Eu tinha quatorze anos, disso me lembro bem, quando cheguei faminta da escola e fui direto para a cozinha. O almoço ainda não estava pronto, nem a mesa posta. No fogão, aquele pininho da panela de pressão girava e soltava um chiadinho. Tive dificuldade para soltar a trava de segurança e enxergar, afinal, o que minha mãe preparava. Foi quando ela, como se enviada pelos anjos, entrou na cozinha e soltou um berro de horror. Larguei o cabo da panela na hora e respondi: só queria ver o que tem para o almoço. E você não sabe que não pode abrir panela de pressão???, ela continuou berrando entre incrédula e aliviada. Não, eu não sabia. Está certo que ela não tinha me ensinado, mas eu era, mesmo, essa adolescente sem noção nenhuma de cozinha (ou seja, de química, de física e da realidade). Tenho uma tia que, com quase trinta anos e recém casada lá nos anos 1970, resolveu fazer uma feijoada para o marido, prato que ele adorava. Era um sábado e ela comprou feijoada enlatada para o grande dia. Não cozinhava nada. Absolutamente nada. Leu as instruções e pronto: colocou a lata, fechada, dentro da panela de pressão. Perdeu o almoço e quase perdeu também a inteireza do rosto quando a lata voou da panela e abriu um rombo no teto. Desconfio que, no lugar dessa tia, eu teria aberto a lata e despejado o conteúdo na panela, mas é essa a minha linhagem. Ao menos parte dela.
Cresci sabendo fazer só duas coisas, e olhe lá: ler e escrever. Escolhi profissões que dependem dessas habilidades. Enquanto morei sozinha gastei muito dinheiro em restaurantes, e depois de casada também. Até que vieram as crianças. E eu fiz as piores papinhas do mundo. Os bebês cuspiam e eu lhes dava razão. E mais dinheiro com comida pronta e cozinheiras. E minha mãe, a melhor mãe e avó do mundo, que sempre nos salvou. Quando não tínhamos alternativa, era macarrão com molho de tomate, macarrão com molho branco e macarrão na manteiga. E ovo mexido. Porque o frito não dá certo de jeito nenhum. E o macarrão podia variar: com ovo mexido e sem ovo mexido. E os meninos foram crescendo e dizendo que meu macarrão era o melhor do mundo. E eu só pensava: ah, quando o mundo deles se ampliar… Até que veio a pandemia do Covid-19 e o mundo de todo mundo se encolheu. Consegui, aos quarenta e cinco do segundo tempo antes de nos isolarmos em casa, um estoque de congelados. Mas o mundo ia se encolher ainda mais e por mais tempo. E eu, era o quê, afinal? Mãe de dois meninos famintos, como são todos os meninos em transição para a adolescência. Acordei um dia cheia de coragem e não deixei que ela sumisse entre o quarto e a cozinha, como acontece quase todas as manhãs. Estava obcecada: dessa vez o arroz ia ficar bom. E, sorte de principiante ou não, até meu marido se espantou: como você fez esse arroz tão soltinho? Encolhi os ombros discretamente, mas soltei fogos de artifício por dentro. E peguei todos os legumes que tinha na casa e fiz uma bela fornada regada a azeite. E teve peixe. E depois frango. E até a carne vermelha, meu maior pavor, já deu certo. Macia e bem temperada. Arrisquei feijão, que ficou comestível, mas a lentilha ficou boa mesmo. E fiz um purê de batatas, o prato preferido das crianças, que parecia uma nuvem. E teve até tortinha de maçã, que começaram feias, mas terminaram douradinhas e gostosas. Bolo de beterraba com chocolate. Pedi receitas pelas redes sociais. Ganhei várias e fiz algumas. As outras estão guardadas. Quero fazer todas, já gosto da minha comida. E tive até a ousadia de não seguir estritamente uma receita.
E deu certo. Deu certo! Pensei em pedir silêncio, como o poeta: nesse meu mundo encolhido e doído, nasceu uma flor. “Vejam!, pode ser feia, mas é uma flor”(*). E, em meio às panelas, à louça suja, à faxina, ao trabalho agora menos remunerado e às lições de casa das crianças, saíram também os textos jogados nas redes, uma tentativa de respiro e aproximação, porque sim, eu gosto tanto de gente, e chegou o convite para escrever nesse blog. Puxa, mais uma flor, ainda que feia. E talvez, mesmo nesse momento tão triste e duro para o mundo, a gente consiga cultivar um pequeno jardim.
Obrigada, Silvia!
(*) referência ao poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade