Compaixão e voluntarismo

A cabeleireira e protetora de animais independente Ione Vigatto

Desde que foi iniciada a quarentena em Ribeirão Preto, há cerca de dois meses, a cabeleireira Ione Vigatto não recebe um centavo de rendimento, pois só ganha se trabalhar. Também não tem uma reserva financeira que custeie suas contas a longo prazo. Mas ela não está exatamente preocupada consigo mesma. O que a fez cadastrar-se no Projeto Guarda-Chuva foi o medo de não ter como alimentar os seis cachorros dos quais cuida atualmente, na casa que divide com a mãe, no bairro Campos Elíseos.

Protetora de animais por vocação, Ione é sempre lembrada quando se trata de vítimas de maus tratos. Não descansa até resgatá-los dos agressores. Em seguida, ela os recupera e trata até lhes arranjar novos lares, mas só os cede para adoção após certificar-se de que os candidatos a tutores são responsáveis e amam animais. Do contrário, permanecem sob sua carinhosa guarda indefinidamente.

Este está sendo o caso do lhasa Pingo, que a protetora resgatou das garras de uma pessoa que lhe dava surras com cabo de vassoura. “Por conta disso, ele não tem os dentinhos superiores e inferiores da frente”, conta. Outros três cãezinhos da raça beagle ela salvou de serem mortos a golpes de barra de ferro – “enfrentei a pessoa e resgatei os três”, conta. Um deles já foi adotado, mas a fêmea Sofia e o macho Jeyk continuam com ela.

Ione também tem as mestiças de pinscher Thytinha e Donny, que ganhou. Adotou a vira-lata Raja, que lembra um pastor alemão no tamanho e tem pelagem caramelo toda rajada – “Linda”, derrama-se. Ainda trata animais de rua e socorre atropelados – tudo às suas próprias custas. Por isso desesperou-se quando, poucas semanas após o início da quarentena, percebeu que não conseguiria renovar seus estoques de ração. “Não consigo ver meus animais com fome. Para mim pode até faltar algo, mas para eles, não! Quando não estou trabalhando, não tenho de onde tirar, pois não conto com ajuda de ninguém”, explica.

No dia seguinte à constatação, Ione viu na rede social Facebook uma postagem sobre o Projeto Guarda-Chuva propondo troca de trabalhos. Cadastrou-se imediatamente, oferecendo seus serviços de cabeleireira em troca de ração para os animais. Quando checou seus e-mails novamente, viu a resposta de uma das envolvidas no projeto, Sandra Molina, solidarizando-se com sua demanda. Poucos dias e duas conversas por telefone depois, Sandra estava entregando, na casa de Ione, dois sacos de 15 kg de ração cedidos pela AVA (Associação Vida Animal).

“Que Deus abençoe muito as pessoas envolvidas neste Projeto Guarda-Chuva e na AVA”, repetia Ione, agradecida, enquanto dava entrevista para esta reportagem. Mas não pensem que só os seus animais se beneficiaram da doação. A cabeleireira doou metade de um dos sacos de ração ao novo dono do beagle que acabou adotado. Outro tanto foi para uma cuidadora de animais em pior situação financeira que a sua. “Se sei de vizinhos ou conhecidos que precisam de ração, também doo. Não sei como vai ser quando acabar, mas sei que, de alguma forma, Deus proverá”, profetiza.

Atualmente, Ione luta para resgatar um shitzu vítima de maus tratos e está precisando muito de uma casinha de cachorro grande, para atender o casal de beagles que ficou.

AVA

Instituição sem fins lucrativos, que cuida de cães e gatos em Ribeirão Preto, a AVA tem sede própria à rua João Ramalho, 179 – Campos Elíseos. De lá, ao lado de outras ONGs e instituições, propõe políticas públicas para a causa animal, promove atendimento veterinário a preços populares, organiza mutirões de castração e eventos para adoção, mas também depende muito de doações.

Segundo uma de suas diretoras, Cristina Dias, foi uma sorte que, quando Sandra Molina perguntou se tinham como ajudar Ione, a ONG havia acabado de receber doação de uma indústria de ração. “A Sandra foi buscar e entregou, o que é uma grande coisa, porque tudo custa, até essa logística de transporte”, comenta.

Professora universitária, doutora em História e contribuinte em várias ONGs (a AVA entre elas), Sandra é, acima de tudo, uma idealista. Ela integra o grupo de membros do IPCCIC (Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais), que teve a ideia do Projeto Guarda-Chuva, e foi quem fez a conexão entre a necessidade de Ione e a ajuda da AVA. Diz que viu na cabeleireira o retrato de muitos brasileiros com compaixão suficiente para ajudar necessitados, humanos ou não. “No caso da Ione são os cachorros. Quando fui levar, fiquei impactada com o trabalho dela. Depois eu soube que ela repassou uma parte da ração que recebeu para outras duas famílias. Isso é o que as Ciências Humanas chamam de alteridade. Não interessa o que você pensa politicamente, se você quer ajudar, tem como”, comenta.

Sandra acredita que o Guarda-Chuva vem atender não só pessoas carentes de ajuda, mas também as que querem ajudar mas não sabem como. “Não é que os brasileiros não se importam [com quem precisa], muitos deles não sabem por onde começar. O Guilherme [jornalista, que também integra o IPCCIC] levantou isso e a gente se uniu para pensar em uma coisa para as pessoas se ajudarem nos moldes da economia sustentável. Começamos a pensar na ‘moeda verde’, que usa muito o escambo e estamos trabalhando”, conta.

Com mais de um mês de atuação, o projeto tem ajudado muitas pessoas a se ajudarem umas às outras. Todos são bem-vindos.

1 comentário

    • Ione Gomes Vigatto em 19 de maio de 2020 às 18:09

    Obrigado a todos que me ajudaram, Sandra pela agilidade em socorrer meus filhotes , a AVA por ter fornecido essa ração . Ajuda essa que se estendeu a outras protetoras individuais. Silvia Pereira, brilhou com mt competência em expôr aos leitores essa reportagem. Deus abençoe ao Projeto Guarda Chuvas, seus criadores e participantes, neste momento de pandemia .

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