Categoria: Resenha

‘Bridgerton’: siga direto para a série!

Bridgerton”, série de época que estreou em dezembro na plataforma de streaming Netflix, é um caso raro de adaptação dramatúrgica que resulta melhor que a obra literária na qual foi inspirada. Tão raro que em minha experiência como cinéfila só conheci outro similar: o da trilogia cinematográfica “O Senhor dos Anéis”, assinada pelo diretor Peter Jackson – não me entendam mal: a obra literária de J. R. R. Tolkien é um clássico de valor, mas seu texto não conquista muito além de seu público-alvo (o infantil), ao contrário, por exemplo, da série “Harry Potter”, que alveja o infanto-juvenil, mas acerta em todas as faixas etárias, graças à escrita espirituosa e à trama engenhosa e repleta de referências filosóficas da autora J. K. Rowling.

A família Bridgerton, que dá nome à série

Mas, voltando à produção original da Netflix, “Bridgerton” empresta dos melhores clássicos da autora inglesa Jane Austen os cenários (Inglaterra do século 19) e os argumentos (intrigas na alta sociedade) para narrar um romance entre uma jovem aristocrata em idade de casar e um solteirão convicto. Ele nasce de uma farsa que a virginal Daphne e o amargo duque de Hastings combinam de interpretar – consiste em fingirem-se apaixonados um pelo outro, ele para livrar-se do assédio de mães casamenteiras, ela para atrair o interesse de melhores partidos como potenciais maridos.

Obra literária

Ter maratonado a série durante os feriados do final de ano me deu coragem para finalmente ler Julia Quinn, autora contemporânea que escreve romances de época – eu vinha evitando a experiência com receio de macular minha já antiga devoção à literatura inglesa da era vitoriana, iniciada com a leitura de Jane Austen (sobre cuja obra já me derramei em mais de um texto neste blog) e alimentada com as de outras contemporâneas dela, como Elisabeth Gaskell (“Norte e Sul”, “Cranford”, “Esposas e Filhas”), Flora Thompson (“Lark Rise e Candleford”) e as irmãs Brontë – Anne (“A Inquilina de Wildfell Hall”), Emily (“O Morro dos Ventos Uivantes”) e Charlotte (“Jane Eyre”).

Capa da edição brasileira do livro ‘O Duque e Eu’

Infelizmente, meu receio resultou totalmente fundado, motivo pelo qual dou este conselho gratuito a fãs de literatura de época como eu: “sigam direto para a série da telinha”, pois foi uma tortura ler até o fim ao livro “O Duque e Eu” – primeiro da série literária – mesmo tendo pulado inúmeras partes enfadonhas e rezado o tempo todo pra trama melhorar em algum ponto.

Passei a considerar um elogio imerecido uma crítica rotular a obra de Quinn como “romances de Jane Austen com sexo”, pois seus textos teriam que melhorar muito (mas muito meeesmo!!!) para chegarem só aos pés da rica, inteligente e espirituosa prosa austeniana. São tão pobres quanto suas tramas, lembrando muito os daqueles romancinhos eróticos das séries “Júlia” e “Sabrina”, que as adolescentes da década de 1980 compravam em bancas de jornal (e foram, para minha geração, o equivalente feminino às revistas pornô dos meninos).

Talvez por isso a obra de Julia Quinn tenha se tornado best-seller (“Julia” e “Sabrina” também vendiam como água): é literatura de massa, de fácil consumo e rápido esquecimento.

Estratégia genial!

Certamente com a intenção de aproveitar o apelo popular da série literária, a Netflix confiou à produtora Shondaland – da premiada autora Shonda Rhimes (criadora de “Grey’s Anatomy” e “Scandal”, por exemplo) – a tarefa de adaptar “Bridgerton” para as telas. Para enriquecer a narrativa, porém, foi preciso misturar na mesma trama vários livros de Quinn, enxugar as “gordurinhas” dos textos e enriquecer – em muito! – a qualidade dos diálogos.

A reengenharia dramatúrgica não torna a série, assim, uma obra-prima, mas entrega um produto decente dentro da proposta a que se destina: escapismo pela via da comédia romântica (vamos combinar que todos precisamos de uma dose desse gênero de vez em quando).

