Categoria: A Loka dos Livros

Crônicas da advogada, escritora e leitora Luciana Gerbovic.

O espaço literário… a coisa mais próxima da vida

Morreste-me. Fazes-me falta. Copo vazio. Um copo de cólera. A morte e o meteoro. Fahrenheit 451. O jardim de cimento. Flores artificiais. As brasas. Vidas secas. O que fazer quando tudo arde? Amor. Guerra e Paz. Festa no covil. Festa do Bode. A festa da insignificância. Viver. A insustentável leveza do ser. Sete anos. Cem anos de solidão. Formas de voltar para casa. Um ano depois.  Certeza do agora. Mulheres de cinzas. Mulheres que correm com os lobos. Mulherzinhas. As meninas. O gigante enterrado. O drible. Outros cantos. Meia noite e vinte. A noite da espera. De mim já nem se lembra. Ruído branco. O ruído do tempo. Espera passar o avião. Enterre seus mortos. Todos os santos. Todos os nomes. Você vai voltar pra mim. Glória. O que ela sussurra. Quando nada está acontecendo. Resta um. A tirania do amor. A um passo. Uma sensação estranha. A fera na selva. Os mortos. Submundo. Tudo é rio. Voltar para casa. Nu, de botas. Entre dois palácios. Desnorteio. Desesterro. A resistência. Enfim, imperatriz. Aos 7 e aos 40. Um, nenhum e cem mil. Eles eram muitos cavalos. É isso um homem? Segredos. Assombrações. Pássaros na boca. Becos da memória. A cidade sitiada. Vivendo sob o fogo. Aprendendo a viver. Nas vertigens do dia. Cadeira de balanço. Bonsai. O silêncio. Flores. O jardim secreto. De verdade. Se deus me chamar não vou. Nem vem. A vida pela frente. Grande sertão. Vida querida.

 

 

  • Este pequeno texto, incluindo o título, é feito apenas e exclusivamente com títulos de livros que têm me ajudado a passar pela vida, que inclui a dor da morte de pessoas queridas, como aconteceu comigo na semana passada, e como tem acontecido com milhares de brasileiros especialmente nesse último ano. Mas que também inclui a beleza da resistência, da solidariedade e da esperança por dias melhores.

Chegou fevereiro…

e não vai ter Carnaval. Quando pudermos fazer festa de novo (há de se ter fé) vou comemorar todos os aniversários passados sem festa e vai ter gente fantasiada de bruxa com paetês fazendo procissão e pulando fogueira e comendo ovo de Páscoa e bebendo quentão com um pedaço de panetone mergulhado ao som de Ivete vestida de Mamãe Noel cantando “pula a fogueira iaiá”, que mesmo quem não gosta de festa vai gostar.

Minha mãe me levava pular Carnaval fantasiada quando eu era criança e não sei dizer se eu gostava ou não. Sei que na pré-adolescência comecei a achar tudo aquilo muito besta, como uma boa pré-adolescente que acha tudo muito besta. Até que na adolescência me enfiei numa matinê com umas amigas e me apaixonei. Por um garoto e pelo Carnaval. Foram anos indo desde o grito de Carnaval até o baile da ressaca. Já teve escola de samba no Rio e em São Paulo. E foi em um desses carnavais que um namorado (não mais a paixão da matinê) me avisou que iria viajar para a praia, só ele e uns amigos. Fiquei indignada. Quem viaja só com os amigos para a praia no Carnaval bem intencionado? Ele nem ligou para a minha indignação e foi. Todo sorridente. Sobrei com um bico enorme na boca.

