Categoria: COLABORAÇÕES

Textos de cronistas convidados do blog.

Shhhhhhh

Eu tinha quatorze anos, disso me lembro bem, quando cheguei faminta da escola e fui direto para a cozinha. O almoço ainda não estava pronto, nem a mesa posta. No fogão, aquele pininho da panela de pressão girava e soltava um chiadinho. Tive dificuldade para soltar a trava de segurança e enxergar, afinal, o que minha mãe preparava. Foi quando ela, como se enviada pelos anjos, entrou na cozinha e soltou um berro de horror. Larguei o cabo da panela na hora e respondi: só queria ver o que tem para o almoço. E você não sabe que não pode abrir panela de pressão???, ela continuou berrando entre incrédula e aliviada. Não, eu não sabia. Está certo que ela não tinha me ensinado, mas eu era, mesmo, essa adolescente sem noção nenhuma de cozinha (ou seja, de química, de física e da realidade). Tenho uma tia que, com quase trinta anos e recém casada lá nos anos 1970, resolveu fazer uma feijoada para o marido, prato que ele adorava. Era um sábado e ela comprou feijoada enlatada para o grande dia. Não cozinhava nada. Absolutamente nada. Leu as instruções e pronto: colocou a lata, fechada, dentro da panela de pressão. Perdeu o almoço e quase perdeu também a inteireza do rosto quando a lata voou da panela e abriu um rombo no teto. Desconfio que, no lugar dessa tia, eu teria aberto a lata e despejado o conteúdo na panela, mas é essa a minha linhagem. Ao menos parte dela.

Cresci sabendo fazer só duas coisas, e olhe lá: ler e escrever. Escolhi profissões que dependem dessas habilidades. Enquanto morei sozinha gastei muito dinheiro em restaurantes, e depois de casada também. Até que vieram as crianças. E eu fiz as piores papinhas do mundo. Os bebês cuspiam e eu lhes dava razão. E mais dinheiro com comida pronta e cozinheiras. E minha mãe, a melhor mãe e avó do mundo, que sempre nos salvou. Quando não tínhamos alternativa, era macarrão com molho de tomate, macarrão com molho branco e macarrão na manteiga. E ovo mexido. Porque o frito não dá certo de jeito nenhum. E o macarrão podia variar: com ovo mexido e sem ovo mexido. E os meninos foram crescendo e dizendo que meu macarrão era o melhor do mundo. E eu só pensava: ah, quando o mundo deles se ampliar… Até que veio a pandemia do Covid-19 e o mundo de todo mundo se encolheu. Consegui, aos quarenta e cinco do segundo tempo antes de nos isolarmos em casa, um estoque de congelados. Mas o mundo ia se encolher ainda mais e por mais tempo. E eu, era o quê, afinal? Mãe de dois meninos famintos, como são todos os meninos em transição para a adolescência. Acordei um dia cheia de coragem e não deixei que ela sumisse entre o quarto e a cozinha, como acontece quase todas as manhãs. Estava obcecada: dessa vez o arroz ia ficar bom. E, sorte de principiante ou não, até meu marido se espantou: como você fez esse arroz tão soltinho? Encolhi os ombros discretamente, mas soltei fogos de artifício por dentro. E peguei todos os legumes que tinha na casa e fiz uma bela fornada regada a azeite. E teve peixe. E depois frango. E até a carne vermelha, meu maior pavor, já deu certo. Macia e bem temperada. Arrisquei feijão, que ficou comestível, mas a lentilha ficou boa mesmo. E fiz um purê de batatas, o prato preferido das crianças, que parecia uma nuvem. E teve até tortinha de maçã, que começaram feias, mas terminaram douradinhas e gostosas. Bolo de beterraba com chocolate. Pedi receitas pelas redes sociais. Ganhei várias e fiz algumas. As outras estão guardadas. Quero fazer todas, já gosto da minha comida. E tive até a ousadia de não seguir estritamente uma receita.

E deu certo. Deu certo! Pensei em pedir silêncio, como o poeta: nesse meu mundo encolhido e doído, nasceu uma flor. “Vejam!, pode ser feia, mas é uma flor”(*). E, em meio às panelas, à louça suja, à faxina, ao trabalho agora menos remunerado e às lições de casa das crianças, saíram também os textos jogados nas redes, uma tentativa de respiro e aproximação, porque sim, eu gosto tanto de gente, e chegou o convite para escrever nesse blog. Puxa, mais uma flor, ainda que feia. E talvez, mesmo nesse momento tão triste e duro para o mundo, a gente consiga cultivar um pequeno jardim.

Obrigada, Silvia!

 

(*) referência ao poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade

Mais perto da lua

Noite dessas fui abduzida para outro planeta. Justo eu, que nunca gostei de histórias de viagens interplanetárias, realidade paralela, catástrofes e coisas assim. Só via o céu quando passava noites no mato e, sem mais o que fazer, me deitava olhando a lua, a via Láctea, o Cruzeiro do Sul, a estrela Dalva e milhares de estrelas… Aí pensava em como seria morar em uma delas ou no planeta vermelho.

