Publicações do autor
ago 11 2017
Madame Guilbert
Madame Guilbert sempre me emocionou. Talvez não seja uma das principais obras de Toulouse Lautrec, mas é a que mais toca meu coração. O que tem ela de especial? Nada para alguns olhares. Muito para outros.
Fico imaginando como ela, cantora famosa gravitava naquele ambiente repleto de sensualidade ou de promiscuidade, não sei, ao lado de outras damas, as que passavam a noite à espera de clientes para garantir a vida na Paris, quase na virada para o século XX – cansadas de se deitarem com tantos senhores com cheiro nauseante de bebida e fígado empedrado – atravessando as noites maçantes como são em todos os lugares do mundo, à espera de mais um dia.
No Moulin Rouge, em Montmartre, a figura triste de Lautrec emana solidão e abandono e suas obras não poderiam ser diferentes, pois perpetuou imagens difusas, como se as captasse através de um espelho embaçado ou de uma névoa que encobria a verdadeira face daquela suposta alegria. Paris era uma festa? E nesse ambiente, em sua obsessão em retratar o irretratável como se a alma de cada uma já estivesse pronta em sua paleta de cores borradas, o artista quase anão, quase deformado, embebido em absinto, registrou a solidão que hoje nos encanta. Os bordeis parisienses foram a casa de Lautrec, convivendo com aquelas mulheres que me parecem tão distraídas em suas poses meio desleixadas diante de um homem triste e sem amor, olhares absortos que atravessam os séculos e ocupam as grandes galerias de arte do mundo.
Voltemos a madame Guilbert, minha preferida. Também gosto de Jane Avril, dançarina de can-can e La Goulue, no famoso cartaz de Lautrec, ao lado do parceiro Valentin, e todas as telas dele. Mas, madame Guilbert me intriga. Ela, me parece, tinha o olhar perspicaz, olhando ao redor com um meio sorriso cerrado nos lábios, como se analisasse com agudeza aquele ambiente mundano,na Belle Époque, ela diferente da Grande Maria recostada displicente em uma poltrona exibindo sua nudez sem erotismo, como se nada no mundo lhe interessasse.
Para aonde foi madame Guilbert depois das telas de Lautrec? Quero saber mais sobre ela, se viveu grandes amores, se teve filhos, se morreu pobre ou se amealhou fortuna… Um fato ao menos eu conheço. Ela foi sepultada no famoso cemitério Père -Lachaise, em Paris, onde repousam famosos como Honorè Du Balzac, Oscar Wilde, Maria Callas, Isadora Duncan, Allan Kardec e Jim Morrison, só para citar alguns.
Ah, madame Yvette Guilbert, queria tê-la conhecido! O que você diria desses meus delírios sobre as noites encarceradas nos quadros de Lautrec? Em meus delírios, vejo e ouço madame Guilbert cantando La Passion Du Doux Jesus ou Quand Vous Aime, em seu vestido decotado e luvas pretas de cetim até os cotovelos, sendo aplaudida nos vários palcos por onde brilhou. Vocês sabem… eu deliro mesmo.
A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.
ago 09 2017
Liberdade
CÁSSIO BIDA *
“Fugi com o circo! Adeus”. Quando leu a frase, Romeu se espantou. Mas, no fundo, sabia porque sua amada estava fazendo isto.
Desde que se conheceram, Romeu e Carmem se encantaram um com o outro. Ele com a vivacidade da moça. Ela com a sensação de paz que o jovem transmitia com naturalidade.
Romeu tinha paixão pela escrita. Gostava, vez ou outra, de surpreender com textos, palavras, frases, citações. Muitas vezes emprestadas de Machado, Cortella e Vinícius. Mas, na maioria, frases escritas por conta própria.
Já Carmem, moça prática, não era de muitos rodeios. Tinha muitas urgências. A principal de todas era viver. Principalmente depois de um Carnaval onde tomou um banho de purpurina. O brilho invadiu a alma da moça que, desde então, passou a ser intensa.