No sábado de Carnaval pedi para o meu pai me levar até uma livraria. Fazia tempo que eu não lia muito. Era a época de vestibular e toda leitura me remetia a essa prova. Foram os anos em que não tive prazer em ler. Mas minha raiva era tanta que só consegui pensar em livros para passar o Carnaval. Lembro que comprei quatro. Um para cada dia do feriado. De dois deles eu me lembro perfeitamente: “Favela High-tech” e “O amor é fodido”. Este, do português Miguel Esteves Cardoso, era exatamente o que eu precisava naquele Carnaval. Consigo me ver sentada na mesma poltrona da sala, os quatro dias, cada dia com um livro, plena, cheia de vida e alegria. O namorado voltou e foi recebido com saudades. “Tá tudo bem mesmo?”, ele perguntou. “Tá tudo ótimo”, eu respondi sem mentir. Acontecesse o que acontecesse, a partir daquele momento, eu havia descoberto como não sentir solidão.

O namorado mudou. Vieram os filhos e as matinês com eles, eu curtindo mais do que as crianças. Vieram menos bailes do que eu gostaria. Alguns desfiles pela tevê. Outras noites de sono. E veio até fevereiro no Brasil sem Carnaval.

O que importa, agora, é que a minha descoberta continua aqui, pulsante. Essa ninguém me tira. Venha o que vier.

Matemática do amor

Esta semana meu pai passou por mais uma cirurgia. Meu pai está com setenta e cinco anos. Eu estou com quarenta e cinco. O pai do meu pai tinha sessenta e nove anos quando morreu. Meu pai já viveu seis anos a mais que o pai dele. Meu pai tinha quarenta e quatro anos quando o pai dele morreu. Meu pai tinha um ano a menos que eu quando o pai dele morreu. Eu achava que meu avô já era velho quando morreu. E que meu pai já tinha vivido o suficiente com ele. Eu achava que meu pai era adulto e sabia lidar com a morte do pai. Meu pai é muito novo para morrer. E eu sou uma criança, apesar de um ano mais velha que meu pai quando meu avô morreu, que não acredito que pai e mãe morrem. Meu pai está bem e não vai morrer. Não agora. Mas basta estar vivo para morrer, eu sei, ainda mais em 2020 e 2021. O José Luís Peixoto escreveu um livro lindo depois que o pai dele morreu. “Morreste-me”. Os portugueses sabem dar os melhores títulos para os livros. Conhece os do Lobo Antunes? “Que farei quando tudo arde?”, “Não é meia noite quem quer”, “Os cus de Judas”, “Explicação dos pássaros”. Eu nunca consigo achar um título bom para o que escrevo. Eu queria saber escrever um livro como o José Luís Peixoto escreve. Um “morreste-me” depois que meu pai morrer, o que vai demorar. Mas o livro já foi escrito e eu não sou o José Luís Peixoto. Lobo Antunes não é desse mundo, deixa pra lá. Eu queria só conseguir terminar essa pequena crônica, no quarto de onde escrevo e posso, pela janela, ver o hospital onde meu pai está, na companhia da minha mãe, como é há cinquenta e cinco anos, sem nenhuma visita porque mais de duzentas mil pessoas já morreram, mais novos ou mais velhos que eu e meu pai. Mas há dias não consigo terminar nada que começo e estou me perguntando “que farei quando tudo arde?”. Abrir o livro do Lobo, por exemplo, pode ser uma resposta. Ser sincera e escrever aqui que não consigo achar um fim para esse texto pode ser outra. Um vento entra pela janela, as folhas de uma das árvores mais bonitas que conheço balançam. Eu fecho os olhos e puxo o ar bem fundo. Será que minha mãe e meu pai também conseguem ver o vento?

Saúde!

A primeira pessoa a receber a vacina no Brasil, uma mulher negra. As mulheres na linha de frente. A guerra não tem rosto de mulher, a Svetlana tem razão, não tem mesmo. Mulheres não fazem guerra, mas não fogem da luta, jamais. Nos momentos em que penso que é difícil além da conta lidar com a vida e com a maternidade, penso na minha bisavó atravessando o Atlântico segurando quatro filhos pelas duas mãos, com a certeza de que nunca mais veria sua terra natal devastada pela guerra, mesmo com a esperança de revê-la, rumo a um país que ela não sabia nem identificar no mapa. É pra lá ou pra cá? Penso na minha avó que ria muito e fazia piadas e gostava de dançar e não chorava vendo filmes. E quando perguntei se ela não chorava nunca, ouvi que “quem já viu guerra não chora, minha filha”. E essa frase ficou. Pá pá pá na minha cabeça.