Agora isso: abro os olhos, ando pelo apartamento. Tudo parece igual, mas está diferente. Os extraterrestres reproduziram meu habitat como fazemos nos zoológicos, mas foram além, porque todo o meu entorno é o mesmo e minha mãe continua morando no mesmo lugar.

Só que estou enjaulada. Daqui não posso sair. Segundo me informaram por uma tela onde os ETs surgem cheios de cena, posso quebrar a regra da quarentena que me impuseram por causa de um invasor, mas arcarei com as consequências. E porque não posso sair, não vejo outras pessoas a não ser meu marido, que foi abduzido junto.

Temo e aprendo. Faço ginástica, cozinho com os suprimentos que me deixaram e há uma ordem de que tenho que manter 1 metro distância de quem quer que eu eventualmente cruze, se me rebelar.

Aprendo e temo. Não sei como viverei igual a antes disso se tenho aprendido a viver de outro jeito. Também não sei quando me devolverão para a Terra, se ela ainda será a mesma e nem mesmo se existirá. O mais grave: não sei se quero ser devolvida.

Estou gostando de ficar aqui, tirando as ameaças e os perigos do lugar. Consigo manter contato virtual com as pessoas que amo, rezo, mas não preciso trabalhar fora, cumprir compromissos sociais, encontrar os conhecidos sem afinidade comigo, experimentar a comida do restaurante novo, ser medida dos pés à cabeça. Vivo. Não preciso ir a cabeleireiro, terapeuta, shopping, massagista, cardiologista, contador. Não preciso ir ao banco.

E tudo se adapta. Cortam-se os excessos, tiram-se as influências. Neste planeta eu ouço menos barulho. Sempre gostei de silêncio.

Restringiram-me. Não posso mais bater perna. Viajar não pode. Nem abraçar, o que é ruim, mas por outro lado é bom porque dá mais vontade e encontram-se outros caminhos. A rigor, nem falar sozinha é permitido, pois gotículas de minha saliva ficarão no ar e isso é ruim para quem vem depois.

Tudo isso tem me deixado calma. Posso estudar uma porção de coisas que sempre quis sem ter pressa e faço isso pelo celular, que mantiveram e tem ótima conexão interestelar.

Devo fazer tudo devagar para que o tempo passe. E o tempo passa.

Durmo bem, rio, ouço músicas. Parece que estou voltando a ser criança.

Aliás, quando eu era menina, cismei de descobrir qual era a distância entre a Terra e a Lua. Passava tardes sentada no jardim tentando resolver esse problema.

Um dia, olhando uma figura da Terra e da Lua, tive a ideia: medi o diâmetro da Lua com a régua da escola. Digamos que tenha dado 1 centímetro. Medi a distância entre ela e a Terra. Digamos que tenha dado 5 centímetros.  E concluí que eu estava a 5 luas de distância da Lua.

Agora eu poderia calcular quanto tempo levaria para ir de caminhão até lá. E depois teria de descobrir por qual estrada.

Só porque estou abduzida nessa réplica do meu território, e com tempo, pude lembrar do meu sonho infantil de querer morar na Lua. Lá eu estaria mais perto daquilo que me faltava e eu nem sabia o que era. Nem sei ainda, mas estou com mais esperança do que nunca.

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e aprendiz de escritora

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

Homeoffice

por Luciana Gerbovic

Hoje amanheci (já que não dormi) decidida a encerrar umas pendências do trabalho. Tudo ajeitado na minha mesa do “homeoffice”, que é a mesa de jantar mesmo, mas antes o café da manhã das crianças. Suco de laranja espremida na hora, ovo mexido, fruta, entuchando o que posso de bom e saudável nesses meninos.

Depois é colocá-los pra tirarem o pijama (por que, mãe, se ninguém sai de casa?), escovarem os dentes (por que, mãe,…), o cabelo (faz o que tô mandando e não pergunta) e finalmente ajeitar o material para as lições que a escola ia começar a mandar hoje. Mas tem que entrar no Googleclassroom e colocar os códigos. Tem que criar um e-mail pro mais velho e explicar pro mais novo que ele não terá esse esquema porque ele está no Fundamental I. Tem que se inteirar do esquema do Fundamental I. E tem que descobrir que o filho mais velho não acha mesmo o livro de Matemática e descobrir que o livro ficou na escola, e dar um jeito do livro voltar pra casa, mas aí já é hora do almoço e tem que ter legumes e verduras e peixe e comida fresca e depois do almoço pronto e da louça lavada tem o livro de Matemática que chegou e aí o filho pode começar a lição, mas ele está quase tão perdido quanto o Você Sabe Quem na presidência e resolvo sentar com ele, com todo o trauma que tenho das lições de Matemática, com toda a falta de paciência que tenho pra menino cheio de privilégio que não entendeu como deve se portar na escola e cuidar das coisas, mas sento e me encho do amor que sinto por ele e supervisiono a lição de expressões numéricas e acolho os erros e as dúvidas e o desleixo para transformá-los em desafios superados. E a lição fica tão caprichada que ele acha que o professor vai desconfiar que nem foi ele que fez.