Encontrou em Romeu um rapaz pacífico. Sabia acendê-la, mas ainda faltava algo. Ela queria a paz no amor, mas tinha em si mesma o fogo e a energia da juventude. A delícia da descoberta. Aquela chama de renascimento, típica de uma fênix. Talvez por isto Carmem nunca soube lidar direito com esse negócio chamado rotina.
Romeu, por sua vez, era extremamente organizado. Metódico, o rapaz tinha hora para tudo. Acordar, trabalhar, exercitar o corpo, a mente, a alma. Depois de um tempo, pasmem, até hora para namorar ele exigia.
Carmem, no entanto, era mais flexível. Aproveitava os prazeres da vida nas horas em que bem lhe cabiam. Entendia a importância de manter uma rotina, mas não era bitolada com essas coisas.
A moça gostava de surpresas. E Romeu sabia como presentear a amada nos momentos em que ela menos esperava. Fosse com uma flor, um verso, uma canção ou mesmo uma frase. Entre números de malabares e serenatas, ambos davam seu colorido um ao outro.
Acostumado com a presença dela, parou de investir no relacionamento.
E isto deixou a moça triste em um primeiro momento.
Depois irritada. E, por fim, indiferente.
Até que, em um dia cinzento e chuvoso, tudo foi esmaecendo. Carmem queria ainda acreditar naquele amor. Só que Romeu se acomodou. Acostumado com a presença dela, parou de investir no relacionamento. E isto deixou a moça triste em um primeiro momento. Depois irritada. E, por fim, indiferente.
Foi quando ela tomou uma atitude drástica. Na calada da madrugada armou uma corda de lençóis. Teresa como o pessoal chama por aí. Desceu, sabe-se lá como, sem fazer barulho, nem chamar a atenção dos vizinhos. E, com uma pequena mochila, sumiu no mundo.
Quando acordou, Romeu deu de cara com um bilhete que dizia pouco e explicava tudo: “Fugi com o circo! Adeus”. Poderia ser para ele o fim, inclusive da própria vida. Mas o jovem escritor não terminou como o xará do romance de Shakespeare.
Ao invés do obituário, Romeu resolveu deixar à amada uma lembrança diferente. Espalhou em outdoors pelo país uma mensagem. Uma mensagem tão bonita que Carmem lembrar-se-ia dele sempre ao ler.
No cartaz, uma fênix. Dourada, de asas abertas e com as chamas em carmim. E a frase que simbolizava o sentido de todo aquele amor: “Quem nasceu para ser livre jamais se prenderá a qualquer gaiola!”
Em uma das viagens com a trupe, Carmem viu o cartaz. Deu um leve sorriso e, artista como era, ficou admirada com o gesto. A viagem de ambos, mesmo separados, seguiu. Ele com o carinho das palavras. E ela, entre malabares e contorcionismos, fazendo o dia do respeitável público mais feliz.
* Cássio Bida
Jornalista curitibano e funcionário público, gosta de criar escrever histórias nas horas vagas.
É autor do PodCast Cartas Faladas que desenvolveu para espalhar amor em meio à dureza do mundo.
Toda semana o blog traz a crônica de um(a) ‘palavreiro'(a) convidado(a). O convite é extensivo a todos que gostam de palavrear a vida em forma de crônicas.
“VEM PALAVREAR COM A GENTE!”
ago 04 2017
Pensar com os pés e olhar as estrelas
SHEILA CRISTINA GUIMARÃES *
Quando criança olhava para o céu, contemplava as estrelas e pensava no porquê de ter nascido onde nasci, na casa onde morava, na família que tinha, na cidade onde vivia.
A minha dimensão do mundo naquela fase da vida era bem diminuta, não ía muito além desse universo cotidiano e dos poucos quilômetros percorridos entre uma visita familiar e outra. Ainda assim, ficava curiosa em saber como viviam as pessoas em lugares diferentes do meu.
Pessoas curiosas ou com ideias fixas não têm muito jeito, seguem vida afora com essa forma de buscar a vida e os porquês.