O homem laranja que gosta de guerra entrou no avião e foi embora da presidência e eu fiquei dando tchau para a tevê com as mãos dizendo “já vai tarde” e meu filho riu. Que tonta eu sou de dar tchau pela tevê. E rimos. E dei mais tchau. O outro homem que gosta de guerra e de tortura, ao sul de quem olha o mapa desenhado por quem, afinal? (pra lá ou pra cá?), continua por aqui. Para quem gosta do que ele gosta, o prazer de ver pessoas morrendo asfixiadas deve ser quase sexual. No livro o homem que está na guerra começa a ser enterrado vivo e é sempre muito assustador pensar que isso existe fora da literatura. Uma pessoa ser enterrada viva. Uma pessoa ter as unhas arrancadas. Uma pessoa receber choques. Coloco o marcador na página insuportável e cubro meus filhos na cama. No quarto ao lado dorme o meu pai, que nunca conseguiu me falar sobre o que viu nos anos de uma ditadura que tanta gente afirma nunca ter existido.

Eu, mamis e a sister brindando os 21!

O dia já clareou, é sempre novo e pode ser sempre o mesmo. Procuro pelo cheiro do café, pelo pão quente ou amanhecido, ainda sinto dor no braço onde meu filho adormeceu. Os patos grasnam mais pela manhã. Os cocôs das capivaras espalhados pela grama e pelo asfalto. É bom estar com quem não quer guerra com ninguém. Imagine, como nos pediu Lennon. Faltou oxigênio na floresta chamada de pulmão do mundo. O sono quase não veio esta semana. O tamanho do broche no peito da Lady Gaga é do tamanho da nossa agonia. A luz do sol ontem à tarde deixou a água do lago dourada e eu vi e pensei que é bonito a água ficar dourada.

Às 21h21 do dia 21 de 01 de 2021 eu brindei. Sobretudo por estar viva e disposta, ainda que dolorida. E porque é bom brincar. Depois do café leio as notícias e abro o livro de novo. Porque quanto mais sei que dói, mais sei contra o que é preciso lutar.

Ouça seu coração, já dizia a minha mãe

Durante os primeiros meses dessa pandemia não foram poucas as pessoas que me mandaram mensagens pedindo dicas de leitura, livros que pudessem fazer com que elas se concentrassem em algo que não fosse o medo. Dicas eu até dei, mas as pessoas ainda me procuravam, chateadas: não consigo ler.

Eu, ao contrário das pessoas que não conseguiam se concentrar na leitura, saí lendo feito uma desesperada, o que eu estava mesmo, em vários momentos. No ano de 2020 li 109 livros de literatura. A lista, que não fez parte de meta alguma, é grande, do tamanho da minha agonia.

No começo, quando ainda achava que ficaríamos um mês em casa e a pandemia estaria controlada, peguei os livros que mais tinha medo de ler, pela dureza do tema, e li muitos deles. Saber que havia histórias piores do que a de pessoas que ficam trancadas em suas casas para evitarem uma contaminação me ajudaria a ver que já houve, e ainda há, situações piores. Foi assim que li todos os livros, até então publicados, da Scolastique Mukasonga. Eu tinha pavor de ler esses livros que têm como tema o genocídio de Ruanda. E, eu estava certa. Depois de lê-los, eu só pensava que não era possível não ter garra para passar por essa, ou qualquer outra, pandemia. Reli “A Peste”, de Camus. Consegui enfrentar as quase mil páginas de “Um Defeito de Cor”.

Mas quando entendi que a pandemia não teria um fim assim tão próximo, tive que mudar de estratégia para não deprimir. Ainda que eu realmente ache que na boa literatura não há quase livros felizes (afinal, a gente escreve sobre aquilo que não conseguimos encarar ou dominar, sobre aquilo que dói – e aí nos comunicamos, aí nos sentimos menos sozinhos – e os momentos felizes estão longe disso), deixei a lista dos livros que me provocam medo de lado e segui por outro caminho.

