Acordei e puxei o celular para ver as horas, mais tarde que o habitual. O sono foi todo entrecortado, como tem sido há muitas noites, ou dias, dias ou noites, dias e noites, perdi a conta, uma agonia que não diminui, salvo raríssimas exceções. Busquei um ânimo interno. Como tem acontecido há muitos dias também, o ânimo veio e durou do quarto à cozinha. Sim, tenho café preto quentinho. E pão. E frutas. E se nunca deixei comida ser jogada fora, neta que sou de fugidos da guerra na Europa, agora é que estou ainda mais vigilante. Da banana escura e mole vai sair um doce. Mas nem a ideia do doce me aquece. Só consigo pensar nas vidas negras que importam. No absurdo que é viver e ter que escrever e gritar essa frase. Escrever e gritar o óbvio que não é óbvio. Tomo café e penso nas vidas negras. Escovo os dentes e penso nas vidas negras. Troco de roupa e penso nas vidas negras. Mentira, quase não tenho trocado de roupa. Passo os dias de pijama e disfarço do peito para cima quando tenho reuniões e aulas on-line. Tento trabalhar. Tento escrever. Tento cozinhar. Esturriquei legumes em uma assadeira esquecida no forno. A água para o chá ferveu até sumir. Salguei tanto o peixe que ficou incomível, mas comemos mesmo assim – a guerra, lembra? Uma garfada e um gole d’água. O purê de batatas virou sopa. A sopa esquecida na panela virou um creme espesso. Também difícil de engolir. Assim como a notícia da criança de cinco anos que caiu de um prédio, onde estava porque precisou acompanhar a mãe no trabalho de empregada doméstica. E parece que a mãe foi andar com o cachorro da patroa e o filho ficou com a patroa. E parece que a patroa não olhou a criança, que queria a mãe, que andava com o cachorro da patroa. É isso mesmo: a empregada, mãe de uma criança que não está podendo frequentar a escola por causa de uma pandemia, passeava com o cachorro da patroa. E a criança, que queria a mãe que andava com o cachorro da patroa, caiu do prédio. Mas o cachorro passa bem.
E são tantos os dias em que sonho com uma vida em que teríamos que lidar apenas com todos os problemas inerentes à existência, que já são tantos. Mas não, eles parecem não bastar. Precisamos criar mais e mais e mais. E colocar no governo quem crie mais e mais e mais. Tanto sexo para ser feito, tanta música para ser cantada, tanta dança para ser dançada, tanta conversa para ser trocada, mas não. Criamos maldades.
E essa semana quem me salvou foi o Sérgio Sant’Anna, vítima fatal da COVID-19, mais uma, “mas é o destino de todo mundo”¹, né? Parece que foi isso, nem quero confirmar, fico na torcida para que não tenha sido, mas sei que foi, fui confirmar. Foi, é o destino de todo mundo, mas se pudermos adiantar alguns, não? De pretos e pobres de preferência, não? E o Sérgio me salvou com o livro “Amazona”, publicado em 1984, talvez mais atual do que à época. A genialidade e o humor do autor iluminaram os dias, em contraste com a escuridão sem luz no fim do túnel que é viver nesse país que anda para trás. Estamos sempre caindo na casa do “volte uma jogada”. Morremos asfixiados desde sempre. Mas quem é preto morre mais.
E eu queria falar de coisas boas. Nossa, isso é muito Regina Duarte, mas acho que não vou cortar a frase. Porque eu queria mesmo falar de coisas boas, todos nós queríamos, Regina, mas não dá. Em alguns momentos não dá e pronto e é preciso assumir. Como quando meu primeiro filho nasceu e foi levado para a UTI assim que me foi mostrado. Falei “seja bem-vindo, meu amor” e em seguida UTI. Eu jogada no buraco do mundo. Vinte e quatro horas de observação para os médicos descobrirem que tipo de cirurgia ele precisaria fazer. Vinte e quatro horas em que fiquei trancada no quarto, os peitos inchados e doloridos por causa de um leite não sugado, o corte da cesárea doendo da unha do dedinho do pé até o lóbulo da orelha, as batidas do coração suspensas, e meu pai fez uma piada. Uma piada da qual ninguém riu. Ao que ele, de dentro do seu pavor, soltou que era difícil aliviar tensão nessas horas. É, pai, eu respondi, porque em alguns momentos a tensão não é para ser aliviada e, sim, vivida. E esse texto, que nem gênero tem, ou melhor, não tem gênero, mas está na categoria dos textos ruins, vai ficar assim, porque é preciso respeitar o que sai agora. Uma frase e um gole d’água. Uma frase e um gole d’água. Vai assim mesmo. Porque está difícil de engolir. E vidas negras importam. Meudeus!