Categoria: COLABORAÇÕES

Textos de cronistas convidados do blog.

Mãe solteira procura…

“Mãe, compra um suco?”. Já viram o preço de um copo de suco num restaurante comum? Em Brasília, custa em média R$ 6 o copo.

“Mãe, compra cartas Pokémon?”. Depois que passou a febre das figurinhas da copa, ele voltou a fuçar a caixa que guarda mais de 200 cartas desses bichinhos esquisitos.

“Mas, mãe, só custa R$ 6”. Paro, respiro, penso e tento explicar que é quase o valor de uma passagem de ida para o trabalho. O ticket de metrô em Brasília custa R$ 5.

Dias atrás, ele chorou quando me despedi para ir ao trabalho. Pedi calma. “Logo as coisas se resolvem e consigo organizar melhor a logística para ter mais tempo”, disse eu.

Há dois anos deixei o jornalismo para trabalhar como artista em eventos. Passei a ter mais flexibilidade de horário, porém, abri mão de certos luxos. Deixamos o carro, evitamos comer em restaurantes, quase não compramos roupas. Cinema é raro. Viagens nem se fala.

O primeiro mês foi surpreendente. Recebi melhor do que quando era jornalista. No segundo, não foi tão bom, mas o primeiro mês compensou. Daí para frente, só malabarismo com a vida. Alguns meses tranquilos, outros uma corrida contra o tempo para conseguir o suficiente para pagar as contas.

Quando percebi estava trabalhando mais do que trabalhava antes como jornalista. Eventos nos fins de semana e escolas durante a semana. Isso porque o aluguel aumentou, a conta de luz subiu, a vizinha que dividia a internet desistiu por conta da péssima qualidade do serviço da Vivo, além da compra no supermercado que ficou mais cara.

“Mãe, minha cabeça está doendo.”

“Leva no oftamo”, aconselham.

“Mãe, tem um dente nascendo por cima do outro.”

“Ixi, vai precisar de aparelho de dentes”, ressaltam.

“Mãe, não consigo respirar.”

“Puxa, é alergia!”, afirmam.

“Tô pirando”, desabafo.

“Psiquiatra, nêga. Remédio ajuda. Tem convênio?”, perguntam. Imagina! Convênio? Desde quando isso faz parte da realidade de um autônomo?

Há meses tento uma brecha de tempo para enfrentar a fila do SUS e marcar tantas consultas.

Dia desses ele chorou de novo quando me despedi para ir dar aulas.

“Filho, eu preciso pagar as contas. Temos que nos ajudar”, expliquei. E entrei no metrô, cabeça a mil. Parei na frente da escola. Travei. Naquele dia eu iria trabalhar 8 horas, com crianças do berçário e do maternal. Já tentou conseguir a atenção de crianças de 1, 2 anos? E de várias delas ao mesmo tempo? Tentou?

Da mesma forma que eu, elas estão ali por falta de opção. Na verdade, preferiam estar em casa com seus pais, num ambiente seguro e confortável e não sendo obrigadas a fazer atividades de circo, inglês, nutrição, música, pintura, colagem, massinha, etc, por tempo integral. “Pelo amor de Deus, são bebês”, gritei internamente… e não entrei na escola.

Voltei para o metrô e surpreendi meu filho em casa. Com olhos cheios de lágrimas, ele gritou: “Mãe! Não acredito. Você voltou”.

Não é de cortar o coração? Avisei na escola que não poderia continuar o trabalho. Chorei e questionei o sistema. “Não existe outra forma. Você tem que aceitar!”, afirmaram. Bati o pé, gritei, dormi e acordei… “Quem vai pagar o suco, presentear com a carta Pokémon, pagar os aparelhos de dentes, os remédios da alergia? Quem?”.

Bem, sou mãe solteira (sem pensão), jornalista com dez anos de experiência, artista com dois anos de erros e acertos. Sou idealista e questionadora. Estou à procura de um emprego que me permita ter tempo para o meu filho e ainda assim ter condições de pagar além do básico. Temas como feminismo, igualdade, direitos humanos, pedagogia alternativa e arte me interessam. Você, empregador ou empregadora que se interessa por esse perfil ou conhece alguém que se interesse, entre em contato.

Acho que não é pedir demais… É?

Carol Oliveira
Jornalista, artista e mãe solo

 

Esta crônica integra a série “Vozes que pariram“, deste blog de crônicas, que tira da invisibilidade histórias de lutas de mães com o objetivo de provocar debate, reflexão e, quiçá, mudanças de mentalidade que melhorem as relações. Envie sua contribuição para silviapereira@palavreira.com.br se conhecer uma história que promova o objetivo do projeto.

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Sou uma mãe ‘do caralho’

Voz a quem pariu (apresentação da série)

Sou uma mãe ‘do caralho’!

Eu me formei jornalista aos 22 anos. Viajei para Europa para um intercâmbio de dois anos, com o intuito de me especializar e ter mais oportunidades na minha profissão.  No entanto, em apenas três meses de aventura eu descobri que estava grávida e decidi voltar para o Brasil.

Os anos seguintes foram de muita luta. Tentava conciliar estudo para concurso com trabalho e cuidados com a cria. Sentia muito cansaço, ansiedade, preocupação.

Trabalhei na Câmara dos Deputados, em alguns ministérios como assessora de imprensa. Aguentei humilhações e assédio sexual. Tinha que deixar meu filho tempo integral na creche.

Eu não tinha muita motivação, nem energia para ir além. O pai biológico do Miguel havia decidido não participar e colocou a culpa em mim por eu ter decidido voltar ao Brasil.

No Brasil, retomei uma relação com um ex, que insistiu em formarmos uma família – eu, ele e meu filho (ainda na barriga).

Durante os primeiros aninhos do Miguel, mesmo com esse companheiro, era eu quem acordava todas as madrugadas (afinal não podia exigir muito de alguém que escolheu ser pai de um filho de outro).

Quem pagava escola e comprava remédio e roupas e brinquedos era eu. Quem deixava na creche e buscava, era eu. Quem abriu mão de especialização, academia, fui eu.

O “pai” fazia muay thai, musculação, cursos, natação, trabalhava em dois empregos.