E o ano virou. E as promessas das vacinas estão mais próximas. Talvez seja como ver um pouco de terra firme depois de um oceano agitado. E agora ficou difícil para mim. Passo o dia fazendo mil coisas que não queria estar fazendo, só pensando no momento de parar e abrir um livro e quando esse momento chega eu viro a página sem saber o que li na anterior. E volto as páginas. E viro de novo, sem lembrar do que li na anterior, e tento mais uma vez e ganho um buraco no peito. Já foram alguns os livros deixados na cabeceira nessa primeira quinzena de 2021. Dois terminados, não sem esforço, confesso. A tristeza que sinto é seca.

Mas aí a magia acontece. Um título indicado há anos e que não tive coragem de ler naquele momento começa a surgir no fundo da minha mente. A voz do livro fica batendo aqui no peito: leia-me, leia-me, leia-me… e depois de alguns dias sendo perseguida por essa vozinha eu decido ceder e aqui estou, dentro de um hospital em Israel, sugando cada palavra, imersa para saber o que vem na página seguinte, uma leitora contente de novo, grata por ter livros que me chamam quando eu mais preciso.

2021

Voltei.

Considerando o número de pessoas que não conseguiram chegar em 2021 só por causa do mais novo vírus que nos assombra, voltei agradecida. Mais do que nunca. Nunca uma virada de ano foi tão comemorada. Desde março do ano passado o que mais falei para meus filhos, parentes e amigos foi: o importante é chegarmos vivos ao final do ano, minimamente sãos, física e mentalmente. O resto a gente resolve depois.

E chegamos.

Bebi um pouco e dancei muito entre as últimas horas de 2020 e as primeiras de 2021. Sozinha mesmo. Na sala. Fiz minha celebração, ainda que com todo o resto para resolver, tentando fazer com que meus filhos dançassem comigo, o que não consegui. Mas o importante era que eles estavam na sala, ao alcance do meu abraço, e pudemos nos beijar à meia-noite. O que mais desejei para eles e para todos, mais do que nos outros anos, foi saúde. Nunca também fez tanto sentido a famosa frase “o que importa é ter saúde, do resto a gente corre atrás”.

Terminei 2020 com 109 livros lidos. Uma média de dois livros por semana. Um deles com mil páginas. Nunca li tanto. Nunca escrevi tanto “nunca” em um texto só. Porque em 2020 muita coisa que nunca tinha acontecido antes na minha vida, aconteceu. Meu pai, que nem gripado eu tinha visto, em um entra e sai de hospitais. Minha mãe com passos lentos e olhar cansado. Meu braço direito paralisado de dor. Eu na cozinha fazendo comida. Meu marido em casa em uma quarta-feira à tarde. Uma tela entre alunos e professores, aniversariantes e convidados, entre amigos e amantes.

Se tudo doeu mais em 2020, todo pequeno ato também foi celebrado. A luz do sol que entra pela janela da sala às quatro da tarde e deixa o chão e os móveis alaranjados. O sono dos gatos nas almofadas durante uma tarde inteira. Uma xícara de café recém passado.

Assim fomos, ato por ato, página por página, passo por passo.

No dia primeiro de janeiro de 2021 meu filho mais velho me chamou no canto: mãe, agora que o ano novo chegou, a gente precisa fazer alguma coisa diferente ou pode continuar vivendo como antes? Ele estava sério. Era mesmo uma dúvida. Havíamos chegado ao ano novo, afinal. Estávamos vivos e saudáveis, meta alcançada. E agora, já que falamos tanto dele?

Agora continuamos, filho, vivendo como sempre vivemos. Tentando ser uma pessoa melhor a cada novo dia, sem deixar de olhar a luz do sol que entra pela janela, sem deixar de agradecer pelos pores do sol, sem esquecer do cafezinho no meio da tarde, sem deixar de chorar quando a garganta apertar muito.

E sem deixar de ler, não é, mãe?

Sempre. Isso sempre, meu filho.