Meu aplauso especial vai para a bandeira da diversidade que a produção levanta, e não só através do roteiro, que, ao contrário do original literário, mostra relação homossexual sem julgamentos e joga luzes favoráveis sobre personagens femininas que na sociedade da época seriam consideradas “párias sociais” – a modista que não se envergonha da própria liberdade sexual; a cantora de ópera que recusa a oferta do amante de ser introduzida na alta sociedade; e uma filha de família aristocrática que fuma escondido e sonha fazer muito mais de sua vida do que só se casar e ter filhos.

A estratégia mais ousada de todas, porém, está na escalação do elenco, multirracial, no qual se destacam atores negros em papeis de importância similar aos dos brancos (não só como serviçais), o que até contraria as descrições físicas feitas de alguns personagens nos livros de Quinn. Por exemplo, o personagem Simon Basset é descrito em “O Duque e Eu” como branco, de cabelos negros e olhos azuis claríssimos, mas é vivido na série pelo ator negro Regé-Jean Page, de cabelo afro e olhos castanhos escuríssimos. Ele forma, aliás, um lindo par romântico com a alvíssima atriz britânica Phoebe Dynevo, que interpreta Daphne.

Sobra diversidade até para a realeza britânica: o próprio rei George III é casado com uma rainha Carlota negra, que tem damas de companhia até asiáticas.

O melhor é que a trama não fornece explicações (nem desculpas) para esta recriação da realidade, o que considero uma estratégia genial de combate ao racismo estrutural – provavelmente elaborada por Shonda Rhimes, ela mesma uma autora negra vencendo em uma indústria cultural formada majoritariamente por brancos. Afinal, os produtos dramatúrgicos contribuem com uma significativa parcela de estereótipos na formação das crenças em uma sociedade. Então, o que pode ser mais eficiente para combater as racistas do que uma obra que retrate uma alta sociedade multirracial e equânime como algo perfeitamente natural?

De quebra, essa estratégia ainda cumpre um dos nobres objetivos de toda obra artística, que é provocar o espectador, “acordá-lo” – neste caso para seu próprio racismo inconsciente (todos temos em algum grau, com ou sem intenção). Por exemplo, se você se sentiu incomodado com a liberdade que a série se deu de colocar personagens negros em pé de igualdade com os brancos em plena sociedade inglesa vitoriana, saiba que é um sintoma inequívoco de racismo estrutural. E argumentar que o incômodo se deveu só a desconexão com a realidade ou à imprecisão histórica, não vale, porque você também teria que se sentir incomodado por assistir a atores norte-americanos interpretando, em inglês, quaisquer outras histórias de países e povos diferentes. Ou seja, se precisão histórica ou conexão com a realidade fossem tão importantes para você em uma obra dramatúrgica, lhe incomodaria na mesma proporção assistir a adaptações de histórias bíblicas faladas em quaisquer outros idiomas que não o hebraico, o aramaico e o latim, por exemplo.

Enfim, só por essa (genial) estratégia, mesmo que a série “Bridgerton” não fosse muito melhor que seu original literário, eu já a aplaudiria de pé.

Viajando com o autor em ‘O Ruído do Inquieto’

Sempre adorei degustar literatura feita por jornalistas. Não se trata de corporativismo profissional (juro!), mas de uma predileção sincera e com argumentos. Via de regra, os jornalistas que se aventuram pela literatura costumam nos brindar com o melhor de dois mundos: escrita objetiva e fartura de informações, aliadas a lirismo e riqueza de vocabulário. Geralmente para narrar histórias muito bem construídas – pois quem vive de narrá-las acaba, eventualmente, aprendendo como criar as melhores.

Em “O Ruído do Inquieto”, primeiro livro do jornalista Gustavo Junqueira, objetividade, farta informação e rico vocabulário estão competentemente combinados em textos que narram, principalmente, experiências pessoais. Entre elas, aventuras reais que a maioria dos mortais não consegue viver sequer uma vez na vida, como escalar os picos do Aconcágua, na Cordilheira dos Andes, do Urus (Peru) e do Kilimanjaro (Tanzânia), sobreviver a um terremoto no Nepal e explorar a inóspita Antártida em um veleiro.

