Luciana Gerbovic

Escreve às sextas-feiras neste espaço. Advogada, comunicadora social e sócia do Escrevedeira Centro Cultural Literário, tem o sonho de ver o Brasil transformado em um país leitor, por isso media clubes de leitura em espaços públicos e privados, além de ministrar oficinas de leitura e escrita para jovens. E o mais importante: é mãe do Francisco e do Bernardo.

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Quando?

Sonhei com praia. Eu caminhava e andava de bicicleta pela areia e mergulhava no mar. E sonhei com festa. Todo mundo de roupa de praia e canga e bermuda. Sonhei com caipirinha, cerveja e abraços. E música e dança. Tinha ônibus trazendo e levando gente da festa. O moço mais bonito foi embora, entrou no ônibus sem nem olhar para atrás, no caso para mim, sem que ele tivesse me notado em momento algum. Mas tinha música e eu saí dançando até chegar em Salvador, porque nessa pandemia eu tenho sentido falta mesmo é de Salvador. Ter lido “Um Defeito de Cor”, além de ter me ensinado tudo o que eu deveria ter visto nas aulas de História e não vi, me levou para Salvador. E em cada descrição das ruas, que já existiam lá no século XIX, eu parava mais. Lia uma frase e fechava os olhos para olhar as pedras, o mar, a Baía de Todos os Santos. De olhos fechados, respirava mais fundo para sentir o cheiro do mar. E ouvir o som do Mercado Modelo.

E acordei ao me mexer, o nervo do braço se retorceu e suei frio e vi círculos amarelos e azuis, de tanta dor o cérebro quase me fez desmaiar, uma gota gelada escorria pelo meu pescoço e nem chorar eu conseguia, então fiquei deitada respirando fundo, muito fundo, cada vez mais fundo, até a dor passar, e adormeci na neve de Davos, no Sanatório de Berghof, pois é lá que tenho passado muito tempo nas últimas semanas, nas centenas de páginas de “A Montanha Mágica”, confundida pelo tempo lá e cá. Ler “A Montanha Mágica” durante uma pandemia é diferente. Fazer qualquer coisa durante uma pandemia é diferente.

Hoje é sexta? De novo estou sem me localizar nesse tempo inventado. Desde terça estou achando que é quinta. E hoje ainda acho que é quinta. Passei uma semana na quinta-feira. Alguém falou em novembro e eu ri. Mas novembro não demora? Em um dia de 2019 andei quatro horas seguidas em uma praia, tenho sonhado com essa caminhada. Andar de quinta a quinta, quatro horas em cada quinta, em algum lugar onde o vento possa bater no meu rosto, no calor de Salvador ou no frio de Davos, andar, andar e andar, além dos livros, além dos sonhos.

O que eu quero ser quando crescer

Passei a semana com um tema martelando minha cabeça. Vou deixar para escrever na quinta, pensei. E a quinta-feira chegou e é 15 de outubro. E como vou escrever neste dia sem falar dos professores? Porque o dia escolhido para homenagear os professores, para mim, é diferente das outras datas escolhidas para outras homenagens. Até do Dia das Crianças eu quase me esqueci, mesmo com dois exemplares em casa, mas desde ontem estou falando para os meus filhos: amanhã é Dia dos Professores, por favor, vejam como eles são importantes, peloamordeDeus, agradeçam os seus professores por eles existirem e ainda não terem desistido, digam, verbalizem, beijem os pés pela tela se for preciso, ergam as mãos aos céus, o que seria de nós, eu e vocês, sem eles? Porque nessa pandemia, mais do que nunca, eu penso nos professores e fico comovida. Agradecida. Encantada. Como fizeram meus filhos ler? Como não perderam a paciência ao ensinar a tabuada? E as caixas-lotes (quem me acompanha aqui sabe do que estou falando)? Como não jogaram papel, apagador e giz (ou pincel atômico) pro alto para nunca mais voltar?