O pai biológico, nem sinal. Enviei uma foto do Miguel com 1 ano e 6 meses. Ele pediu: “não faça mais isso. Sofro quando vejo”. Nunca mais enviei.

O “pai” tinha carro (dado pelo pai) e moto. Eu andava cerca de 20 minutos com Miguel no colo e no sol para deixá-lo na creche. Um dia perguntei a ele por que não me emprestava o carro e ele ia de moto para o trabalho. Ele respondeu: “Porque você tem que lutar por suas próprias coisas”.

Na época, eu trabalhava como assessora de imprensa por míseros R$ 2 mil, com um deputado corrupto que pedia todo dia, em tom de “brincadeira”, que eu chupasse seu pau. Isso na frente de todos os assessores, que riam (aliás, ele foi preso por suspeita de estupro em seu Estado e solto por falta de provas).

Eu chegava em casa chorando e esse companheiro dizia: “você tem que correr atrás de outro emprego. Não posso fazer muito por você”.

Ainda fiquei dois anos nesse gabinete (enquanto procurava por outro emprego), “aprendendo a lidar”, como me diziam para fazer.


O “pai” tinha carro (dado pelo pai) e moto. Eu andava cerca de
20 minutos com Miguel no colo e no sol para deixá-lo na creche


Um dia, entre amigos, esse companheiro, para se vangloriar, falou em voz alta que sua renda estava em torno de R$ 10 mil. Eu fiquei chocada, porque eu não sabia nada sobre. Eu pagava metade do nosso aluguel, da nossa alimentação, R$ 800 reais de creche e, quando saíamos, metade da conta.

Eu fiquei tão triste e me sentindo tão imbecil que fui embora de casa sem dizer nada.

Até hoje ele pega Miguel em suas folgas. Claro que depois do seus esportes, viagens e trabalho. Por uns três anos, após eu pedir, ele pagou por algumas atividades extras do Miguel. Depois que casou, sua esposa o proibiu e também pediu que ele diminuísse o contato. Ele aceitou e me disse: “não me casei no papel para separar”.

Opiniões sobre esse caso existem milhares. A maioria “ME” julgando.

O que sei é que sou uma mãe “do caralho”, que evolui à medida que a energia vital deixava.

Ontem Miguel passou o dia com o “pai”, que permiti estar na vida dele só por ele, meu filho, que o ama muito e até adoeceu quando tentei afastar.

Não tive bom exemplo de avô (era um louco, violento, alcoólatra, escroto do caralho). Tive um pai extremamente desequilibrado (e ainda assim, sofro horrores com a sua falta). Não tive a oportunidade de oferecer um bom exemplo de pai para meu filho, mesmo ele dizendo para as pessoas que tem dois.

E no fim dessa história toda, ainda sei que a maior parte dos questionamentos será a respeito da minha conduta e não desses trastes.

Desejo parabéns a todas as mulheres que abdicaram de especializações, de saúde com o corpo, de viagens e momentos para si com o intuito de cuidar dos filhos.

E aos pais que são pais de verdade, que compartilham a responsabilidade ao invés de “ajudar”… vocês não fazem mais que a obrigação.

 


Carol Oliveira é mãe orgulhosa do Miguel

 

 

‘Voz a quem pariu’

A intenção da série “Vozes que pariram“, deste blog de crônicas, é tirar da invisibilidade histórias de lutas de mães, para provocar debate, reflexão e, quiçá, mudanças de mentalidade que melhorem as relações. Clique na foto da mãe com bebê para ler o texto de apresentação e envie sua contribuição se conhecer uma história que promova o objetivo deste projeto.

Voz a quem pariu

A garota de 20 anos estava escondida no quarto de casal da madrinha, enquanto esta conversava com o pai do bebê que crescia em seu útero. Só se lembra do homem por quem era apaixonada dizer, sem gaguejar, que não queria aquela criança… não assumiria. Simples assim.

Em outro dia foi a mãe dele que visitou a sua para dizer que o bebê podia ser de qualquer um.

Anos depois, quando já existia o exame de DNA, a mãe provou a paternidade do pai ausente, mas ele assumiu, pra si e para a própria família, que foi forjado… e sumiu no mundo para não pagar pensão.

Quando reapareceu, foi porque a avó do já pré-adolescente engoliu o orgulho em favor do desejo do neto de conhecer o pai e o procurou. A mãe concedeu. Pai e filho se conheceram. E só.

Não sei se foi falado a este pai sobre os anos de trabalho em dois empregos da mãe, do filho sendo criado por todos, dos conflitos que a criança vivenciou, dos perrengues financeiros que a família toda passou… só sei que ele ganhou de presente um filho crescido, que passou a ver de vez em quando.

Acompanhei de perto este caso, que é de minhas relações, mas preservo as identidades em respeito à relação entre pai e filho, que só agora começa a se consolidar.

Conheço muitos outros casos de pais que só se tornaram “presentes” depois dos filhos criados. Eles nunca são cobrados  pelos anos de ausência porque as mães amam demais seus filhos para privá-los do pai “pródigo”. Engolem seus sacrifícios mais uma vez…

Até quando? Eu me pergunto sempre que assisto a mais uma reportagem sobre a questão do aborto.

Nessas discussões, que sempre opõem religião x direitos femininos, nunca – salvo um comentário da amiga Márcia Intrabartollo em rede social – vi questionarem o papel do “doador do esperma” nas situações que levam uma mulher a tomar a dificílima­­­, dolorida (física e emocionalmente) e perigosa (clínica e criminalmente) decisão de abortar.

Até onde me informei até hoje, na maioria dos casos de aborto há por trás uma mãe abandonada ou um pai que fez pressão para não assumir mais uma boca para alimentar na família. Onde está a criminalização deles?

Tenho em torno de mim, em diferentes níveis de relações, vários casos de mulheres que assumiram os filhos sozinhas, e de outras que têm o pai de seu filho presente, mas “nos termos deles”.

São mulheres que têm jornadas triplas: no trabalho formal, em casa e na criação dos filhos. Algumas transformam-se irremediavelmente, como a do caso que narro no início deste texto. A jovem sonhadora e romântica deu lugar a uma mulher dura, irascível, implacável em suas relações. Forte sim… mas a que custos!