São as maiores aventuras do mineiro radicado em Ribeirão Preto, que se confessa um inquieto de nascença, sempre a planejar um novo desafio, de preferência que lhe teste os limites do corpo e da mente. Mas têm mais e inclui participações em maratonas, como o desafiador “Ironman” e a Maratona de Paris. Tem até uma caminhada exploratória por  locais na capital paulista em que agentes da ditadura praticaram torturas contra opositores do regime militar – só um jornalista pra planejar uma excursão assim, que Gustavo chamou de “Torturismo Tour”.

É sempre enriquecedor saber mais sobre o quanto exige do espírito humano aventuras como as que Gustavo encarou, ainda que pelo “buraco da fechadura” que a escrita do outro nos franqueia. É o que os relatos de seu “O Ruído do Inquieto” nos propiciam, com riqueza de detalhes e escrita irretocável. Pessoalmente, porém, confesso que senti falta, em algumas narrativas, de menos objetividade e mais emotividade. Talvez um pouco daquele tipo de franqueza constrangedora a que os melhores escritores se expõem e que costumam ser premiadas com a cumplicidade total do leitor, graças à conexão que estabelece com o humano em todos nós. O relato sobre o terremoto no Nepal, por exemplo, me deixou com um gostinho de “quero mais” (saber sobre as emoções desencadeadas e os recursos mentais exigidos numa situação de confronto com a morte). O mesmo em “A Reflexão do Urus”, que nos prepara para um relato introspectivo e entrega pouco sobre o conteúdo dessas reflexões em um resumo super objetivo no último parágrafo, como se Gustavo se acanhasse em compartilhá-las (o que é perfeitamente compreensível).

Mas esta é uma impressão pontual, que não se aplica, portanto, ao conjunto da obra. Em “Antártida, O Continente Interior”, por exemplo, não senti falta de nada! O autor me fez desejar estar junto naquele veleiro, observando albatrozes, baleias, icebergs, refletindo sobre a natureza vibrante e em harmoniosa colaboração com o restante da tripulação.

E a prova de que Gustavo sabe combinar objetividade e emoção são meus textos preferidos no livro: além de “Antártida…”, as crônicas “O Casamento do Filho”, “Fliper partiu” e “Kuarenta ehum”, nos quais permite-se compartilhar conosco seus afetos – verdade que em “O Casamento..” ele se esconde na narrativa em terceira pessoa pra não dar muita “pinta”, mas não faz a menor diferença! (risos aqui): enxergamos seu amor paterno.

A parte “Em versos”, que reúne poemas do autor, também dão pistas de um lirismo latente, às vezes em embate, outras em completa harmonia com sua característica objetividade. Mas deu samba! Quer dizer… poesia.

Que venham outros!

‘Vá, coloque um vigia’…

“Porque assim me diz o Senhor: ‘Vá, coloque um vigia de prontidão para que anuncie tudo o que vier’.”
Isaías, 21:16

Saiu deste trecho da Bíblia o título do livro “Vá, Coloque Um Vigia” (2015), sequência do clássico “O Sol É Para Todos” (1960), vencedor do Pulitzer de 1961 – entre outros prêmios literários. Acompanhou seu lançamento a aura de “livro perdido de Harper Lee”, já que, apesar de escrito, provavelmente, na mesma década do primeiro, seu rascunho foi encontrado só há pouco mais de quatro anos, entre o espólio da autora (não se sabe por que ela não o deu a publicar antes). Seus herdeiros autorizaram a publicação nos Estados Unidos em 2014. Harper estava, então, senil perto dos 90 anos, sem condições de opinar a respeito – veio a falecer em 2016.

No livro, o versículo de Isaías é interpretado como uma metáfora da consciência (“Vá, coloque um vigia” para sua consciência…), fonte dos tormentos da protagonista durante seu processo de amadurecimento, descrito na obra.