E eu choro porque hoje à tarde eu deveria estar com meus alunos da Escrevedeira falando de literatura. E meus filhos me abraçam dizendo que logo estarei com eles. Enxugo as lágrimas e já é hora da janta. E tudo fresco de novo. Faço arroz e fica bom! E sirvo o jantar e enquanto o marido lava a louça e comenta que pelo WhatsApp os amigos acham que devia ter aplausos nas janelas para os maridos que estão em casa, eu berro em nome da luta feminista e digo que não vou jogar biscrok pra macho que tá fazendo o mínimo do mínimo do que poderia fazer e guardo a louça e coloco as crianças no banho e rezo pra virar lésbica depois que esse isolamento acabar porque de homem hétero já estou pelas tampas das panelas que eles não sabem onde ficam.

E faço um bate-papo virtual com as manas inteligentes da porra antes de regar as plantas. E tomo um banho e penso nas mulheres que não têm os meus privilégios, nos alunos que não têm os privilégios dos meus filhos, no trabalho doméstico que deveria ser remunerado e muito bem remunerado. E choro. E saio do banho e acho que mereço esticar as pernas no sofá.

Quase 23:00. E porra!, os trabalhos pendentes que assim continuaram, lá no meu “homeoffice”…

‘Todos os dias é um vai e vem…’

por Márcia Intrabartollo   

O casalzinho se foi carregando quatro malas enormes e chegou na outra parte da América só com isso, os longos cabelos lisos dele e os olhos de rolinha dela. Ela começará a dizer “I love you”, como ele faz há tempos. Seus pés dançantes logo acharão um lugar para ensinar seu tango, fato que me atrevo a contestar de leve: brasileiros ensinando tango reforçará a ideia de que Buenos Aires é a capital do Brasil.

‘Brasileiros ensinando tango reforçará a idéia de que Buenos Aires é a capital do Brasil’

Podia ser frevo, mas quem sou eu para dar palpites? A vida é que vai ensinar aos dois o novo ritmo e passo, e a nós também, que ficamos aqui com parte da vida que eles deixam para trás.

Diz o Chico Buarque que “chega a roda viva e carrega o destino para lá”, mas retifico sua composição: carrega o destino para lá e para cá. Nós, aqui, teremos a sensação de sermos um pouco eles, aguando suas plantas, temperando a comida com seus condimentos, como se de repente tivéssemos entrado em uma casa habitada da qual pudéssemos dispor como quiséssemos, desde que mantendo a salvo os discos.

Herdamos orquídeas, rosa do deserto e um pé de erva-doce com botões. Veio um saquinho plástico com um pouco de cúrcuma fresca e uma caixa de temperos que levei no colo. O carro se perfumou de mercadões. A pimenta preta. A canela em pó. A páprica, o orégano, o chimichurri.

No Carnaval, fritamos o anis-estrelado antes de pôr o cogumelo na panela. Ficou bom. Coloquei cravo em pó no leite quente para aproveitar o frescor das chuvas. Nem sei se estou fazendo certo. Estou cintilando nossas comidas de Cintia, a de cabelos escorridos. As flores do pé de erva-doce nasceram loiras como o Paulo. Ponho água nas plantas torcendo para que fiquem saudáveis e floresçam, e eu possa mandar fotos para San Diego e alegrá-los. Está tudo bem.

Ontem tiramos o pó dos discos, acomodamos a coleção de Chico Buarque, Belchior, Milton, Clube da Esquina e tantos outros em um armário. Vimos que alguns devem ter sido anteriormente de outras pessoas, desconhecidos que agora compõem nosso mosaico musical. Encontros e despedidas, não é Milton? “E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”.

Meu bem vai comprar na José Bonifácio o cabo para a caixa de som que ficou sobre uma antiga mesa de costura, que, por sua vez, também herdamos de quem precisou abrir mão para se mudar. Quando a vitrola funcionar, porei, de vez em quando, os discos de tango para que as plantas matem a saudade do casalzinho. Tocarei um disco diferente por dia e pensarei que as vibrações daquelas músicas chegarão a todos aqueles a quem pertenceram.

“A plataforma dessa estação é a vida”, tocará. A vida que voa, circula, muda de mãos, se embrica, se esfrega nas outras e faz intersecções.

Enquanto eu escrevia, eles cruzavam, aventureiros, o Atlântico.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina mundo afora e aprendiz de escritora

O meu amor…

por Dani Ramos   

Meu amor chegou na minha vida assim como uma brincadeira, um acorde, uma música. Mal sabia eu que era Deus brincando comigo e deixando minha vida mais feliz.

Um encontro casual, uma sexta-feira 13 de agosto, uma afinidade imediata, uma banda cover. E o desejo de um reencontro.

Meu amor despertou em mim o desejo de ficar colada pele com pele e trouxe a ternura pelo seu toque suave.

Nos despedimos várias vezes ao longo da nossa jornada.

A primeira foi doída, sentida a cada dia como se fosse uma eternidade.