Recentemente, o depoimento de uma colega de profissão numa rede social me lembrou o quanto os sacrifícios da mulher na criação dos filhos ainda são invisíveis!

Decidi aí iniciar um trabalho para torná-los mais visíveis para, talvez – quem sabe? – contribuir para alguma conscientização e, quiçá, mudança de mentalidades (ah… esperanças… o que somos sem elas?).

A partir de agora, o blog “Palavreira” está aberto a depoimentos de mães que queiram contar suas histórias de lutas. Pretendo reuni-los numa seção que chamarei “Vozes que pariram“.

Quaisquer mães… solteiras, casadas, com pais presentes ou não, com parceiros que dividam ou não as alegrias (são muitas também, acredito!) e dificuldades de criar outro ser humano, que sintam-se discriminadas no trabalho, no grupo social ou o que o valha…

Não precisam se identificar. Podem usar codinomes (desde que eu saiba quem são) ou não usarem nome nenhum…

E se não se sentirem à vontade para escrever de próprio punho, me chamem. Vou até onde estiverem ouvir suas histórias para reproduzi-las em texto.

Só quero dar-lhes vozes, ampliá-las, fazê-las ouvidas…

Passou da hora!

 

P.S. Para me contatar, use o link para meu e-mail à direita na página.

Leia o primeiro depoimento da série

Sou uma mãe ‘do caralho’! (Carol Oliveira)

Tão simples que parece complicado

José Eduardo Gomes de Carvalho*

A ansiedade digital do século 21 fez da gente comum que sonha em ser feliz um alvo fácil para processos estressantes de sobrevivência, que geram pessoas crispadas e agressivas – e, portanto, infelizes. Daí que é automático concluir que a busca pela felicidade mais parece uma lenda. E o próximo passo é virar mito.

A desenfreada procura do ser humano pelo prazer e pela satisfação, ou pela felicidade, enfim, é tão antiga quanto a descoberta do fogo. É verdade que, em certos momentos de nossa vida, falar de felicidade parece um delírio diante dessa necessidade de terminar cada dia, cada mês, mas retomar essa busca sistematicamente pode ser uma saída para os males imediatos, nem que seja por míseros instantes.

Sábios pré-socráticos, filósofos de todas as correntes, acadêmicos e religiosos de vários matizes tentaram ao longo dos séculos dimensionar e tornar palpáveis fórmulas de felicidade, segredos da busca pela realização pessoal e pela convivência feliz. Foram esforços, na maioria, em vão, incluindo as peripécias dos milhares de picaretas da autoajuda, praga típica do mundo contemporâneo, instantâneo e fugaz.

Pois um psicólogo norte-americano, Daniel Gilbert, desconstrói alguns dogmas e derruba barreiras seculares para elaborar um plano de felicidade que não requer habilidades especiais nem grandes posses materiais. Gilbert, além de tudo um exímio argumentador, não se baseia em suposições, mas em minuciosos estudos de comportamento que tornaram as conclusões de suas pesquisas um conjunto de observações com alicerces na Ciência e não em pirotecnias impalpáveis.

PhD em Princeton e professor de Harvard, 60 anos, este pesquisador que abomina os manuais de autoajuda transformou-se num concorridíssimo consultor internacional de vários segmentos, em especial depois do mais lido de seus inúmeros livros publicados, que no Brasil, aliás, recebeu um título empapado de autoajuda, “O que nos faz felizes” (Editora Campus-Elsevier). No original se chama “Tropeçando na Felicidade” (Stumbling on Happiness).

Gilbert não faz suposições nem análises subjetivas. Seus levantamentos são diretos, atingem os alvos sem muito trololó, como a pesquisa com cinco mil pessoas de todas as idades e classes sociais que respondiam coisas como “o que faria você feliz neste exato momento?”, após um telefonema de surpresa – no trabalho, de madrugada, durante as férias. Para o cientista, não se trata de desprezar o que já foi feito por grandes cérebros da história. Ele preza demais, por exemplo, as distintas correntes hedonistas, que basicamente defendem a “felicidade que é simples”, a realização do indivíduo com as coisas básicas a seu alcance e sem nenhum malabarismo financeiro. Mas pondera que os estudos acadêmicos do mundo moderno, individualista e tecnológico, foram revelando, nem sempre para o bem, as atitudes de pessoas de todas as idades, crenças e situações sociais.

Do ponto de vista científico, que é o que interessa a Gilbert, é possível detectar perfeitamente, com os instrumentos à disposição dos estudiosos, o que é o conceito de bem-estar que mais se aproxima do mundo real. E as conclusões apontam para um panorama de surpreendente simplicidade para que a maioria das pessoas se sintam de fato felizes.

Nos resultados da equipe do especialista, quatro pontos são levantados como fundamentais para se atingir um estado seguro de felicidade: exercício físico, conversas/reuniões com amigos, música e sexo. São atividades que elevam corpo e espírito a um patamar de satisfação suficiente para compensar, com lucro, as mazelas da vida e abrir caminho para o equilíbrio pessoal.

Todos os outros itens eram de alguma forma ligados aos temas principais, tais como viajar, passear e conversar com os filhos, curtir os animais de estimação, consumir a comida preferida.

Do escopo da pesquisa não constavam questões nem respostas de alta especificidade, mas coisas como dinheiro, poder/prestígio, uma casa na praia, consumo exagerado ou um carrão da moda pouco apareceram quando as pessoas se referiam à felicidade duradoura.

Nas conclusões do grupo de Daniel Gilbert, o que ficou de mais representativo foi que todos os quatro requisitos para ser feliz podem ser atingidos a custo zero. Ao contrário, ficaram em segundo plano grande parte dos prazeres efêmeros/materiais, estes, sim, que podem custar o olho da cara.

Trata-se da velha diferença entre ter e ser. Tão escandalosamente simples que até parece complicado. É ou não para se pensar?

 

* José Eduardo Gomes de Carvalho é jornalista, “explorador do mundo”, mentor e amigo para toda a vida


 

Toda semana, às quartas, o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro(a)’ convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.

VEM PALAVREAR COM A GENTE!’

