseá-la somente nas expectativas – muitas vezes egoístas – que se tem como pai/mãe.

A história começa com um adolescente (Neil Patrick Harris muito antes da série “How I Meet Your Mother”) em choque vagando, coberto de sangue, por uma floresta. Logo se descobrirá que se trata de Brian Hannigan, o mais velho de três filhos adotivos de um casal exemplar da comunidade, que é encontrado assassinado de forma extremamente violenta dentro da própria casa.

Brian e o irmão mais novo, Chris, de 7 anos, estavam em casa, mas o primeiro não se lembra de nada, e o segundo, apenas de ter visto o irmão do meio, Daniel (Johnny Galecki antes de ser Leonard na série “The Big Bang Theory”), vagando próximo à residência da família. Quando se descobre que Daniel – que cumpria temporada em um reformatório – havia escapado na noite em questão, todas as suspeitas recaem sobre ele.

Brian não acredita na culpa do irmão e ganha no advogado Tom Kelley, vizinho e amigo da família, um aliado. Decidido a defender os irmãos, Kelley inicia sua própria investigação. O que ele começa a descobrir, porém, vai contra a imagem de família perfeita passada à comunidade até então.

Das memórias em família dos irmãos, os Hannigan emergem como pais autoritários, intransigentes e frios, que encaram cada adoção como tentativas de moldarem filhos que se encaixem a um modelo perfeito pré-estabelecido por eles. De índole dócil, obediente e temperamento carinhoso, Brian se encaixa à perfeição ao projeto, o que os estimula a repetir a experiência. Só que o segundo adotado, Daniel, traz uma história pregressa difícil, que o torna um rebelde.

De conflitos em conflitos, conduzidos pelos pais de forma autoritária e nada amorosa, Daniel chega a ser condenado a uma estada de seis meses no reformatório. Em sua primeira saída para visitar a família, os filhos percebem algo errado na maneira formal com que os pais o recebem, em um lanche organizado na varanda de casa. Quando ele tenta entrar para seu quarto, a recusa dos pais esclarece tudo: Daniel está sendo substituído. Foi “reprovado” como filho e está sendo friamente descartado da família, como um brinquedo quebrado.

Um mergulho maior na memória de Brian, até então embotada pelo choque, mostrará que Chris, que passa a ter problemas de aprendizagem, também estava a caminho de uma rejeição quando o crime ocorreu.

Não revelarei a solução do crime, mas, para mim, a violência maior está na forma com que aqueles “pais” egoisticamente dispuseram das vidas de crianças que deveriam amar incondicionalmente.

Os Hannigan nunca praticaram nenhuma violência física, mas muitas psicológicas. Ofereciam aprovação e “permissão para ficar” aos filhos que atendessem a seus altos padrões de exigências e descartavam sumariamente os reprovados. Não consigo pensar em nada mais violento que isso para o emocional de uma criança.