Do alto dos meus crescidos anos, numa palestra que assisti uma vez, ouvi do Frei Beto uma frase que fez todo sentido para mim: “pensamos de acordo com o lugar onde pisamos”. E a luzinha do olhar que contemplava as estrelas se acendeu imediatamente naquele momento. Daí a encontrar uma forma de descobrir por mim mesma as respostas que buscava levou alguns anos de andanças pelo cotidiano da vida.
E foi justamente nas andanças que descobri o universo da peregrinação. O Caminho de Santiago foi a minha estreia na modalidade de percorrer caminhos a pé levando uma mochila nas costas. Um verdadeiro experimento de vida, tudo novo para mim: país, pessoas, comidas, lugares, carregar peso nas costas, percorrer estradas e cidades à velocidade dos pés. Foram 30 dias repensando a minha existência, pesando significados e traçando novas rotas para a minha vivência neste mundo.
Desde então, outros Caminhos foram percorridos e muitas histórias entraram para o repertório da minha alma. A peregrinação virou paixão associada à curiosidade infantil inicial, abrindo um vasto caminho de aprendizados e inúmeros amigos de diversos lugares do mundo invadindo o espaço do meu coração. Mais do que tentar entender como vivem as pessoas em suas geografias, pisar no mesmo solo que elas, olhar as estrelas e compartilhar momentos de vida, numa troca de “humanidades”, preenche de sentido as lacunas dos meus questionamentos.
* Sheila Guimarães
Jornalista, designer gráfica, mãe da Marina,
avó da Helena e “peregrina mundo afora“
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“VEM PALAVREAR COM A GENTE!”
ago 02 2017
O Testamento
Quando Teresa Maia morreu, afetada por uma dor no peito, os parentes, ainda no velório, começaram a pensar nos bens que ela poderia ter deixado. Viúva, mãe de quatro filhos, Teresa tinha um modo de vida confortável, amparado pela aposentadoria deixada pelo marido, engenheiro de uma grande empreiteira, e pelos trabalhos de pintura em porcelanas para uma loja de louças finas, uma arte cultivada desde a mocidade. Sempre que os filhos precisavam – e precisavam cada vez mais – estava pronta para assinar um cheque. Pouco sabiam sobre sua vida. Apenas que nunca votara em partido de esquerda, ao contrário deles, defensores ferrenhos de programas sociais. Nunca perguntaram sobre sua vida, sua história, seus anseios. Mas… quem sabe sobre a vida dos pais? Como se conheceram, onde nasceram? A história dos pais pouco interessa aos filhos, netos e afins.
Teresa Maia era uma mulher bonita. O tempo não causara muitos danos ao seu corpo. E ali, de mãos cruzadas sobre o peito, livre de estresse, deitada para sempre em um leito que não escolhera, estava mais jovem que seus 60 anos poderiam aparentar. Parecia segurar um leve sorriso, um tanto sarcástico. Conversa vai, conversa vem, os filhos souberam que ela havia deixado um testamento.
Um testamento? Teria ela acumulado bens sem que soubéssemos? – perguntaram- se os filhos. E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um. O mais novo, anteviu suas dívidas amortecidas, quem sabe saldadas, a compra de um carro novo e uma viagem ao Havaí, seu sonho de adolescente. Os outros também faziam planos mentalmente enquanto olhavam o rosto inerte da mãe, como se a pedir desculpas pelos pensamentos torpes àquela hora tão triste.
“E a partir desse momento, quanto mais rápido acabasse aquele funeral, mais depressa saberiam qual parte daquele latifúndio caberia a cada um”
Tudo acabado, voltaram para casa à espera de um chamado. Nada. Passaram-se os dias e resolveram entrar em contato com o advogado que, solícito, desculpou-se pelo atraso e foi logo marcando o encontro em seu escritório.
Aquela era a hora mais esperada. Todos sentados, bem vestidos como pede a ocasião, aparentavam um ar blasé, como se nada de material lhes interessasse, como se a saudade da mãe embotasse qualquer resquício de pensamento materialista. Em segredo, a passagem para o Havaí com uma esticada por outras ilhas exóticas já estava até reservada, e nas outras cabeças amorosas os planos já tomavam formas exatas.