Passarinha, suricata ou um ventilador

Acordei de madrugada e me dei conta de que aquela era a 28ª cama diferente em que dormia nos últimos 28 dias, e a última. Não havia mais o que andar. Na manhã seguinte pegaríamos o caminho de volta ao Brasil.

Depois de ter passado por beliches, camas de campanha e de solteiro, a 28ª era de casal, como a primeira, e de certa forma essa situação fechava o ciclo. A mesma colega do primeiro dia dormia comigo, mas diferente da noite em Aosta em que tremi de medo, agora eu pensava na guinada que minha vida dera: estava “grávida”.

As estrelas me viam como um pontinho na cama de um B&B em Siena, na Itália, em um dos cinco continentes, na Terra, que pouco representa no Universo. Eu era nada mais do que um pó perdido de felicidade porque estava em uma cidade medieval incrível e tudo tinha dado certo. Não havia conseguido vencer o medo, mas o domara; não havia conseguido ser engraçada, mas estava mais leve; minha rigidez se movera só alguns milímetros, mas foi a brecha para uma expansão. E tinha pego barriga, estava prenhe daquela outra “eu”.

Fechei os olhos e me lembrei de dois dias antes, quando deixamos San Gimignano para trás. Andávamos de madrugada por uma cidade que se conservava igual há séculos, e eu pensava se outros peregrinos que pisaram aquele chão de 63 anos antes de Cristo tinham se metamorfoseado.

Agora também é muito cedo e desperto do primeiro sono de volta ao Brasil. Meu marido dorme. Fecho os olhos e San Gimignano volta: lá o céu enluarado estaria mudando de cor, passando de carbono a um azul Bic, com nuances cor-de-rosa. Uma ou outra padaria já começaria a abrir, enquanto grandes arbustos verdes já estariam se revelando nas muralhas.

É bonito ver a mudança de geografia, o sol nascer, o dia se pôr. A gente passa, o dia passa, o tempo passa, tudo vai mudando e a gente pensa que está igual. Daqui para frente, serão só lembranças e os cuidados com essa bebê que fica sendo constantemente gerada e parida. Chegará o dia em que só haverá sombra da Márcia anterior.

Para mim, a peregrinação pela Francígena foi um ritual de passagem. Eu andava frustrada com a comodidade que tinha dado para minha vida. Mantinha presa em uma torre a passarinha que eu sonhara ser. Naquele março de 2017, abri a porta da gaiola, pus uma mochila nas costinhas dela e mandei-a passear.  Foi para a Itália disposta a renascer.

Quando já tinha se passado um ano, meu sobrinho disse que pareço uma suricata. Uma semana depois, minha enteada afirmou que eu lembro um ventilador de piso. Dá na mesma… passarinha, suricato ou ventilador, um ou outro fica retinho e girando a cabeça de lá para cá, tentando dar conta de tudo.

Fiquei orgulhosa de passar essa imagem pois parece que estou conseguindo “ter o pasmo essencial que tem a criança, se ao nascer, percebesse que nascera deveras”. O Fernando Pessoa fala bem lindamente dessas coisas, mas, Lucas e Nágila, vocês foram tão certeiros e modernos que vou preferir as definições de vocês. Ganharam o dia, agora me aguentem…

Sigo em frente, e é para valer.


Queridos leitores que acompanharam carinhosamente a série Pé Dá Letra,

amigas peregrinas Adriana, Kele, Regiane, Renata, Sheila e Vera,

Silvia Pereira, que me abriu este valioso espaço no Palavreira,

minha mãe e meu amor:

agradeço a todos pelo apoio na minha jornada de autora!

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a última crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Eu Vi Gigantes, clique aqui.

 

Eu Vi Gigantes!

Quero me redimir da culpa de ter usado o nariz do Pinocchio para contar algumas histórias. Saibam que se misturei realidade com mentirinhas foi unicamente com a boa intenção de imprimir nelas um pouco da magia que permeava nossos passos. E já que estamos na penúltima crônica da série, vou revelar a vocês uma verdade sólida.

Eu vi Gigantes. Juro por tudo o que é mais sagrado.

Acharão que estou de brincadeira, mas não. Saibam que eles foram o acontecimento mais real e forte de tudo o que foi contado até agora. São mais vastos que os Apeninos, e têm nomes de mortais comuns: Karl e Vincent.

Karl jantou conosco em Chatillon e andamos juntos por dois trechos. Quando falou de nós em uma de suas postagens, disse ter dúvidas se éramos um grupo de brasileiras ou uma banda. Isso porque ele testemunhou momentos em que estávamos animadíssimas para cantar e dançar enquanto andávamos.

Karl é um Gigante inglês de presumíveis 65 anos, casado e pai de uma paratleta acometida por paralisia cerebral. Ao aposentar-se, impôs a si mesmo o desafio de andar 3.200 quilômetros de Windsor (Reino Unido) até Atenas (Grécia) para, com tal feito, angariar recursos para duas instituições: Cancer Research UK e Chance for Childhood. Andar por caridade era o que fazia por ali. Com posts e vídeos, chamava a atenção dos seus seguidores. Um Lord!

Diante de um coração tão generoso, fiquei miúda. Diante de alguém com um propósito tão forte de doação, que cede e faz pelo outro, pensei no quanto é possível se expandir.

Foi o primeiro Gigante. Veio para ensinar.

Como os semelhantes se atraem, não demorou para o segundo gigante juntar-se a nós.

O Vincent era um holandês que apareceu do nada no trecho de Vèrres. O lógico seria que nos ultrapassasse e seguisse seu rumo. Devia ter uns 30 anos ou nem isso. Depois explicou que reduziu seu ritmo ao mínimo porque estava precisando da alegria que tínhamos de sobra. Isso fez com que andasse conosco um dia e meio, até desistir de nossa lerdeza.

Vincent era o Gigante maior porque estava lutando por sua própria vida. Tinha uma doença grave que o obrigava a tomar medicamentos diariamente, pois seu intestino não absorvia os nutrientes. Ele podia passar mal a qualquer momento, mas estava andando sozinho e percorria cerca de 50 km por dia.

Tinha fé –  muita fé – de que se saísse da Holanda e seguisse até Jerusalém, abrindo mão da medicação no trajeto, se curaria.