Gregory Peck é Atticus Finch, Mary Badham é Jean Louise ‘Scout’ Finch e Phillip Alford Jeremy ‘Jem’ Finch no filme “O Sol É Para Todos” (1962)

E a protagonista é ninguém menos do que a querida Scout, apelido pelo qual Jean Louise Finch é tratada por todo o primeiro livro. Narrado em primeira pessoa por ela, dos 6 aos 10 anos, “O Sol É Para Todos” descreve, pelos olhos da menina e de seu irmão mais velho, Jem (de Jeremy), o processo em que o pai de ambos, o advogado Atticus Finch, defende um negro injustamente acusado de estupro por uma branca. Isso na pequena comunidade sulista – entenda-se extremamente racista – de Maycomb, no Alabama (EUA).

Vá, Coloque Um Vigia” encontra Scout adulta, aos 26 anos, com consciência e valores praticamente indissociados dos de seu pai. Entre flashbacks de sua adolescência e de sua ida para Nova York, acompanhamos a jovem descobrir-se um “peixe fora d’água” na cidade natal, até sofrer o “choque de realidade” que a fará rever o altar moral no qual colocava Atticus.

Neste ponto, a narrativa, que vinha morna e saudosista, comparando a velha e a atual Maycomb, mergulha em diálogos filosóficos: entre Jean Louise e sua própria consciência; entre ela e seu velho tio Jack (o médico intelectual-pensador da família), dela com o namorado e… o derradeiro… entre a protagonista e seu pai. No cerne de todos eles, a sociedade e seu comportamento de “manada”, seus preconceitos de raça e credo, temas atuais ainda hoje (infelizmente!), passados quase 60 anos.

Jean Louise precisa emergir de todos esses embates morais com identidade e valores próprios e, para isso, terá que decretar algumas “mortes” (de ao menos um ídolo, da própria inocência, entre outras personas).

Harper Lee em uma de suas últimas fotos, por volta dos 80 anos

Para quem aprecia leitura para além do simples entretenimento, é um prazer deixar-se enredar por esses diálogos, embalados por um humor irônico, que, em minha opinião, são a maior prova do grande intelecto da autora.

Por tudo isso, “Vá, Coloque Um Vigia”, como seu antecessor, é um daqueles livros para se ter e reler sempre que precisarmos nos reconectar com nossas noções de humanidade.

Super recomendo!

 


O Sol É Para Todos” foi adaptado para o cinema em 1963. Dirigida por Robert Mulligan (de “Houve Uma Vez Um Verão”), sua versão cinematográfica rendeu o Oscar de Melhor Ator para Gregory Peck (na foto com a autora, Harper Lee, em 1962, durante as filmagens), e de Melhor Roteiro Adaptado para Horton Foote. Também virou clássico! (Na torcida para algum diretor decidir filmar sua sequência em 3, 2, 1…)

 

‘Harry Potter’ é universal e atemporal

Logo que a febre em torno da saga Harry Potter chegou ao Brasil, torci o nariz pensando: “se é best-seller, não deve ser bom” (nós e nossos preconceitos!). Mas minha auto-regra, de só me permitir criticar o que conheço, salvou-me, porque fui ler. E não consegui parar! Passei até a experimentar uma espécie de “síndrome de abstinência” (uma tristezinha misturada com um desejo louco de “quero mais”) cada vez que terminava um livro, tão viciada ficava na leitura.

Apesar de a obra estar catalogada como infanto-juvenil, eu já tinha uns 30 e poucos anos quando aderi a seu fã-clube. Conheci, desde então, algumas dezenas de amigos da mesma geração ou mais velhos que também a adoram. Somos a prova de que as obras de qualidade dialogam com todas as faixas etárias. E eu explico a seguir como Rowling consegue isso:

Além de muito bem escritos e cuidadosamente bem traduzidos (Deus sabe como isso é importante!), os livros da saga Harry Potter agregam vários gêneros sob o guarda-chuva da ficção infanto-juvenil: suspense, romance, toques de terror e doses cavalares de críticas social e política – estas últimas explicitadas no universo/cenário que a autora constrói para seus personagens atuarem.