E veio a leitura. Silêncio que a hora é sagrada. Primeiro, o extrato bancário de Teresa Maia, que fez engasgar todos os quatro de um vez: muito dinheiro. Depois, os imóveis. Outro susto.
Como ela pôde esconder tudo isso de nós? – pensaram ao mesmo tempo. Finalmente, o desfecho: “Meus filhos, sei que me amaram de todo o coração e sou grata a todos. Penso que dinheiro e bens não pagam o amor de ninguém. Mesmo assim, deixo para vocês quatro, 5% do meu patrimônio. Sei que não vão se importar, pois sempre os vi e ouvi defendendo ideias e pensamentos de esquerda, contrários ao capitalismo selvagem, esse que torna os seres humanos tão mesquinhos. Portanto, comunico que os outros 95% serão empregados em uma causa nobre, ou seja: para entidades beneficentes, cujos nomes estão com meu advogado. Ah, não se esqueçam de pagar pelos serviços dele e continuem com seus nobres ideais. Um beijo de sua amada mãe”.
“PS: Façam bom proveito.”
A jornalista e escritora Matilde Leone publica sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.
jul 28 2017
Meu analista virtual
Como hoje é meu dia estreia no “Palavreira”, creio que devo me apresentar. Não se trata de um currículo, mas da análise do meu perfil feita há algum tempo pelo Facebook, o que não deve causar estranhamento a ninguém. Portanto, minha apresentação não será feita por mim mesma, mas sim, pelos olhos do poder dominante atual, que é a Internet, uma vez que não existe mais como escapar dos olhos virtuais. Eles sabem mais de nós que nós mesmos. Sinal dos tempos. Vamos nos acostumando.
Bem, segundo essa entidade que vigia nossos passos, sou primavera, meu número é 10 e se eu fosse chocolate, seria creme nougat. (nossa, eu não queria ser chocolate). Minha alma é branca e minha cor favorita é o roxo (acertou). A palavra que melhor me descreve é generosidade (não sei, não).
Continuando, meu otimismo é invencível e meu rosto revela uma personalidade tranquila de artista e de pessoa honesta (só elogios). Vejam só, há três motivos para alguém querer se casar comigo: sou leal, linda (obrigada Facebook) e paciente. E como sou um vínculo celestial, vou servir meu amado numa bandeja de prata porque meu coração é carinhoso, repleto de amor etc (atenção viúvos e divorciados). Não acaba aí, não. Diz ainda quais serão minhas últimas palavras: “ não há porque ficar triste, eu vivi meus sonhos; faça o mesmo”. Isso é sábio.
Indiscreto, conta os segredos que meus olhos escondem (é segredo, não posso revelar) e meu maior erro no passado (também não é bom contar) E vai para o futuro. Profético, aponta uma data (dia, mês e ano) e diz que estou no caminho certo para chegar lá. Justamente esse ponto que me interessou, ficou suspenso, cheio de enigmas.
Conta que em vida passada, meu namorado foi Buster Keaton (quem???) e que nada era arriscado ao lado dele. Que aventura! (prazer, Buster). Fui pesquisar no Google, esse outro fenômeno: Buster Keaton, nome artístico de Joseph Frank Keaton, foi um ator, diretor, produtor e músico britânico de comédias mudas, considerado o grande rival de Charlie Chaplin. Não gostei muito.Tem uma foto dele; acho que eu merecia um Marlon Brando antes da decadência.
O Face analista revela também o significado do meu nome. Mat = espírito livre; ilde: corajosa o suficiente para dizer a verdade. Juntados os dois, o significado é grande coração. Como não amar esse desconhecido que me dá bom-dia todas as manhãs e cria coisas incríveis para me seduzir e levantar meu astral?