Vai que…

‘Meus pais, avós e tios me perguntavam o que eu gostaria de ganhar de presente nos aniversários e eu respondia: qualquer coisa que não seja mole. Porque, como toda criança pequena, eu não gostava de ganhar roupas. Pegava naqueles pacotes que se amoldavam à minha mão e já pensava: ah, roupa não. Até sapato, que vinha nas caixas, eu gostava, mas roupas?!

Então em um aniversário, eu era bem pequena, uma amiga da minha mãe me deu um pacote duro. Fiquei animada, começou bem. Abri, ansiosa, e era um livro. Um livro! Eu nunca tinha ganhado um livro de presente antes (Tereza, onde será que você está para saber disso?) e fiquei maravilhada. Porque eu gostava dos livros que tinha que ler para e na escola, mas ainda não tinha falado para as pessoas, mesmo para as mais próximas, que eu gostava dos livros. Era um livro do Monteiro Lobato com ilustrações, em preto e branco, papel jornal. Além de ler as histórias com alguma dificuldade, pois estava no início da alfabetização (meu pai e minha mãe nunca leram para mim e eu não sabia que podia pedir para eles lerem), eu também colori as ilustrações, mesmo sabendo que não era um livro de colorir. Aquele era meu livro e eu podia fazer com ele o que eu quisesse, assim como até hoje grifo e escrevo nos meus livros, para desespero de alguns.

Foi também nessa época que em um Natal, na casa da minha tia, tive outra experiência marcante. Essa minha tia era (e ainda é) casada com o homem que eu mais vi lendo na minha vida. Final de semana juntos, os paranauês rolando e meu tio sentado com a cara enfiada em um livro. Ele tinha (ainda tem) uma sobrinha da mesma idade que a minha e quando nos juntávamos no Natal ganhávamos os mesmos presentes. E, nesse ano marcante, meus tios deram primeiro o presente para ela. Um livro! Grande, capa dura, colorido, recheado de contos de fadas. Fiquei ansiosa, aquele mesmo livro logo estaria nas minhas mãos e… não foi o que aconteceu. Pela primeira vez, nossos presentes foram diferentes. Não me lembro qual foi o meu. Me lembro que era um presentão, um brinquedo bom (não é mole, não é, Luciana, gostou?), mas eu só conseguia pensar que não tinha ganhado aquele livro. Por que, eu tinha vontade de perguntar, justo dessa vez nossos presentes não são iguais? Já adulta, comprei um livrão colorido e de capa dura cheio de contos de fadas para mim. O mais perto que consegui chegar daquele que sempre achei que deveria ser meu.

Demorou para eu contar para os meus pais que eu gostava de livros. Talvez por não ver meus pais lendo, talvez por não ver quase ninguém lendo com exceção desse tio, eu não me sentisse encorajada para revelar esse amor. Quando revelei, que bom, fui apoiada. Minha mãe passou a me dar livros. Meu pai passou a dizer “sim” todas as vezes em que eu pedia livros de presente, fosse uma data especial ou não. Que alívio!

Gostar de ler quando estamos em um ambiente com poucos leitores pode ser motivo de vergonha. Michèle Petit chega a dizer que aquele que gosta de ler, nesse ambiente, pode se sentir um traidor. Todos seus amigos lá, por exemplo, com uma bola, e você chega com um livro? A família naquele auê de televisão e você querendo silêncio para ler? Michèle Petit me fez entender porque demorei para fazer a revelação. Porque mantive esse amor em silêncio por um tempo que me parece longo. Por isso, na dúvida, dê livros de presente. Vai que o presenteado está ali, em silêncio, esperando por isso.

A Humanização

E chegamos em dezembro.