Você já olhou nos olhos de alguém de pupilas pretas que brilham quando diz que tem fé de que vai se curar enquanto anda, prescindindo dos remédios, arriscando-se a não ter socorro caso passe mal? Já sentiu que sua alegria efêmera podia ser um bálsamo para alguém vivendo tamanho drama pessoal? Já torceu intensamente para que o Deus dos Gigantes ouvisse aquelas preces?

Mais uma vez, diante de um coração tão valente quanto aquele, fiquei miúda. Diante de alguém com o forte propósito de defesa de sua vida, que enfrenta os problemas e age por si mesmo, pensei no quanto é possível expandir-se.

Foi o segundo Gigante. Veio para ensinar.

Pinocchio, aqui a magia deu-se por outras vias. Conhece Belchior, seu filho de carpinteiro? Dizia ele que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Deve ter visto gigantes também.

 

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta é a nona e penúltima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para saber mais sobre a viagem que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior da série, Carta para a Menina Helena, clique aqui.

 

Carta para a Menina Helena

Um dos quadros integrantes da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017

A Helena é filha da Marina, que é filha da Sheila, que é irmã da Adriana, e ambas filhas da Maria José.

Uma linhagem de mulheres (fortes!).

A Sheila e a Adriana são peregrinas, gostam de andar pelo mundo. Isso começou em 2014, quando trilharam o Caminho de Santiago e a Helena era ainda uma bebezinha. Não entendia direito de ausências.

Mas o tempo passou – criança cresce rápido – e quando as duas irmãs resolveram trilhar a Via Francígena, em 2017, a menina precisou ser preparada para entender a falta da avó naquela casa sempre tão cheia de Sheila.

Na tarde em que chegamos a Fornovo, a Sheila e a Helena se falaram por Skype. A Sheila disse:

“Olha, Helena, a vovó está te mostrando a paisagem daqui. Tem montanhas, tem ovelhinas lá embaixo. Já já a vovó vai dormir, porque aqui são 10h da noite, Helena!”

Mas a Helena já sabia muito bem que pra ser noite o céu tem que estar escuro.

“Vovó Sheila, você errou. Agora não são 10h da noite. Eu estou vendo, ainda é de dia, vovó. Você não vai dormir agora!”

Puxa, a singeleza das crianças!

É claro que a Sheila explicou que no lugar onde ela estava o dia corria diferente, não escurecia naquele horário. E foi então que a Helena pediu um presente daquele lugar exótico.

A Sheila já vinha pensando nisso. Por toda a cidade que passava, procurava um presente para a Helena e outro para decorar a casa nova da Marina. Não achava nada que fosse interessante o suficiente, que coubesse na mochila e não pesasse.

Passados uns dias, chegaram a Lucca, uma das cidades medievais mais turísticas da Itália. Lá a Sheila encontrou o presente da Helena e o guardou bem guardadinho para entregar a ela na volta para casa.

O mais bonito mesmo foi como uma exposição de quadros, com que cruzou inesperadamente, inspirou a Sheila a escrever uma cartinha para a neta, que postou via Face.

Dizia assim:

Quadro integrante da exposição na torre de Lucca, em julho de 2017, que mostra o nariz comprido do Pinocchio

“Minha linda Helena,

Hoje a vovó visitou a cidade do Pinocchio de verdade!

Ele nasceu e viveu num pequeno povoado que pertence à região de Lucca, chamado Collodi. Aqui em Lucca, onde a vovó está, tem Pinocchio pra todo lado, em diversos tamanhos e formatos… muito lindinhos!

 Ahh… e tem muitas torres altas, parecidas com a torre da Rapunzel, acredita?

Então, resolvi subir em uma e descobri uma exposição com quadros do Pinocchio (muitos pintados por um artista local, com várias cenas da história do menino de madeira).

Fotografei alguns quadros só para você!!!

Tenho certeza que você verá essas e outras maravilhas do mundo com os seus lindos olhos amendoados um dia… muitos beijinhos.”

Diz a Marina que Heleninha adorou!

O curioso é isso: ser criança para fazer as coisas de adulto, e depois de adulto ver a vida com olhos de criança. Naqueles dias, tantas vezes, ao nadarmos no riacho, arrumarmos nossas lancheiras, brincarmos de mapa, vestirmos nossos uniformes ou jantarmos varadas de fome após chegarmos sujas em casa, alcançamos o estado de graça de voltarmos no tempo.

 

 

Esta é a oitava crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de  Pontremoli a Lucca, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, A Vareta do Diabo, clique aqui.

A Vareta do Diabo (uma ficção delirante)

“Sheila, prefiro ir com você pela floresta, não com elas pela estrada”.

“Ótimo. Vamos ver qual equipe chega primeiro a Pontremoli!”

“Elas, claro. É muito mais fácil ir pela estrada. Você sabe o caminho?”

“Fotografei este trecho do guia do alemão. Diz que é bem marcado, basta seguir as indicações.”

“Mas já faz tempo que a gente está andando e não vi nenhuma placa da Via Francígena.”

“O caminho é este mesmo, não teve outra trilha cruzando.”

“O que diz o guia?”

Trilha na floresta entre Berceto e Pontremoli, úmida, perfumada, a mais linda.

“Deixa ver… diz que alguns quilômetros depois da cidade de Berceto encontra-se o portal do parque floresta, que faz a divisa com a Toscana. Já fizemos isso. Depois segue-se por um bosque de árvores altas e então passa-se por uma pequena casa.”

“Acabamos de passar pela ruína de uma casa. Seria essa?”

“Deve ser. Depois há um mirante e a seguir um riacho. Depois do riacho começa a área dos cogumelos Funghi Porcini, que dão muito por aqui.”

“Olha lá na frente, Sheila, é o riacho! Se os cogumelos vierem depois, estamos no caminho certo! Nunca vi Funghi Porcini…”

“Ei, Márcia, que riacho bucólico! Vamos tirar umas fotos? Olha… na árvore tem uma placa dizendo que colher cogumelos dá prisão. Que horror!”

“Um exagero! Tem tanto cogumelo aqui que mais parece uma plantação! Iuhuu, estamos no caminho certo!”

“Não disse? A certeza me deu fome. Vamos parar para lanchar?”

“Já comi  todo o meu lanche andando. O que eu preciso agora é de um banheiro.”

“Os cogumelos estão aí pra isso, Márcia.”

“Pra lanchar? Está doida? Não viu que dá prisão?”

“Eu quis dizer que dá para fazer de banheiro na região deles!”

“Tem razão. Vou até onde sua vista não me alcance.”

“Marcinhaaaa… por que está demoraaaando?”

“Não estou ouvindo direeeeito!”

“Está tudo bem?”

“Ótimo, Sheiloca!”

“Ótimo… onde já se viu? Como pode ser ótimo?”

“Cheguei!  Sheila, você precisa ir para ver o que eu vi. Mais pra frente aparecem uns cogumelos super diferentes…”

“Estou comendo. Só quero ver esse ovo gostoso dentro do meu pão.”

“Você só pensa em comer… Mas se eu te contar o que vi, você vai correr para lá…”

“Não quero saber, está proibida. Preste atenção, temos uma longa descida e então avistaremos a cidade. Mas vamos passar por uma pedreira onde será preciso cuidado porque diz que tem muitas pedras soltas e o tempo está fechando.”

“Ok. Pra frente é que se anda. Fui.”

“Ih, comi com tanta fome que estou ameaçada de ter um piriri.”

“Vai nos cogumelos e aproveita para ver os que eu vi…”

“Marcinha, você comeu algum cogumelo? Porque parece que está tendo barato… já disse que não vou voltar para trás…”

“Não comi, mas não tiro aqueles da cabeça. Vamos voltar, Sheila, você tem que ver…”

“Não vou subir tudo isso de volta só porque você quer.”

“Você devia ver… eles têm um formato…”

“Do quê?”

“Formato ereto.”

“Você deve estar delirando…”

“Veja com seus próprios olhos. Têm formato fálico!”

“Não vou voltar, papo findo. Se perdi a oportunidade de ver, paciência. Já descemos uns três quilômetros e não vou subir de volta.”

“É que eu me arrependi de não ter aproveitado os cogumelos, e você podia mesmo voltar lá comigo.”

“Eles não podem ser comidos. Que insistência!”

“Não quero comer, Sheila, quero cheirar… é uma oportunidade de ouro.”

“Ah! E por que não fez isso quando estava lá?”

“Porque estava ocupada, mas acho que o cheiro deles me pegou…”

“Eu não vou cafungar cogumelos, já estamos na pedreira! E se concentra para não escorregar nessas pedras. Acho que essa história de cheiro deixou você biloló, Márcia. Até melhorei só de rir das suas asneiras. O que você fez com os cogumelos, afinal?”

“Quer saber mesmo? Eles me fizeram lembrar do maldito João, aquele sacana que me traía com a Silvia que estudou com a gente?”

A imagem diz quase tudo

“Como esquecer?”

“Fiquei com tanta raiva da imagem do João me atrapalhando em um lugar tão perfeito, que arranquei o cogumelo e o pisoteei com vontade, até ver que ele ficou bem esmagado. Descarreguei toda a minha raiva nele e estou me sentindo vingada!”

“Que nojo de você! Parece um bicho… onde já se viu? Não dava para controlar sua raiva por uma coisa que já rolou há tanto tempo? E ainda fica insistindo em voltar…”

“É que o cheiro que ele exalou me provocou… você é muito certinha, credo!”

“Não sou. Tanto que se fosse para eu me vingar do Abílio por causa daquela loirinha que ele arrumou, eu precisaria de uma faca para fazer picadinho do cogumelo. Que ódio dele! Estou considerando voltar…”

“Ah, só que agora estamos chegando em Pontremoli e já começa a pingar!”

“Você não regula bem. Márcia. Primeiro você quer voltar, e quando eu concordo você puxa o breque…”

“Você que enrolou! Sabe que eu sou diversão garantida, devia ter voltado…”

“Só eu sei! Márcia, queria combinar uma coisa com você. É sério. Essa história tem que morrer aqui. Não quero que você conte por aí, podem pensar mal da gente…”

“Posso publicar no blog Palavreira, vai fazer sucesso!”

“Não brinca, não. É segredo nosso. Vamos, Marçoca, já está anoitecendo.”

“Essa já é a rua do hotel. Olha o luminoso dele à direita!”

“Boa. Vamos atravessar! Escapamos da chuva por pouco.”

A bela Pontremoli, vista da ponte.

“Sheila, fica aí fazendo o check-in que eu já vou para o banho.”

(…)

“Você demorou muito nesse banho!”

“Delicioso.”

“Estou pesquisando no Google sobre cogumelos dessa região.”

“Achou a foto do funghi porcini?”

“Achei, e não parece com sua descrição… o que você viu foi outro…”

“Qual o nome do meu?”

“Veja a foto e diga se foi este…

“Sheiloca, é esse mesmo, exatamente!”

“Reparou no nome?

“Não…

“Phallus impudicus… Larga o celular que eu vou ler um detalhe para você: o cheiro asqueroso de algumas espécies do phallus impudicus  é afrodisíaco para as mulheres”.

“Olha, por isso eu fiquei…”

“Ele também é conhecido como a Vareta do Diabo. Isso diz alguma coisa?”

“Senti uma raiva demoníaca do João.”

“Nada disso, Marcinha. Isso significa que se você pisoteou a Vareta do Diabo, com certeza o coisa ruim está puto com você… Você vai ser castigada…”

“Aturar você já é castigo suficiente e o diabo tem mais coisas com que se preocupar. Vamos dormir, Sheila.”

“Boa noite. O dia de hoje entra para a história.”

“Entra, mas tem que ficar no puro sigilo. Pode deixar que não vou palavrear por aí. Boa noite para você também.”

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora


 

Esta invencionice da autora é a sétima crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Foi feita durante o curso da Escola de Escrita Inventiva. Para ver as fotos do trecho de Berceto a Pontremoli, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, Chocolate com Pistache, clique aqui.

 

Chocolate com pistache

De chocolate com pistache foi meu brioche do café da manhã. Um abuso! Mas era ele ou a fome. Depois me perguntariam se eu tinha perdido peso por andar 700 km, mas de que jeito se emagrece comendo essas coisas?