O reencontro nos deu a certeza de um amor pra vida toda.

Vieram outras separações e todas nos fizeram crescer e afirmaram o quanto nos queríamos.

Sua última partida, essa sem possibilidade de retorno, me deixou perdida no espaço, fazendo força para acreditar que poderemos nos ver novamente.

E Deus, o cara que brincou comigo e me deu a felicidade em forma de luz?

Será que conseguirá me trazer de volta a paz?

Quando meu amor adoeceu senti raiva. Raiva da sua falta de cuidado, da mensagem incompreendida e da condenação divina.

Basta! Era tudo o que eu queria gritar.

Ofereci meu colo e seguramos nossas mãos unidas, como uma rede que pudesse nos proteger daquele feitiço sem volta.

Meu amor não entendeu minha ira, mas aceitou meu colo e juntos fomos em busca de socorro.

A viagem foi longa, entrei e saí do barco, o enjoo veio, mas ele se manteve no comando, sem deixar que a água invadisse e transformasse terra fértil em lama.

Meu amor tinha uma estranha mania de se calar e deixar que sua voz riscasse o papel. Eu gostava de admirá-lo enquanto deslizava o lápis sobre a folha branca ou enchia uma tela de cores.

Brincávamos de ser gente grande, de viajar, de ganhar o mundo com a arte, com nossos sonhos.

Sonhamos juntos e sonhamos separados.

Nos falamos com palavras e com olhares.

Meu amor me acordava com cheiro de café coado, pão na chapa quentinho e frutas picadas. Ganhava um beijo, um abraço desajeitado enquanto escovava os dentes.

Me enchia de cuidados, vigiava minha postura, fazia questão de me ver sorrindo, insistia para que eu me alimentasse bem.

As vezes saía e me deixava dormindo só para eu poder acordar com sua mensagem, um desenho e o pedido de contato.

Outras tantas me acordou com muita insistência, quase me arrastando para a vida.

A noite era plena para ele, seu corpo era embalado pelo próprio ronco. A minha era de luta com o meu próprio corpo, com os sons internos e externos.

Não se queixava do meu peso em seus braços. Mal se movia para não me acordar. Repousava sua mão no meu seio, colava seu corpo ao meu e me fazia sua.

Seu olhar sempre pedia mais de mim.

Gostava do riso fácil e da minha vontade de viver, detestava brigas e cobranças.

Meu amor me olhava com admiração enquanto eu contava histórias ou defendia pontos de vista.

Seu silêncio era minha calma e meu desespero.

Quando meu amor morreu, achei que tudo seria mais leve, que meu coração estaria aliviado por ver seu sofrimento acabar.

Pouco antes de partir, meu amor chamou pelo meu nome. Não disse o que queria, mas nós dois sabíamos o que era.

Então, disse em seu ouvido o que gostaria que ele sentisse em seu coração.

Soprei de leve as palavras de amor que costumávamos trocar.

Depois disso, ficou apenas um rasgo em meu peito, uma cicatriz eterna na alma.

Nosso tempo unidos eternizou o laço que construímos.

Vivo hoje uma viuvez sem papel, sem título, sem documentos.

Marcou tanto minha existência que todo o resto se fez pequeno.

Carrego comigo o mesmo anel que ele mantinha no bolso.

Arrumei suas coisas, me preocupei em embalar tudo como ele mesmo faria.

Guardei comigo sua camiseta mais amada, uma roupa íntima, seus desenhos e livros, um pouco do que marcou a nossa bela história.

Preocupei-me em dar asas e voz ao que ele sempre amou.

Procurei seus amigos e pedi colo, compreensão, troca. Encontrei mais que isso… me deram amizade. Na dor compreendi sua escolha por pessoas que o alimentaram tanto.

Mais que isso, aceitei o presente que meu amor me deixou.

Suas mãos sempre foram quentes, me encheram de amor e aqueceram meu coração. Repousava sua mão na minha coxa como se nos mantivéssemos de mãos dadas enquanto eu dirigia.

Quando nos despedimos, suas mãos estavam perdendo a quentura e levemente fomos nos desconectando.

Meu amor era assim, se preocupava tanto comigo que me deu tempo para que me acostumasse a andar com as mãos vazias.

 

Dani Ramos é jornalista e a pessoa mais afetuosa e sensível que conheço.

Para onde as mulheres podem fugir?

por Márcia Intrabartollo.    

Para onde  as  mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir?

Para onde as mulheres que sofrem violência doméstica podem fugir levando pelas mãos seus filhos e sem formação que lhes permita ganhar o sustento?

Quando me imagino no lugar de uma delas, me vejo sonhando com um condomínio de casas em que as mulheres pudessem viver por um tempo e que fossem recebidas por assistentes sociais, advogadas e psicólogas capazes de lhes orientar sobre os aspectos legais de uma separação, lhes dessem cursos de capacitação profissional, intermediassem empregos. Para ficar tudo ótimo, o condomínio teria uma estrutura de creche junto. Ah, e tinha que ter interfone com porteiro para evitar que os maridos as tirassem da paz. Já inventaram isso?