A jornalista e escritora Matilde Leone passa a publicar sua crônica na seção “Delírios de Matilde” sempre às sextas-feiras.
jul 26 2017
Natural solidão de um pensamento
ADEMIR ESTEVES *
Estive repensando, amigos. Por mais que me tente crer numa mudança, cá por dentro a ansiedade e a busca por uma solução viável, continua. A mata morre. Morre a decência. A competência. Morre o bicho!
O preço pago, já foi pago, pago, até ser pago pelo último.
Senhor da vida, não dá mais pra suportar tanta esculhambação. É ainda pior, porque faço parte da escória… e, ironicamente, a minha súplica invalida outras.
Que caiam os ministérios e seus processos.
Que inventemos um dia feliz para os demais incoerentes. Que o meu cinismo não chegue a ponto de sorrir para os que me feriram, sem retorno aos meus recursos perdidos.
A mata queima.
Meu nojo impera! Regurgito pensando neles. (Impera o asco em mim). Regurgitam ao pensarem no eu que sou pensado: luta de coisa alguma. Guerra sem princípios.
Antes de ir, peço farto e doente, que não me permitam entregar um Óscar a quem não interpretou as mensagens do roteirista.
Mãos vazias. Sem prêmios. Sem fósforos. Sem poder.
Por que, Creonte, fui nascer tão idiota?
Por que valorizei amigos e não as vantagens?
Por que, Medeia, amei tanto ou mais que você e não me dei o direito de matar meus filhos como vingança?
E me responde a desconfiança: porque matando ontem hoje estaria esquecido.
Só um minuto dura a vida.
A ideia para ser posta é longa, imensa, mas preciso interromper
pois ainda não paguei as contas do mês retrasado.
Que possa continuar a lamuria quem está com nome limpo e a consciência tranquila.
E, antes que passe em branco: ontem consegui alimentar um menino e uma mulher no calçadão… e eles, creiam, sorriram.
* Ademir Esteves
Professor e diretor de teatro na TPC, diretor do
Núcleo de Teatro Queratina e palavreiro assíduo
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jul 18 2017
Tudo começou com um pescoção
ANA CÂNDIDA TOFETI DE OLIVEIRA *
Agosto de 1996. Sexta-feira de “pescoção” (plantão para fechar duas edições) na Folha de S.Paulo sucursal Ribeirão Preto. Eu ainda de luto pela morte repentina de um primo querido. Por volta de 22h, já havia fechado o jornal do dia, mas faltava o de domingo ainda. Os computadores, aqueles de tela preta com letra laranja, travaram. Perdi o artigo de um professor que deveria ser publicado na editoria opinião da edição dominical. Bom lembrar que neste ano a Internet era para poucos, só podia ser acessada no computador do editor-chefe e ainda era discada: lentidão total. Celular também era objeto de luxo.
Como achar o tal professor para mandar novamente (por fax) o texto ou me ditar pelo telefone, como havia feito anteriormente, se ele estava numa casa de praia que nem telefone fixo havia quanto mais sinal de celular? A solução era substituir por outro artigo assinado, mas como encontrar algum numa noite gelada de sexta-feira? Apelei para um professor que havia dado aulas com meus pais. Ele tinha um artigo inédito pronto e fez a caridade de me levar (impresso) até à redação para que eu pudesse digitar e publicar. Isso já era quase meia-noite. A primeira batalha estava vencida. Mas ainda faltavam duas matérias para fechar. Estavam apuradas, mas tinha que escrever e aguardar a edição. Assim o fiz. Sai da redação de madrugada e no outro dia às 8h começava o meu plantão.
“neste ano a Internet era para poucos, só podia ser acessada no computador do editor-chefe e ainda era discada: lentidão total. Celular também era objeto de luxo”
Chegando ao Jornal, comecei pela ronda policial e logo na primeira ligação fui informada do furto de um avião em uma propriedade rural da região. Apurei tudo por telefone porque a matéria ia render chamada na edição nacional. No meio da tarde, quando estava finalizando a matéria e acabando de apurar outras me veio uma crise de choro. Uma mistura de cansaço, com tristeza e a sensação de que não era isso que eu queria para minha vida.