Então penso nos meus professores. Talvez eles não tenham jogado tudo para cima para nunca mais voltarem porque sabiam que dificilmente seriam esquecidos. Porque sabiam que estavam ali para fazer uma diferença positiva nas nossas vidas. Tenho tantos professores ainda falando diariamente dentro de mim. Dona Ângela, sei até hoje as preposições e o uso da crase só de te ouvir falando. E o mais importante, aquilo que me transformou e me constituiu: a professora-ponte para a literatura. A professora que me fez leitora. Isso eu nunca teria como agradecer, então faço o que consigo: estico a ponte. Maraísa, a professora de História que me ensinou que os livros podem estar cheios de mentiras contadas por quem está e quer se manter no poder. Ela explodiu minha cabeça aos nove anos de idade. Professor Edu, se alguma coisa eu sei de Biologia, foi por sua causa, os desenhos na lousa até hoje na minha retina. O professor que lotou uma sala de aula com mais de 200 adolescentes, em uma tarde de sexta-feira ensolarada, ao falar sobre cobras peçonhentas, matéria que não estava no currículo escolar e nem cairia na prova. Gian e o exército de Napoleão desenhado nas paredes. Eram muitos para ficarem só na lousa. O professor que já tinha acabado a matéria do ano e viu um jornal sobre a mesa e disse: querem saber a história da Folha e do Estadão? Nós quisemos. E ele deu a aula ali, pensada na hora, da qual me lembro até hoje ao ler um ou outro jornal. Francis, o que me fez parecer que eu sempre entendi Matemática. Ciça, tão além do “the book is on the table”. Professor Júnior com os olhos brilhantes falando de Capitu, Lúcia falando de “Senhora”, meu amor pela literatura sempre aquecido. Professor Pasquale e a Língua Portuguesa nas letras de Gil, Chico e Caetano. O dia em que colocamos o Hino Nacional na ordem direta. Como podia um professor juntar tanta coisa boa ao mesmo tempo?, eu pensava enquanto me encantava ainda mais com a nossa língua. Elena, que mais do que Educação Física, nos mostrou nossos corpos, nossas individualidades. Foi ela, e não minha mãe, quem me falou pela primeira vez sobre menstruação. Isso é marca boa e indelével. Meu professor de Direito Civil, responsável por eu escolher minha área de atuação só por causa das aulas que nos deu. Não, ele não falou nem fez nada de extraordinário. Foi lá, durante cinco anos, pontualmente, e deu as aulas que tinha que dar, do início ao fim. Nos respondeu na hora quando sabia, nos trouxe respostas depois quando não sabia. Pessoas, do jeito que eu gosto. Como Fernando Pessoa na pele de Álvaro de Campos, eu também me cansei de semideuses há muito tempo.

E penso aqui no meu texto mais recente, no qual mencionei meu primeiro emprego, de professora de inglês. Tomo um susto. Penso nas turmas de Direito em que fui professora auxiliar, as vezes em que conduzi as aulas sozinha, aqueles estudantes todos me olhando, anotando o que eu falava, levantando a mão para me questionar, que frio na barriga de quem está viva e pensando.

E hoje nas formações de mediadores, nas oficinas de leitura e escrita para jovens eu continuo lá, nesse lugar da professora, mas sem conseguir assim me nomear. Talvez eu ainda ache que não estou à altura. Porque ser professora é grande. Grande demais!

A sociedade do cansaço pode ficar sempre mais cansada – ou não

Eu tinha quatorze anos quando consegui meu primeiro trabalho, de professora de inglês para crianças ainda não alfabetizadas. Logo depois ganhei uma turma de crianças maiores. E depois outra. Lembro de corrigir as lições dos meus alunos durante as aulas de inglês que tinha na escola. Enquanto ficávamos no “I am You are He She It is”, a professora me dava uma piscadela e eu seguia fazendo as correções. No fim da semana eu estava bem cansada, ao que meu pai me dizia: você não tem ideia do que é o cansaço.

Dei aula de inglês até deixar a cidade em que cresci para voltar para a cidade onde nasci (São Paulo que nunca saiu do meu coração) para fazer faculdade. Logo consegui um estágio perfeito para quem estudava de manhã. O estágio na emissora de tevê começava só após o almoço e seguia madrugada adentro, fosse nas gravações de shows e eventos fosse nas geladas ilhas de edição, para onde eu levava muito café e chocolate. E tinha as gravações nos sábados, domingos e feriados. Lembro de chegar em casa após a primeira semana com aulas na faculdade, produção, captação e edição de shows e me deitar no chão da sala mesmo, braços e pernas espalhadas e olhos fechados, achando que dali nunca mais sairia. Já não morava mais com meu pai, mas me fiz a pergunta: será que agora sei o que é o cansaço? Ah, os nossos limites que sempre se alargam.

Terminei a faculdade, continuei trabalhando nessa emissora, depois mudei, era produção de tarde e de noite, edição na madrugada, um pouco de sono pela manhã, programas ao vivo nos finais de semana, fui assaltada em São Paulo, comecei a ganhar uma síndrome de pânico, resolvi estudar Direito e voltar para o interior, dei mais aulas de inglês, logo já veio o estágio na advocacia, depois a chance de estagiar em escritórios maiores na capital, não quis mudar de escola, estrada todo dia, estágio de manhã e à tarde, faculdade à noite, poucas horas de sono, achava que já sabia o que era cansaço, mas não, meu pai tinha razão, eu não tinha nem trinta anos, dava até tempo de fazer ioga, me formei, continuei no escritório da capital, casei e voltei para São Paulo de vez, onde nasceram meus filhos.