A narrativa é cheia de camadas, que convivem sobrepostas. Cada leitor alcança um número delas, conforme o tamanho de seu repertório interno. Vejamos:

As crianças, por exemplo, alcançam a camada mais exposta dessa construção, que é a aventura em si.

Os adolescentes avançam uma além, ao reconhecerem (e se reconhecerem) nos personagens as motivações que os movem por cada aventura.

E os adultos mais intelectualizados são aptos a enxergar arquétipos contemporâneos e representações de estruturas sociais e de poder – tudo disfarçado por uma embalagem de fantasia.

E os cultos ainda podem se divertir identificando fontes culturais onde Rowling foi buscar referências. Por exemplo: o latim é usado na obra para nomear feitiços (“crucio” = eu torturo, “accio” = eu conjuro, “diffindo” = eu reparo) e personagens (“Severus” = severo, “Lupin” = lobo, “Albus” = branco, todos boas descrições de seus donos);

A autora foi buscar na cultura greco-romana nomes para criaturas fantásticas (centauros, basiliscos, mantícoras, esfinges, fênix, por exemplo) e personagens cujas características têm tudo a ver com os mitos que referenciam. Exemplos: Minerva, deusa da sabedoria, nomeia na saga a professora mais sábia da escola de magia Hogwarts, McGonagall; e a deusa da lua empresta seu nome a Luna Lovegood, a colega de Harry considerada meio “lunática” pelos bullyers de plantão.

Já a jornada do próprio Harry Potter se encaixa no conceito do pensador norte-americano Joseph Campbell (vide livro “A Jornada do Herói”).

Entre as representações sociais mais didáticas da saga está a de uma muito familiar à nossa história recente. No quinto livro, Harry Potter e a Ordem da Fênix (ALERTA DE SPOILER!!!), a autora descreve brilhante e didaticamente um regime de opressão, quando o Ministro da Magia, determinado a manter seu poder, envia uma inquisidora a Hogwarts, que adota medidas autoritárias para sufocar liberdades de opinião e  livre expressão.

A criança pode não fazer a analogia com a realidade logo que lê a história, mas seu inconsciente o fará quando seu cérebro atingir a idade certa. Adolescentes e adultos o farão em seus próprios termos e conforme (repito)  seus repertórios internos e disposições  à reflexão (nem todos estão dispostos).

Todas essas camadas e referências, em minha opinião, tornam a obra universal e rica, estimulando  o leitor a buscar mais conhecimento. Parece que está só entretendo, mas está também enriquecendo seu repertório..

E a fantasia é de respeito! Criativa e inteligente, também apreciável por todas as idades.

Atemporal

Considero genial a autora distribuir a saga Harry Potter por sete livros, sendo um para cada ano da vida de seu protagonista, durante um período nevrálgico da formação humana (dos 11 aos 17 anos). Sobretudo nas culturas ocidentais, é a fase em que ocorrem os ritos de passagem da infância para a adolescência, que, em si, já é uma preparação para a entrada na vida adulta. Todo ser humano, em qualquer era da história conhecida, passa por esses ritos, o que também torna a saga atemporal.

Assim é que, no primeiro livro, o bruxinho e toda sua geração assemelham-se a “telas em branco” prestes a terem iniciada a “pintura” do adulto que serão. As tintas são as experiências pelas quais passarão, e os pincéis, as escolhas que cada um fará diante de cada situação.

O padrinho Sirius Black lida com as dúvidas de Harry: ‘todos temos o bem e o mal dentro de nós’

Não por acaso a autora bate muito na tecla das escolhas como determinantes do “destino” – acima da genética e da crença no pré-determinismo. Harry, por exemplo, passa grande parte da saga atormentado pelo medo de estar condenado ao mal, como Voldemort, já que teve uma primeira infância muito similar à do vilão e carrega uma ligação interna com ele desde o episódio traumático da morte de seus pais. É lindo ver como ele vai, aos poucos, chegando à conclusão de que pode escolher e que tudo o que viveu até ali o municiará em cada tomada de decisão.

Amizades norteiam escolhas

Seus coadjuvantes mais próximos – e em uma certa medida, co-protagonistas –, Roni e Hermione, atravessam os mesmo ritos, cada um a seu modo, a partir da própria bagagem interna, mas com um sentimento comum a uni-los que faz toda a diferença na hora das escolhas: a amizade. Não por acaso o mesmo sentimento necessário para seguirmos a premissa ética de “fazer ao outro o que gostaríamos que fizessem a nós mesmos” – variação racional de um ensinamento deixado por um “cara famoso” há cerca de uns 2 mil anos.

Por tudo isso, não tenho dúvidas: “Harry Potter” não é só o fenômeno editorial de uma geração, mas um clássico. Ou seja, é para sempre!

 


P.S.: No meu blog de cinema (CINÉLIDE) também tem texto sobre a saga, escrito na ocasião de lançamento do oitavo filme da franquia do cinema: “Harry Potter: lições que podem salvar uma geração


 

GALERIA (clique numa foto para ampliá-la e abrir a galeria)
Nos filmes, atores também passam da infância à adolescência sob os olhares do público

‘Precisamos falar sobre o Kevin’: perturbador

Woooow!

Desculpem se tento reproduzir paupérrimamente o som alto do meu respiro em busca de ar após ler à última linha do livro “Precisamos falar sobre o Kevin”, de Lionel Shriver (adianta dizer que procurei o e-book motivada pelo trailer do filme, para justificar a introdução da literatura neste blog inicialmente só de cinema?). É na melhor das intenções que tento prevenir leitores/espectadores impressionáveis como eu sobre sua história emocionalmente devastadora.

Foi ao mesmo tempo intoxicante e cáustico submergir na descrição honesta de uma mãe sobre a guerra psicólogica, muda e não-declarada que travou com o próprio filho sociopata durante 15 anos de suas vidas.

Em cartas endereçadas ao marido, a empresária e mãe de família Eva Katchadourian inventaria sua vida familiar desde a decisão – vacilante de sua parte – de terem um filho, até a tarde de uma quinta-feira que mudou para sempre toda a sua vida e as de outras 11 famílias que perderam entes queridos no assassinato em massa levado a cabo por seu filho adolescente.

Entre lembranças, sentimentos e questionamentos desconcertantemente honestos, Eva descreve também suas visitas ao filho na casa de correção para menores, a atenção da mídia ao caso e as reações dos outros a ela mesma após a tragédia, que variam de uma maquinal piedade cristã à uma condenação feroz. Tudo embalado em um robusto, talentoso e saborosamente bem escrito texto (ah… isso sempre me pega!).

Engolfada em aflições por Eva – sempre entro demais nas histórias -, varei a noite com olhos e mentes colados à narrativa, que eu não recomendaria a pais incautos ou candidatos vacilantes aos postos. Os questionamentos com que Eva tempera seu inventário de culpas são tão legítimos que podem facilmente abalar concepções idealistas de família, carreira, maternidade, paternidade e afins, para o que o personagem de seu marido (o típico pai-americano-ideal, sempre pronto a acreditar nas boas intenções do filho em detrimento das leituras certeiras da mulher) não contribui em nada.

Mas o autor guarda uma armadilha aí, que, claro, não contarei aqui, pois ela se revela no fim do livro. Mas posso adiantar que a narrativa nos brinda com raras sugestões de que Kevin não é completamente destituído de sentimentos como todos os seus pequenos atos vis em família ou em seu círculo social fazem crer. É como se (e esta interpretação é inteiramente minha) todo o seu calculismo e vilania se prestassem ao único objetivo de atingir a mãe, mais com o objetivo de conseguir sua aprovação e admiração do que pelo ódio que faz questão de demonstrar.

Será que estrago alguma coisa ao contar que, quando acreditamos que nada será pior do que o assassinato em massa de Kevin, o autor nos brinda com um clímax ainda maior perto do final?

Peço desculpas se for o caso, mas não resisto a justificar minha total reverência à construção narrativa do autor.

Para resumir, apesar de ter sido uma das experiências literárias mais desconfortáveis que já tive, “Precisamos falar sobre o Kevin” figurará, para sempre, na minha galeria pessoal de leituras inesquecíveis.