Estava sentada, em frente ao computador, no canto da sala, e bem nessa hora o telefone toca. A pessoa do outro lado se identifica como Sílvia Pereira. Estava vendendo uma pauta (trabalhava na época como assessora de imprensa). A pauta não me lembro mais, mas o que ela me falou mudou o rumo da minha vida: inesquecível. Percebeu que eu estava chorando, que não estava bem emocionalmente. Mesmo sem me conhecer, se importou comigo e se colocou no meu lugar. Senti confiança e me desabafei com ela. Ao final ela me disse: “eu te entendo porque já passei por isso. Tenho um amigo que é diretor em uma revista mensal que está precisando de jornalista, você não quer tentar a vaga? Eu te passo os contatos. O salário não deve ser igual, mas o trabalho é mais calmo e você vai ter mais tempo de cuidar de você. Do jeito que está não vai aguentar mais muito tempo”.
Agradeci, anotei os contatos e no outro dia estava na Revista Revide para conversar com Murilo Pinheiro. Lembro direitinho do tom da conversa, das matérias dos jornais assinadas por mim que levei para que ele avaliasse. Gostou e disse que a vaga era minha, mas que tinha que começar na semana seguinte. No outro dia cheguei à redação da Folha e pedi demissão. Fiquei mais uma semana e meia para terminar os trabalhos e deixar algumas especiais prontas. O editor da época tentou me convencer a ficar, mas eu estava decidida. Ia casar no final do ano e naquele momento a outra proposta ia me trazer mais qualidade de vida. Já havia trabalhado em jornal Diário por seis anos em São Paulo e a maratona de plantões era algo que não cabia naquele momento para mim.
“Na Revide fiquei quatro anos, fiz muitas matérias boas,
conheci muita gente, fiz grandes amigos, que conservo até hoje”
Na Revide fiquei quatro anos, fiz muitas matérias boas, conheci muita gente, fiz grandes amigos, que conservo até hoje. Em 2000, surgiu a oportunidade de mudar para uma assessoria de imprensa: a Outras Palavras, que tinha três anos de existência. Era um desafio novo e resolvi arriscar. Menalton Braff havia acabado de receber o prêmio Jabuti pela editora Palavra Mágica e eu fui ajudar nesta divulgação. Outros clientes vieram até que tive a oportunidade de virar sócia da empresa e, desde 2015 assumi a administração sozinha, contando, claro, com excelente equipe de colaboradores.
Nunca mais ouvi falar da Sílvia e nem fiquei sabendo o paradeiro dela. Importante enfatizar que não existiam redes sociais na época. Eis que a Regina Oliveira, uma jornalista que havia trabalhado comigo na Revide e depois na Outras Palavras, foi convidada para ser repórter na Tribuna de Araraquara e quem era sua editora? Sílvia Pereira. Quando fiquei sabendo quis muito falar com ela para agradecer o que tinha feito por mim. Ela lembrou do fato, mas não imaginava o tanto que aquilo havia marcado minha vida. Depois de uns anos voltou para Ribeirão para assumir a editoria de Cultura do Jornal A Cidade e nos aproximamos de novo.
Ela, uma virginiana, eu, uma canceriana, que temos em comum o amor pelo jornalismo, pela literatura, pelos amigos, pela vida. E por coincidência ainda descobri que ela faz aniversário no mesmo dia da minha primogênita: 21 de setembro. Não tinha como não começar a minha participação em Palavreira sem contar este história que nos une e que, embora Cândida como eu, é especial e retrato um pouco do que era o jornalismo em Ribeirão na década de 1990.
Obrigada Sílvia e sucesso sempre.
Ana Cândida Tofeti de Oliveira
Jornalista com grande experiência e amiga querida!!!
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NOTA DA BLOGUEIRA
Ana Cândida, querida, o que fiz foi pouquíssimo e o mérito é todo seu por ter conquistado a vaga. A recompensa de sua amizade é que é inestimável e muito mais do que mereço pelo episódio. Gratidão sinto eu por tanta generosidade de sua parte! Beijos carinhosos e cheios de admiração! Namastê.
jul 11 2017
Mulheres de Araraquara
CRISTIANE GERCINA DA SILVA *
Fevereiro de 2017. Férias, crise econômica e ressignificação.