Poucos minutos antes, 6h30 da manhã de um domingo, éramos vistas paradas em uma esquina da cidade de Pavia, com nossas mochilas e chapéus, sem perspectiva de encontrar um lugar onde tirar a barriga da miséria. Quem, em um domingo europeu de uma cidade turística relativamente pequena, abriria uma cafeteria ou padaria àquela hora?

A brasileira metade holandesa que estava conosco alertava que tínhamos errado o planejamento e por isso estávamos naquela penúria. Aliás, parêntese para dizer que os europeus têm fama de nem sempre trabalharem aos domingos e ainda fazem sesta diariamente!

Estávamos com um problemão, pois como poderíamos seguir até a próxima cidade se saco vazio não para em pé? Tínhamos bobeado no dia anterior vendo uma apresentação musical na praça e, quando chegamos ao mercado, estava fechando as portas.

Por isso, quando ouvimos um barulho de motor e vimos a porta de ferro de um bar chamado Room 46 se abrir automaticamente à nossa frente, nos sentimos agraciadas por um milagre. Tínhamos parado por acaso naquele endereço da Via Dei Mille.

O lugar tinha cara de “night”, mas ele se abriu, e por causa disso esta crônica ganhou aroma de café, baunilha e pistache. Ah, e ela também está levemente mais aquecida pelo calor do forno, que também derreteu as defesas do meu corpo.

Chegue mais perto da tela para sentir que aroma!

O Room 46: bar à noite e cafeteria de manhã

Eu, tão acostumada a um pão com manteiga e café com leite no café-da-manhã verde e amarelo, vi uma vitrine cheia de brioches, e isso foi tudo o que passei a desejar: a delicada doçura daquelas iguarias de chocolate, pistache, baunilha, frutas vermelhas ou mesmo sem recheio, à escolha do freguês.

A vontade de encher minha boca com aquela iguaria tomou conta de todos os meus órgãos, que faltaram congelar naquele único momento de desejo de um sabor doce, quente e com certo tom de canela.

Disputávamos entre nós mesmas a vez de fazer o pedido no balcão daquela cafeteria alternativa.

Pedido feito, nos sentamos ansiosas nas cadeiras pretas da mesa preta, no bar moderno de parede de tijolos à vista e iluminação amarela, como crianças esperando um pedaço do bolo de aniversário. Nossos pedidos foram trazidos aos poucos, desobedientes à ordem em que foram feitos.

Primeiro veio o pedido da Adriana, o leite quentinho, o brioche cheiroso… Dissemos: “pode começar, Dri”, e ela começou, bem diante de nossas lombrigas e olhos esbugalhados.

Depois veio o da Renata. Ela se ajeitou na mesa ritualisticamente, esticou o pescoço e foi levando aquela delícia até a boca em câmera lenta.

Virei meu rosto e vi chegando mais uma bandeja. Eram os dois brioches da Kele, mais seu café ao leite. “Podem se servir, meninas”, ela dizia, mas nós sabíamos que aceitar significava devorar e seguramos nossa onda. Ela partiu seu brioche ao meio e vi escorrer dele o chocolate derretido… ai… e parece que ao fundo ouvi sua voz dizendo “vocês vão me desculpar…mas vou comer, então”. Coma, Kele!

A Regiane levantou-se nervosamente. Estava difícil lidar com aquilo. Foi ver o que estava acontecendo com o pedido dela. Voltou vitoriosa. Tinha tomado posse da sua bandeja e do pedido da Sheila. Agora só faltava a minha.

Eu tantas vezes vi gatos aos meus pés querendo o leite denunciado por aquele faro deles, os miados nervosos, mas eu não dava. Agora, de castigo, eu era a gata (auto-elogio) ronronando pela comida que o garçom não trazia para mim.

Aí chegou o meu pedido. O lugar estava cheio de senhoras conversando e de solitários, e a TV anunciava alguma coisa sobre o Hitler… Olhei para aquilo à minha frente e fechei os olhos para sentir. Vegetarianos têm olfato muito bom. Depois vi que a Adriana e a Renata me observavam. Dei um gole no café e então mordi meu brioche de chocolate com pistache. Um abuso! O melhor da vida. Foi um daqueles sabores que entraram na minha lista.

Infelizmente, não tínhamos tempo para mais um.

A ponte Coperto, cartão postal de Pavia

Agora precisávamos andar até Santa Cristina e, antes, encher os camel-back. Achamos uma bica no mesmo ponto onde tínhamos chegado no dia anterior de Garlasco, após andarmos por muitas horas às margens do rio Ticino. Agora o atravessávamos pela ponte Coperto, que divide a parte turística de Pavia de onde nos hospedamos.

O sol suave anunciava um dia lindo e a cidade ainda estava se levantando. Andamos por suas ruas silenciosas. Era mesmo uma cidade muito agradável! Sua luz ficou na memória, com o sabor doce e o brilho do rio.

Pavia, não saia daí. Um dia eu volto.

 

Márcia Intrabartollo é jornalista, peregrina e
aprendiz de escritora

 

 

 

 

 

 

Esta é a sexta crônica da série Pé dá Letra, publicada no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela via Francígena, em 2017. Para ver fotos e saber mais sobre o trecho Garlasco-Pavia, onde se passa a história abaixo, visite o Peregrinas Mundo Afora

 

Clique no link para ler a crônica anterior, O aniversário da princesa Kele.

O Aniversário da Princesa Kele

Não era um aniversário comum. Era o primeiro que eu passaria longe de minha família, amigos e do meu parceiro de vida. Desta vez, eu estaria na Itália, em uma viagem que, quando decidi fazer, não sabia o que e quem iria encontrar pelo caminho. Pesava deixar o conforto dos abraços das pessoas que eu mais amava.

O desenho do convite para meu aniversário foi arte da Sheila. Era bem divertido e tinha até coroa. Anunciava que a festa seria em um Castelo. Convidei várias pessoas do Brasil e durante a semana planejamos como seria a festa, repassando as pompas que um bom banquete merece.  Talvez usássemos a festa como artifício para esquecer o peso da mochila e aliviar o calor que o sol ardente provocava em nosso corpo, nos deixando “em bicas”.