Quando eu era criança, fui vizinha de uma família por muito tempo. Pai, mãe e três filhas. O marido sofria de alcoolismo e era o provedor da casa. Ele era ótimo em matemática, apesar de ter frequentado pouco a escola.  A mulher era doce e sensível, ótima mãe, católica e cuidava da casa e das crianças com os parcos recursos que ele lhe dava, apesar de ter os bolsos cheios de notas.

Morávamos em um loteamento, desses em que cada um constrói sua própria casa. A deles era um primor de bom gosto e capricho e tinha uma especificidade: de lá saiam sons o tempo todo. Saíam berros, xingamentos, barulhos de coisas se quebrando. Saíam “Ais”, saiam “Para”! Eu sentia a vibração daquela vida opressiva chegando até meu quarto. Tínhamos que aumentar o volume da televisão para não ouvir as brigas diárias.

Eu vi o dia em que a polícia chegou depois da mulher ter usado o telefone da minha casa para chamá-la. O marido tinha batido nela e dado uma surra na menina maior. Ela até suportaria se fosse só com ela, mas com a menina ele não podia ter mexido. Vi os policiais perguntarem o que ela tinha feito para que ele perdesse o controle daquele jeito e fiquei intrigada com esse outro jeito de ver quem era culpado.

Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo aquele sofrimento porque não tinha para onde correr. Mesmo achando que era pecado, ela se separaria dele se tivesse para onde ir. Mas nenhum dos seus muitos irmãos e irmãs achavam que em briga de marido e mulher se deve meter a colher. Os irmãos dele achavam que estava tudo certo. E nós e os outros vizinhos percebíamos como tínhamos uma vida harmoniosa em comparação com a vida dos outros.

 

“Só muito mais tarde eu entendi que ela suportava todo
aquele sofrimento porque não tinha para onde correr”

 

Teria sido tão fácil se a família tivesse se unido para alugar uma casa para elas (ou acolhê-las) e por uns  meses tivessem passado um aperto a mais para lhes dar comida – só até que ela engrenasse como costureira, crocheteira, passadeira, já que era boa de trabalho…

Teria sido tão fácil se algum advogado vizinho tivesse se disposto a  orientá-la sobre o processo de separação, que lhe renderia pensão alimentícia…

Mas ninguém se envolveu. Nem mesmo nas duas vezes em que elas fugiram para a casa dos parentes e depois de uns dias foram mandadas embora porque eles não tinham como sustentar quatro bocas. Ninguém, tampouco, se interessou por ele.

Estou falando de um caso fácil: família de classe média, em um bairro de classe média, com marido que tinha como dar pensão, crianças saudáveis e educadas, mulher com condição de trabalhar. Um caso fácil em que nem assim houve solidariedade. Bastaria apoio. Uma mão forte para amparar aquela fragilizada mãe, que achava que sem o marido não conseguiria alimentar as crianças.

Dirão alguns que ela podia ter se separado assim mesmo. Falar com base em sua própria formação, personalidade e condição é fácil! O fato é que o medo e a opressão paralisam, e o fato maior é que ninguém é solidário a ponto de se envolver realmente, de cuidar da vítima.

Ela só conseguiu se separar do marido quando as filhas começaram a ganhar uns troquinhos como vendedoras.

Por que não vejo casas de apoio para receber mães acuadas, aquelas do meu sonho? Por que não vejo mulheres de sucesso e muita grana capitanear um projeto que propicie esse apoio, assim como jogadores de futebol apoiam escolinhas de jogadores, assim como os cantores sertanejos apoiam o Hospital do Câncer?

Eu, você, os parentes, os vizinhos, iniciativas privadas, o poder público… por que ninguém dá a essas mulheres a condição de fuga?

Poesia do cotidiano

por Thiago Roque     

“Roma” é o que os grandes críticos costumam chamar de “cinema em seu estado mais puro”. Bom, eu não sou um grande crítico, por isso, me arrisco a escrever que o longa de Alfonso Cuarón é uma obra corajosa para os dias de hoje.

É só observar as escolhas do diretor: o filme, todo em preto e branco, traz as personagens falando espanhol e mixteco – língua de um dos povos nativos mexicanos. No elenco, saem as grandes estrelas de Hollywood (em “Gravidade”, por exemplo, Cuáron trabalhou com George Clooney e Sandra Bullock) e ocupam a tela descendentes indígenas. Você também não encontrará milionários efeitos especiais ou grandes recursos de edição – “Roma” apresenta cenas simples, quase cruas, mas sensivelmente carregadas de metáforas e simbolismos. Além de tudo isso, o diretor mexicano quis levar sua obra direto para a casa das pessoas, via Netflix – para ser relevante e discutir temas como diversidade, desigualdades sociais e solidão, era necessário ser visto por todos.

‘Roma’ apresenta cenas simples, quase cruas, mas
sensivelmente carregadas de metáforas e simbolismos

Coragem premiada: são dez indicações para o Oscar – Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz (a inexperiente e arrebatadora Yalitza Aparicio), Melhor Roteiro Original, Melhor Atriz Coadjuvante (Marina De Tavira), Melhor Fotografia, Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Design de Produção, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som. De quebra, um grande favoritismo para a premiação.

Cuarón dirigindo Yalitzia: ele indicado ao Oscar de Melhor Diretor e ela, a atriz

“Roma” também espalha beleza e poesia em suas pouco mais de duas horas de duração. Cuáron (que escreveu, produziu, dirigiu e cuidou da fotografia e da montagem do filme) nos tira de um mundo  moderno, facebookiano, apressado, e nos desacelera – levando a câmera da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. É assim, como se estivesse registrando panorâmicas, que o diretor conta sua história por meio da história de Cleo (Yalitza Aparicio), uma jovem que trabalha como babá e doméstica de uma família de classe média do México nos anos 1970 – “Roma”, aqui, é referência ao bairro Colonia Roma no nome e inspiração no cinema neorrealista italiano.

Nesta posição de observador privilegiado, você poderá se aborrecer um pouco com o cotidiano sem grandes aventuras da protagonista – faz café, lava roupa, limpa a casa, segura o cachorro… Mas também se encantará com o amor dela pelas crianças, se preocupará com a ingenuidade na companhia do namorado e com o medo e a vergonha quase adolescentes da gravidez, irá compartilhar a dor do abandono, talvez até derrube uma lágrima ou outra com o desespero da perda ou a coragem de lutar pelo que ama – aqui, olhos bem abertos para a cena da praia.

Cada cena um lindo quadro em preto-e-branco

Ao redor de Cleo, o olhar do diretor sobre a própria vida: o retrato das desigualdades (da casa cheia de quartos dos patrões de Cleo ao bairro sem estrutura no qual mora o namorado), a paixão pelos aviões, a pressão imposta sobre as mulheres (da esposa que não quer acreditar no fim do casamento à filha que não pode comer doce para engordar), as revoltas populares do país (destaque para a cena que reproduz o Massacre de Corpus Christi, página triste e sangrenta da história mexicana), a homenagem ao cinema, o barulho ensurdecedor das ruas solitárias do bairro.

Vale destacar também a relação de Cleo com a patroa Sofía (a excelente Marina de Tavira). As duas saem do estabelecido padrão empregada-empregadora para uma posição de iguais – com seus sofrimentos e esperanças. E se a doméstica mal fala durante o longa, a patroa não joga palavras ao vento. “Estamos sozinhas. Não importa o que digam, nós, mulheres, estamos sempre sozinhas”, diz Sofía a Cleo, derrubando muros (fica a dica aí, Trump!) de qualquer diferença socioeconômica, política, educacional, sexual.

E é assim, a cada frase dita e, principalmente, não dita, a cada horizonte ampliado, que “Roma” vai conquistando você. Talvez demore um pouco, talvez um pouco mais do que você gostaria. Mas alerto: será difícil, depois do filme, não procurar um pouco mais de poesia no seu cotidiano.

Que não falte coragem a você para encontrá-la.

‘Um Lugar Silencioso’: menos é mais

por Régis Martins     

Filmes de gênero são sempre tratados com certo desdém pela turma do Oscar em Hollywood. Que o diga Stanley Kubrick que investiu em filmes de guerra, terror e ficção científica com a sua genialidade peculiar, mas foi esnobado pela academia a vida inteira.

‘Um Lugar Silencioso’ sofre desse mal. Trata-se de um terror/suspense que vai além dos clichês do estilo, mas vai concorrer apenas a categoria técnica de Melhor Edição de Som na cerimônia desse domingo.

Melhor sorte teve “Corra”, filme de Jordan Peele, que no ano passado faturou Melhor Roteiro Original e foi indicado a outras três categorias. Mas não se deixem enganar, o filme dirigido por John Krasinski, que também atua ao lado da mulher, Emily Blunt, merecia mais. É um daqueles produtos baratos – para os padrões de Hollywood, claro – que consegue tirar leite de pedra.

Na trama, uma família vive num mundo pós-apocalíptico assombrada por criaturas cegas que atacam tudo que faz algum tipo de barulho. Por isso, os humanos precisam viver em absoluto silencio para sobreviver. Depois de uma tragédia inicial, a trama discorre num clima de tensão, culpa e medo.

John Krasinski em cena no primeiro filme que dirige: boa surpresa

Podem-se fazer diversas leituras filosóficas/político/sociais da trama: porém enxerguei ali um drama familiar e, principalmente, a aflição da paternidade/maternidade nos dias atuais. Como proteger nossos filhos de um mundo apavorante, barulhento e caótico?

Ao optar  por estilo minimalista, sem excessos, Krasinski mostra que, quando o assunto é terror ou suspense, menos é mais. Com poucos diálogos e poucas explicações, o longa dá espaço à imaginação do espectador, sem truques baratos e baboseiras sentimentalóides.

Outro detalhe que chama a atenção é que uma das crianças, a atriz Millicent Simmonds, realmente é deficiente auditiva. Sua personagem é um dos pontos altos da trama, porque carrega consigo toda a dor de existir num ambiente inóspito.

Ela e Emily Blunt estão muito bem e mereciam pelo menos serem indicadas para o Oscar. Mas, vocês sabem, o mundo é injusto.

 

Régis Martins é jornalista, músico/compositor e cinéfilo

Sonhei que eu era Buster Scruggs

por Raul Otuzi

Com o meu indefectível figurino branco e um chapéu exibicionista que mais parecia um sombreiro, eu estava cavalgando solitário, dedilhando com destreza meu violão e cantando: “Cool Water”.

Um dos irmãos Coen falou que estava muito à vontade, cheio de empáfia.

O outro completou:

  • Hey, Buster, cuidado. Toda esta confiança pode acabar. Assim como a vida, a sorte não é eterna.

Dei de ombros, troquei algumas palavras com o público, cheguei à cidade, matei uns cowboys mal encarados e puxei outra canção. Agora um misto de show e catarse, em cima do balcão: “Surly Joe. Surly Joe”.

Um dos Coen:

  • Não se empolgue tanto, Você não é a Lady Gaga, não está em um musical, isso aqui é um faroeste. Sangrento, tenso. Para de ser cínico.

O outro Coen:

  • Verdade. Baixa a bola. Nenhuma de suas músicas vai para o Oscar. A indicada será “When a cowboy trades his spur of wings”. E mais: apesar do seu nome batizar o filme, temos mais cinco contos. Um melhor que o outro.

  • Cala a boca! – gritei – puxei meu revólver e…

Uma página gigante de livro encerrou minha história. Voei para longe.

 ….

Cena de “A Balada de Buster Scruggs”

O sonho continuou. Do alto, vi um ladrão de bancos em apuros. Ele se parecia muito com o ator James Franco. Mas não tenho certeza. Será que era ele?

Tudo foi muito rápido. A porta de banco se abrindo, o close nas botas e esporas, a conversa pouco amistosa, a reação quase instantânea, o tiroteio desvairado, o assalto frustrado. A captura, a sentença, o pescoço, a corda. Cavalos, índios, gritos, flechas.

No meio de tudo, antes, o velho funcionário do banco vestido com uma roupa/couraça feita de panelas. Comecei a rir. Santo Batman, quanta criatividade para se defender. Esses irmãos Coen são hilários, pensei.

….

Então apareceu uma charrete. O tom ficou sombrio. Uma farpa melancólica beliscou meu coração. Senti pena do viajante Liam Nesson e a sua atração de circo, um cara sem braços e pernas. Ah, impossível não lembrar de “Encaixotando Helena”, o filme de Jennifer Lynch.

Desci dos céus e comecei a escutar as histórias do garoto circense.

É incrível coma a vida pode ser miserável e valer menos que uma galinha.

Confesso que senti um nó na garganta.

Senti os Coen bafejando ao meu lado. Uma cortina de escárnio.

Os irmãos Joel e Ethan Coen

Nem tive tempo de me recuperar e começou mais um conto. Um velho começou a cavar, cavar, cavar. Era Tom Waits.

  • Ei, o que você está fazendo aqui, cara? Você é cantor. E isso aqui não é um musical – eu disse para ele. – Não seja ridículo.

Tom não me ouviu, estava mais ocupado brigando com um bandido que tentava roubar o ouro que ele finalmente havia encontrado depois de fazer inúmeros buracos no solo maltratado.

Eu pensei em ajudar o Tom. Mas um dos Coen me impediu, antevendo minha interferência.

  • Buster, sua participação no filme já acabou. Fica quietinho, só assistindo.

Cerrei os dentes. Esse caras ainda vão ter o que merecem!

….

 

Caravana. Uma jovem endividada e sem ninguém no mundo encontra um protetor inesperado. Rá… já era tempo, manos Coen. Até que enfim, uma história de amor.

Peguei a pipoca, uma dose de uísque e delirei antevendo (depois de alguns percalços, é óbvio) um final feliz.

O roteiro era claro: após extremas desilusões, um romance delicado e tórrido se desenharia no meio de uma paisagem deserta, preenchida pelos latidos insistentes do Presidente Pierce, o cachorro que a jovem Alice havia herdado do irmão morto.

Não é que sempre pode haver esperança? – Refleti, sentindo o cheiro de poeira e poesia.

  • Talvez – um dos Coen me cutucou – Não esqueça que você não está em um musical. Isso aqui é um faroeste. Um faroeste!

….

Último conto. Mesmo sendo Buster Scruggs, um astro, eu não sabia o que esperar. Eu deveria saber antes, me indignei. O que seria? Outra piada ácida? Veio um suspense. Cinco personagens conversando dentro de uma carruagem. Mais uma viagem. Já reparou como estamos sempre tentando chegar a algum lugar? Por que não sossegamos o facho e ficamos quietos, aproveitando onde estamos? Por que temos que estar sempre em movimento? Começando uma nova jornada? Experimentando novos caminhos? Por quê? Tantas dúvidas.