Chego em Araraquara e as marcas do tempo denunciam muitas mudanças. O mato cresce com a quantidade de chuva de janeiro e um misto de sol sorrateiro que dá força à natureza.
Cresceram também Valentina, Íris, Luiza e Júlia. Cresceu Laura. Chegou Lívia.
Em outro ritmo, em outro tempo, consigo observar todas essas transformações.
Como me espantam e como me alegram!
Não vi cena mais bonita nos últimos meses do que a da minha filha, aos 10 anos, sentada à beira da piscina, em silêncio, ao lado da sobrinha de minha amiga. Um silêncio que diz tanto.
É assim que nascem as amizades?, pergunto a mim mesma.
A resposta talvez esteja no convívio tão intenso com tão genuínas mulheres em um único final de semana. Minhas amigas, as mães das minhas amigas, as avós que nasceram, as mulheres que se tornaram mães e a delicadeza das que escolheram ainda não ter filhos, mas que acolhem a vida como ninguém.
Tanto aprendizado em tão poucos dias.
Naquele final de semana, as palavras mais tocantes vieram de uma adolescente questionando a existência e os próprios sentimentos: “Quando é que vai parar de doer?”, questionava ela.
Eu quis responder que nunca, mas resolvi ler uma crônica. Escrita por uma mulher. E discutimos literatura.
A volta para casa também trouxe lições e reflexões.
O pôr do sol, mais convívio e a certeza de que as mulheres pulsando em Araraquara representam o pulso do mundo.
* Cristiane Gercina da Silva
Jornalista com experiência em reportagem e edição na Tribuna Impressa, de Araraquara, e editora-assistente de Economia no Agora São Paulo
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jul 06 2017
E X I S T Ê N C I A S
REGINA OLIVEIRA *
E aí o ratão desfila faceiro pelo saguão da rodoviária de Ribeirão Preto, provocando correria e gritaria da mulherada, da homarada, da criançada, da terceira idade e da juventude que passa.
Destemido, o morador de rua, sujinho de fazer inveja ao Cascão, corre atrás do bicho, bate no bicho, mata o bicho, desfila pelo saguão segurando pelo rabo o corpo do bicho, atravessa a rua e deposita o bicho morto no latão de lixo.
E volta para a rodoviária sorridente e orgulhoso por seu momento de herói para aquele povo que, em 100% das situações, o vê apenas como um bicho feio, sujo, asqueroso, ameaçador e repugnante como o rato…
* Regina Oliveira
Jornalista com mais de 20 anos de experiência nas linguagens impressa, radiofônica e vídeo e atuação em assessorias de imprensa
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jun 27 2017
D I S F A R C E
ÉRICA AMÊNDOLA *
Mulher desgraçada!
Acorda atrasada, leva no peito o lençol e derruba travesseiros, dobra tapete no pé, cata a toalha e debaixo do chuveiro abre os olhos pela primeira vez no dia. Bom dia! Bom?
Água curta, rápida, gelada, tem que ser bom!
Que sorte, a roupa pronta na poltrona, só escolhe os sapatos. Que lugar comum, meu, seu, meu Deus!
Briga com a alegria do novo todos os dias, pensa à noite, reza, chora, pede a Deus e pensa que o novo vem assim, tão de graça! Desgraça!
Pronta pra que? Por que? Pra da porta pra fora vestir o disfarce, fingir com a boca pintada, cílios plastificados. Pode chorar à vontade, não vai borrar nada!
Érica Amêndola*
jornalista com experiências como repórter, editora-chefe, apresentadora e âncora de noticiário nas empresas EPTV Ribeirão, SBT, Record TV e TV Thaty
* Amiga querida, sempre de bem com a vida, Eriquinha inaugura a seção PALAVREIROS do blog, que toda semana passa a trazer texto autoral de um convidado.