Enquanto as peregrinas se preocupavam em decidir o que poderia ser meu presente, viajávamos dentro da viagem. “Que tal esse tênis branco, de brilho e peninhas, Kele?”, indagava a Sheila olhando a vitrine. A Regiane já tinha resolvido o seu, com minha concordância, e carregava há dias um presente pesado e ansiado: uma sombrinha.

Eu estava empolgada com a comemoração!

Investimos boas horas no planejamento de como fazer a festa na cidade que ainda não conhecíamos… quilômetros discutindo como organizar no Castelo de Orio Litta minha festa de aniversário. Foi uma alegria quando descobrimos que a cidade tinha, sim, um castelo!

Na manhã de 3 de julho de 2017, fui acordada com o “parabéns” animado das amigas que passaram a ser minha família, minhas parceiras e companheiras de aventura.

Deparamo-nos com um problema: se repetíamos nossos figurinos dia sim, dia não, como diferenciar nas fotos o grande dia do evento no castelo? A ideia que deu super certo foi colocarmos flores no cabelo, traduzindo para as fotos a importância da data. Ficou tão bom que até saímos no magazine da Francígena com o look.

 

A florzinha do campo enfeitou a princesa Kele

 

Sheila, princesa Kele e Renata acha minha de cima; Márcia, Adriana e Regiane na de baixo.

Ganhei flores e ainda pela manhã veio outro mimo: as peregrinas se revezavam por trechos carregando minha mochila, para que eu desfrutasse melhor o meu dia de princesa.

O trecho que percorreríamos era de Santa Cristina a Orio Litta, uma comuna italiana com menos de 2 mil habitantes. A maioria das cidades por onde passamos e nas quais nos hospedamos eram pequenas, e essa não seria diferente se não trouxesse a grande expectativa de ter sido escolhida como o local da comemoração.

A essa altura eu já estava carregada de histórias e lembranças das pessoas que passaram por mim e deixaram um tanto delas comigo. Como esquecer do presente dos donos de um mercado justamente naquele dia? Biscoitos champagne, xícaras de café quente, água… em troca disso, pediram que rezássemos por eles quando terminássemos o caminho… Comemos tudo com a fome dos simples, sentadas na calçada, sob um sol límpido.

Nenhuma outra pessoa passou por nós naquele trajeto. Éramos só nós seis, e nossa alegria enchia o caminho.

Já nos aproximávamos da cidade quando uma bicicleta veio em nossa direção. O ciclista, esbelto e simpático, logo nos mostrou o celular com a foto de nossas duas amigas, Adriana e Renata, que apressadamente lideravam e abriam nosso caminho e já tinham cruzado com ele. Apresentou-se como Luigi, nosso anfitrião, e não hesitou em tirar uma foto com nós quatro e entregar uma grande chave: “a cidade é de vocês”.

Achei exagero, mas como presente não se recusa, recebemos de bom grado uma chave do Castelo.

Realmente, fazia vista o deslumbre da construção que se ergueu diante de nossos olhos! A surpresa foi maior, no entanto, ao percebermos que era o local onde nos hospedaríamos! Da torre do castelo nos acenava a Renata, com ares medievais.

Na torre do castelo, a Renata, enquanto a princesa Kele (ao centro, de preto) sorri…

Nosso hospedeiro, Luigi, ao saber que era meu aniversário e para demonstrar sua fidalguia, apressou-se em me presentear com um bom vinho italiano e, sem cerimônias, aceitou participar de nossa grandiosa festa logo mais.

Quando caiu o sol – que também se atreveu a dar espetáculo ao se pôr, impecável -, a Marcinha encarregou-se da decoração com flores colhidas, e a Regiane, que tantas vezes me tratava como filha, conferiu se havia taças para todos, separando para mim a mais requintada delas.

Sheila cuidou do cardápio, abrilhantou-o. Foi a primeira vez que comi seu famoso risoto de peras com gorgonzola.

A Adriana protestou – queria cerveja e não vinho – mas não demorou muito a se render à harmonização dos brindes e sorrisos dispendidos naquele encontro. Ah, ela foi a DJ: Legião Urbana na festa da princesa.

Apesar do convite ter rodado muitos grupos de WhatsApp e muitos amigos brasileiros terem sido convidados, compreendi as ausências justificadas pelos inúmeros quilômetros que nos distanciavam. Responderam-me com carinhosos parabéns, “mas desta vez não vai dar, Kele”, ou “não tenho como viajar agora, Kele”, ou ainda, “quando for em um Castelo mais pertinho eu juro que vou, amiga”. Não faltaram mensagens, vídeos, “parabéns” dos que faltaram.

O Luigi acabou sendo, então, o único participante externo da festa de aniversário no Castelo… e também o mais ilustre. Era o equivalente ao prefeito da cidade! Além disso, era também um exímio ciclista e professor de uma escola infantil. Com tanto ecletismo, não faltaram assuntos no jantar, que se estendeu por deliciosas horas, graças ao inglês impecável e elogiado da Renata.

Um resumo das convidadas e dos presentes da princesa

Os presentes não eram muitos nem pesados (uma condição!), mas valiosos, incríveis! Os cremes, os colares e a sombrinha – ah, a sombrinha! – foram úteis e fizeram os dias seguintes serem mais coloridos e perfumados.

Naquele aniversário eu não me senti mais velha. Talvez tenha experimentado um sentimento nômade e um transbordar de vida que independe de idade.

A certeza que tenho é que aquele dia foi vivido intensamente e aqueles presentes e presenças encantaram, temperaram e transbordaram minha alma.

A minha gratidão às minhas amigas ainda ecoa em mim, por terem feito de um dia, uma história. É esta a história que agora divido com vocês, exatamente um ano depois.

 

Galeria de fotos
(clique em qualquer uma para ampliar)

Kele Morais  funcionária pública, peregrina e… princesa

 

 

Esta é a quinta crônica da série Pé Dá Letra, publicada aqui no Palavreira toda quarta-feira, com histórias inspiradas na peregrinação de sete brasileiras pela Via Francígena, em 2017. Para ver as fotos do trecho de Santa Cristina a Orio Litta, que inspirou esta história, visite o Peregrinas Mundo Afora no Facebook.

Para ler a crônica anterior, “O Uivo do Monstro”, clique aqui