Desde março meu discurso em casa é para tentarmos chegar em dezembro com saúde. Se as crianças vão perder o ano letivo e estudar tudo de novo no ano que vem e se os adultos vão precisar se endividar para pagar as contas, são problemas que resolveremos depois. O foco nesse 2020 foi outro. Ou, dito de forma mais bonita pelo escritor Valter Hugo Mãe, no livro “A desumanização”, em trecho que me chegou pelo Whatsapp de um grupo de leitura:

Havemos de dezembrar. Dizia eu. Faltava pouco para o fim do ano. Era o meu pai, nos tempos de maior conversa, que o pedia. Depois de cada dificuldade, esperava que dezembrássemos todos. Que era prometer que chegaríamos vivos e salvos ao fim do ano, entrados em janeiro, começados de novo. A resistir.

Dezembramos, pois. Havemos de janeirar. Havemos de continuar sonhando e resistindo e insistindo. Havemos de fazer concessão ao uso do gerúndio. Havemos de aprender a desacelerar. Talvez a comprar menos nesse Natal. Quase um ano inteiro isolados em casa nos fez ver que o consumismo não tapa os nossos buracos, não? Nós precisamos que os aparelhos celulares funcionem e só. Ninguém sairá saltitante pelas ruas cheias de bolas vermelhas caindo do céu porque comprou um telefone, por mais inteligente que ele seja.  Não vamos sair dançando pela sala se usarmos este ou aquele amaciante de roupas. Vamos dançar pela sala se colocarmos uma música para tocar, ainda que dentro da nossa cabeça. E se tivermos companhia, melhor ainda. Não tem par de sapato que substitua o olhar de uma pessoa amada. Dividir um poema com uma amiga acalenta mais do que uma sacola cheia de roupas. Tente. Uma calça jeans no armário é suficiente. Por que tenho uns dez batons na gaveta se uso sempre o mesmo? Para que três aparelhos de jantar se o mais gostoso mesmo é encher a casa de gente querida e cada um que coma onde der e como der? Os pratos, cada um de jeito, equilibrados nas nossas mãos enquanto nos acomodamos no braço do sofá e até sentamos num cantinho, no chão? Quem se preocupa com pratos e copos iguais se o ambiente está tomado por risadas? Havemos de ter tudo isso novamente.

Havemos de ter vacina para todos e não primeiro para os membros do Ministério Público, como está na notícia que li hoje. Aqueles dentre os mais privilegiados, com mais condições materiais de se proteger, querendo a frente da fila. Sim, quando penso na vacina, por exemplo, eu não deixo de pensar: vai ter para os meus filhos? Porque sou umbiguista e medrosa como creio que todos humanos são. A diferença, penso eu, está na nossa disposição de todos os dias, por mais que doa, nos tirarmos do centro do mundo.

Havemos de aprender a dezembrar, todos os anos, com mais comunhão.

 

Amém

Meu ombro e meu braço direito ainda doem, mas já consigo digitar sem fazer tantas caretas e soltar alguns ais e uis. Digito devagar, no ritmo que a dor me impôs. É como dizem: uma hora o corpo te obriga a diminuir o ritmo. Só parece que não sou inteligente o suficiente para aprender a lição de forma definitiva. Porque já fui obrigada a diminuir o ritmo antes. Morar em São Paulo talvez não ajude, onde partículas de ansiedade podem ser captadas no ar. Só que eu amo São Paulo. E aprendi a entrar em alguns lugares (quando podíamos andar pelas ruas) quando me sentia sufocada pelos passos apressados nas calçadas e pelas buzinas tocadas por pessoas à beira da insanidade: livrarias principalmente. Com café então, era como sair do inferno direto para o paraíso. Perto dos livros, a calma me toma. Cada um com seu templo.

Nesses dias de dores, tantas outras além daquela no meu braço e ombro (a pandemia não acabou, as crianças continuam trancadas em casa, nossos pais, assim como nós, seguem envelhecendo, o dinheiro nem sempre dá para as contas, continuamos matando jovens negros), sigo na companhia dos livros e das personagens que misturo com pessoas de carne e osso que conheço. Será que alguém me entende quando digo que Carolina Maria de Jesus tem segurado a minha mão em vários momentos? Estanco um grito e escuto sua voz me encorajando: vai, filha, vai… Escuto Kehinde, escuto Amina, escuto Anna, escuto minha vó Cida e minha vó Eslava, escuto minha mãe: vai, filha, vai…

Como você lê tanto, Luciana, como consegue? A pergunta que escuto quase diariamente. Você não trabalha (sim, e trabalho muito com livros)? Você não come (sim, bastante, muitas vezes lendo ao mesmo tempo)? Você não dorme (pouco, é verdade)? Você não vê tevê (quase nada)? Algumas perguntas são mera curiosidade. Algumas vêm com o peso da afronta: só uma pessoa tão desocupada pode ler tanto assim, não? Algumas vêm revestidas de receita doce:

Sabe por que você tem essas dores, Luciana? Porque você não reza.

Dei de ombros (mesmo dolorido – quiçá por falta de reza). Como já disse: cada um com seu templo. Eu já rezei com texto de Clarice Lispector. Não peço que ninguém reze comigo. Em troca, espero que ninguém me obrigue a rezar de modo diferente.

Prescrição: clubes de leitura

Capsulite. Tendinite. Bursite. Dois mil e vintite. Parece que é tudo isso junto que tem me causado dores no ombro e braço direitos. Dores que me fizeram escrever, semana passada, “não consigo escrever o texto dessa semana.” Ler a frase que eu tinha acabado de digitar me doeu mais. Porque eu escrevo desde que fui alfabetizada. Antes de ser alfabetizada eu já escrevia na minha cabeça, o que fiz depois foi só começar a colocar no papel. Meus diários reais e fictícios e diários de personagens que eu criava. Tenho um diário até hoje guardado, que escrevi quando tinha uns oito ou nove anos, anotando detalhes de uma viagem que fiz (na minha cabeça enquanto folheava um Atlas – ai, meu ombro  –  do meu pai) para a Europa. O avião pousou em Madri, em um dia cinza e chuvoso, foi difícil conseguir entrar no ônibus que nos levaria para o hotel, a cidade estava um caos por causa da chuva.

Quase quarenta anos depois, quando fui para a Espanha também com o corpo, me despedi de Barcelona em um dia cinza e chuvoso, em que não conseguia achar um táxi para me levar até o aeroporto. Tive que me enfiar no metrô mesmo, às seis da tarde, carregando as malas, encharcada, e só cheguei a tempo porque um funcionário espanhol se compadeceu de mim e foi na minha frente feito Moisés. Quando me sentei no café do aeroporto, com tudo resolvido, para só esperar o voo, me lembrei da minha viagem ficcional. Não consegui não sorrir, pensando no vaticínio da menina para quem era tão fundamental escrever, fosse o que fosse, fosse como fosse. Essa menina que sou hoje. Se digito e a dor vai do ombro direito para o ombro esquerdo e se alastra até o dedo médio da mão direita e até a orelha direita, digitar “não consigo escrever” doeu mais. E agora, nesse exato momento enquanto digito, lembro da minha mãe me dizendo que eu parecia catar milho na primeira máquina de escrever que meu pai me deu. Uma maquininha infantil em vários tons de azul, trazida de uma viagem que ele fez a trabalho para os Estados Unidos. Ele me explicou que a máquina não tinha os acentos porque em inglês eles não existiam. Eu digitava e colocava os acentos depois, com a caneta. E pensava nessa língua que não tinha acentos. O que mais existia sem eu ter a mais remota ideia? E lá ia eu para o Atlas, para a Barsa, para a Mirador, para a biblioteca da escola. E lá ia eu experimentar a vida pela leitura e pela escrita. Como nunca deixei de fazer. A angústia e a delícia de tanto querer conhecer.

Nesse ano cheio de dores como meu corpo agora, conhecer o mundo e as pessoas por meio de tantas páginas já escritas ainda é o melhor remédio que encontrei, com um ganho: a existência dos clubes de leitura, os quais conheci só na vida adulta. Se ler sozinha já melhora as dores, compartilhar a leitura com tantas pessoas incríveis que habitam o mundo (sim, há muitas, há tantas) faz a dor quase sumir. Pelo menos por algumas horas. O que já é muito.