Woody Allen ainda vai bater algum recorde ou ganhar um prêmio como o cineasta que mais usou o cinema como espelho… digo, como seu próprio divã. “Tudo pode dar certo” (Whatever Works, EUA/FRA, 2010) não é o primeiro (e, suspeito, não será o último) a ter como protagonista um alter ego seu. O deste filme é Boris Yellnikoff (Larry David), um intelectual rabugento com um mau humor só proporcional a seu estratosférico ego – ele acha que é o único a entender o caos do universo. Seu cotidiano de catedrático aposentado e divorciado muda radicalmente depois que a jovem sem teto Melodie Celestine pede abrigo em seu apartamento e vai ficando indefinidamente.
Evan Rachel Wood está ótima no papel da interiorana burrinha, que, em dado momento, começa a achar a companhia de gente de sua idade um porre. Ainda se descobre apaixonada… adivinhe por quem? Uma pista: qualquer semelhança com a relação do diretor com a ex-enteada Soon Yi, 30 anos anos mais nova, NÃO É mera coincidência.
Referências à parte, dá para se divertir com as situações bizarras que Allen cria para a fauna de personagens que vão povoar a vida do casal. Um exemplo são os pais de Melodie, que chegam à metrópole em diferentes momentos – a mãe primeiro, atrás da filha, e o pai em seguida, atrás de ambas. Em vez de resgatarem Melodie, ambos acabam convertidos a uma nova versão de si mesmos, assumindo talentos e vocações até então insuspeitos.
Allen extrai humor do absurdo. Minha impressão é que ele busca no cotidiano situações reais e as exagera para travesti-las de piada, tendo sempre como suporte diálogos verborrágicos (sua marca registrada) e inteligentes, pródigos em ironias. O clima de ingenuidade absurda lembra as comedinhas de erros de Shakespeare (sem as indefectíveis rimas).
Apesar de ter alguns filmes sérios de Allen na galeria dos melhores que já assisti -“Interiores” e “Crimes e Pecados”, por exemplo- acho que gosto mais do estilo de cinema que ele faz em “Tudo pode dar certo”. Pelo menos para mim, um exemplar do cinema sério de Allen é muito bom, mas do que faz rir é melhor ainda.