  • Chega! Quero um duelo! – Desafiei os irmãos Coen – O mundo é pequeno demais para nós três, quer dizer, dois.

  • Um duelo, seu idiota? Apesar de indizíveis, somos duas almas distintas – Joel e Ethan mostraram os dentes.

Antes que tivesse a chance de sacar meu reluzente revólver, senti meu peito ausente, formigando quente. Levei minha mão até ele. Molhei os dedos, docilmente.

A última coisa que pensei foi: Quem é Joel? Quem é Ethan? Nunca sei quem é quem. Acho que nunca saberei.

Ouviu um sopro distante:

  • Desde que continuem nos fazendo sonhar assim, isso importa?

 

 

 

‘Pantera Negra’ pra sempre

por Thiago Roque    

O ano era 1966, a temperatura nos Estados Unidos subia com a luta pelos Direitos Humanos por parte da população negra. As HQs, que retratavam como ninguém as mudanças da época, saíam na frente de novo e trouxeram pela primeira vez Pantera Negra, um herói negro, em suas páginas.

Lá se vão 50 anos até o mesmo Pantera Negra integrar, após aparição em “Capitão América – Guerra Civil” os 10 anos do Universo Cinematográfico Marvel com filme próprio. E, mais uma vez, para fazer história – apesar de “Blade” ainda levar o crédito de primeira obra cinematográfica com protagonista negro.

Mas faz história porque “Pantera Negra” não é apenas mais um filme de herói do estúdio preferido da moçada. É, também e principalmente, um necessário manifesto sobre a diversidade.

Tão necessário que a Academia não conseguiu ignorá-lo. Assim, pela primeira vez em 91 anos, um filme de herói rompe a barreira das indicações técnicas – “Pantera Negra” foi indicado ao Oscar de Melhor Filme, além de Melhor Figurino, Melhor Mixagem e Edição de Som, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Direção de Arte e Melhor Canção Original.

 “a Academia não conseguiu ignorá-lo. Assim, pela primeira vez em 91 anos, um filme de herói rompe a barreira das indicações técnicas”

O retorno de T’Challa (Chadwick Boseman) a Wakanda para ser coroado rei dá início a uma jornada por um universo sem igual nos filmes da Marvel. O diretor Ryan Coogler nos apresenta uma nação que se equilibra entre o futurismo e o orgulho de suas tradições, que fala a língua da ciência moderna e os inúmeros dialetos dos ancestrais. Cores, figurinos, olhares, sonoridades, tudo é meticulosamente pensado e detalhado para apresentar ao espectador o que ele deve ter ignorado (propositadamente ou mesmo sem querer) por anos e anos: a cultura negra – e de uma forma tão provocativa que, daqui pra frente, você deve sentir falta de uma estampa geométrica colorida ou mesmo de um batuque em outros filmes…

Photo: Matt Kennedy..©Marvel Studios 2018

Michael B. Jordan é Erik Killmonger e Chadwick Boseman T’Challa em ‘Pantera Negra’

“Pantera Negra” também nos presenteia com um dos melhores vilões da saga Marvel até aqui: Killmonger (ponto para Michael B. Jordan) vem carregado de idealismo e de sede por justiça – não se assuste se, em determinado momento, você até torcer um pouquinho por ele. O personagem carrega as frustrações de um povo excluído, sofrido, maltratado – e faz de tudo isso combustível para seus atos. É dele a melhor frase do filme: “Jogue-me no oceano com meus antepassados, que pularam dos navios porque sabiam que a morte era melhor do que a escravidão”.

“às mulheres foram reservados relevância, bons diálogos e incríveis takes de ação”

Mas se engana você se acha que apenas os homens brilham neste filme: às mulheres foram reservados relevância, bons diálogos e incríveis takes de ação (as cenas na Coreia do Sul, meus amigos!), seja com Okoye (Danai Gurira), general do exército das Dora Milaje, seja com a espiã Nakia (a sempre competente Lupita Nyong’o), seja com Shuri (Letitia Wright), uma cientista brilhante, jovem e descolada – ah, ela também é irmã do rei T’Challa, quase esqueci.

Além do protagonismo feminino, vale destacar também a convivência entre a antiga e a nova geração de atores negros – se Michael B. Jordan e Letitia Wright brilham pelo time dos jovens, Forest Whitaker (Zuri) e Angela Bassett (a rainha-mãe Ramonda) fazem a trama toda passar por seus diálogos para ganhar história, equilíbrio e uma dose de drama. E, claro, não decepcionam.

Como também não decepciona a trilha sonora que corre durante todo o filme – que tem consultoria de Kendrick Lamar. Vale dar o play depois.

Se os filmes de heróis surgem para inspirar o melhor nas pessoas, “Pantera Negra” surge não só para corrigir uma falha histórica com a população negra, mas também para mostrar que o mundo perde demais quando comete o erro de negar sua tão rica pluralidade.

O Pantera Negra sabia disso lá em 1966. Mas ó: ao menos, essa (injusta) espera de 50 anos valeu a pena.

 

Thiago Roque é jornalista, cinéfilo e descalvadense orgulhoso.