Não me lembro exatamente da primeira vez que conheci.
Sei que a simpatia foi imediata.
Saquei de cara que seu jeito quieto e sério escondia uma ternura caudalosa que lhe saia pelos olhos.
De rotinas sólidas, por anos Seo Dema acordou sempre à mesma hora, tomou seu café na mesma cadeira da mesa da cozinha, leu os dois jornais do dia – um nacional e um local – e foi trabalhar.
Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação.
Não era de reclamar de nada. Os filhos afligiam-se por isso, pois enxergavam, às vezes, abusos de quem sabia aproveitar-se de seu temperamento humilde e trabalhador.
Também viviam comentando que nunca foi de conversar. Mas era, sim, de gestos, reparei logo.
Meu marido conta, emocionado, das idas para o sítio em sua infância, quando o pai fazia questão de parar no início da trilha de terra entre os canaviais, descarregar a bicicleta e ir guiando o carro na frente, com filho feliz da vida voando pelos barrancos de seu bicicross particular.
O sobrinho lembra com carinho de quando quis treinar futebol contra a vontade do pai e o tio ofereceu-se para ser seu motorista. Aparecia sempre pontualmente para pegá-lo em casa, acompanhava o treino inteiro e o entregava são, salvo e feliz aos pais.
“Quando aposentou-se, calou a ansiedade no peito
e afogou nos livrinhos de cruzadas sua desorientação”
Tudo sem uma palavra. Apenas uma presença mansa, constante… e os olhos ternos.
Crescidos os filhos, cada um pra sua casa, surpreendia-os durante as visitas deles limpando o carro de um antes que acordasse; enchendo o tanque de gasolina do outro sem que percebessem. Chegando no endereço dos pais um imposto de qualquer filho, ele corria ao banco pagar.
Não era para agradar. É que precisava colocar pra fora de alguma forma o carinho que represava no peito. Era sua forma de “amar” sem precisar falar.
Quando sabia que um filho estava pra chegar de visita, ia para a frente da casa esperar. Não saudava. Abria o portão e cumprimentava como se tivesse acabado de vê-los e entrava junto. Mas nos sentíamos bem-vindos.
E quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio.
Também não conversava muito comigo, mas nem precisava.
Um dia, o vi cuidando de uma família de passarinhos que montou ninho no xaxim de planta que descia pendurado do teto da área de serviço. Minha sogra contava que ele os visitava todos os dias, zeloso dos filhotes que a mãe-passarinha alimentava.
Saquei de uma máquina com lente zoom que trazia emprestada e emparelhei com ele pra “assistir” o ninho. Quietinhos, respeitando a distância, esperamos a família se acostumar com a companhia e disparei a fotografar.
“quando íamos embora, doía ver o olhar de ternura
nublado de despedida. Tudo sempre em silêncio”
Como ele não sabia sequer entrar no computador à época – depois que o descobriu, virou habituè do jogo Paciência na tela -, imprimi a melhor foto e confiei a meu marido entregar.
E esqueci.
Em uma de minhas visitas seguinte, muitos meses depois – demorava pra voltar por causa do trabalho –, admirei um quadro de passarinhos pregado na parede atrás da sua cadeira predileta. Não reconheci de pronto, mas ele veio logo em meu socorro. “É a foto que você fez”.
E me senti assim envolvida naquele mar de ternura que até então eu só assistia de longe, feliz de sentir-me no rol dos merecedores de seus gestos.
Em suas últimas semanas, ele não pode mais sentar-se. Não conseguia nem falar e os olhos de ternura quedavam, às vezes, inexpressivos, outras doloridos. Tentava falar às vezes, mas a voz não saía. O que será que diria?
Impotente, só rezo pra que tenha lido em nós todo o amor que líamos nele, para que seu olhar parado signifique que enxerga os anjos que devem estar a velá-lo e para que descanse em paz.
- ao meu sogro, com carinho, aonde estiver.