Meu riso agora (que você não está vendo, mas que está aqui no meu rosto) é de nervoso. O que eu achava que eram poucas horas de sono até então era, na verdade, um banquete. Eu ouvia as amigas falarem que com um bebê em casa a gente mal conseguia tomar banho e não conseguia imaginar como isso era possível. Afinal, o que tanto faz um bebê para impedir a mãe de um banho? (Meu riso agora cresce e sinto até palpitação). Lembro da primeira vez em que consegui lavar e secar o cabelo, meu filho com uns três meses, e da sensação de que, talvez, talvez um dia, mesmo que longe, eu teria minha vida autônoma de volta.

Meu filho mais velho não tinha nem um ano e meio quando nasceu o segundo, o bebê que chorava de três em três horas para comer, feito um relógio suíço programado por um alemão. Lembro de me deitar às vezes na cama, olhar para o marido e dizer: não é possível que esse cansaço que estou sentindo exista. Mas era, e eu o sentia. E isso que eu tinha marido, ajudante em casa, mãe, irmã, cunhada e sogra a postos, amigas, dinheiro para pagar a maioria das contas, a dos médicos incluída. Eu chorava no banho para dar um alívio ao cansaço e pensava nas tantas mulheres e mães como eu, só que sem a minha sorte e os meus privilégios. Passei a entender tantos comportamentos, mas tantos…

Sim, o cansaço foi se transformando em pânico que se transformou em depressão, que fica para outro dia, outra história, tantas outras histórias, mas meu pai me olhava e já não me falava que eu ainda não sabia o que era cansaço. Até porque sabia o que podia vir se falasse. Já enfrentou uma mãe exausta? Então.

Assim como não me falou dias atrás, quando cheguei para passar uns dias com ele e minha mãe, carregando filhos, sacolas, livros, apostilas, malas, mochilas de escola com as lições vencidas e vincendas, computador para as aulas, cronograma de cada um, mais o meu, revezamento de computador e celular para todo mundo poder fazer o que tem que fazer pela tela, agora você tem aula, depois é a minha reunião, mil e quinhentas mensagens no Whatsapp a cada duas horas, agora quem tem aula é você, depois eu dou aula, enquanto eu dou aula ninguém me chama peloamordasdeusas, e depois das aulas saiam da tela, nosso cérebros vão derreter e nossos olhos ficarão quadrados, não é possível que isso vá acabar bem, mas, mãe, a gente sai da tela e vai pra onde agora? Nós também estamos cansados, mãe.

Não. Não digo para eles que ainda não sabem o que é o cansaço. Dou um abraço, me permito chorar um pouco. Estamos todos muito cansados, eu digo, vamos fazer o possível, fazer o que dá para fazer agora, pegar um livro cada um, por exemplo, deitar juntos na cama, cada um com seu livrinho, uma viagem individual que pode ser compartilhada, leio um pouco e te conto um pouco, você lê e me conta, e a ficção vai entrando e conversando com a realidade, o que é uma e o que é outra, e o corpo vai esquecendo do cansaço, a cabeça vai para longe e volta, vai e volta, e tem risada e tem mais choro e estamos juntos – estamos juntos.

O que acham dessa ideia, hein?

Cinco caixa-lotes e um abraço

Nunca precisei estudar muito Língua Portuguesa e História para tirar boas notas na escola. Eu prestava atenção porque gostava das aulas. Sei lá como isso se dá. Só sei que me lembro perfeitamente das aulas de alfabetização, mesmo com a vovó viu a uva. Para cada letra do alfabeto minha professora criou um personagem. Fez os desenhos no papel, pintou, plastificou e colou cada um em um espetinho de madeira de churrasco. Uma espécie de fantoches. Lembro que a letra “b” era uma bailarina. O corpinho delgado era a parte alongada do “b”. E um dia a bailarina se encontrou com o índio, corpo magrelo como o da letra “i” e juntos foram passear num “bi”. Fiquei maravilhada com esses encontros que de bi viraram bicicleta, bisteca, biblioteca e por aí vai, por aí fui.

Nunca tive dificuldade para entender a crase. Artigo mais preposição (sei ainda de cor toda a lista das preposições) sempre fez sentido para mim, assim como as frases subordinadas. Adorava fazer análise sintática. Com História era a mesma coisa. Não entendia o sofrimento das amigas que não entendiam História. Nem sei se um dia achei que havia algo para ser entendido, mas não é divertido saber o que aconteceu, como aconteceu? Não, muitas me diziam. E trocávamos lições e trabalhos de História pelos de Matemática e Física. Até hoje não me conformo que eu precisava ficar calculando quando o carrinho A encontraria o carrinho B na estrada X se A estivesse a sei lá quantos quilômetros por hora e B blá blá blá. Uma hora encontra, professora, eu queria dizer, e aí faz tchauzinho e tá resolvido.

Cheguei a tirar meio em uma prova de Física. Meu pai, depois de se recuperar do quase enfarto, disse que o meio ponto foi por eu saber meu nome (hoje talvez nem isso eu conseguiria). Mas a professora me chamou e me fez uma proposta: se eu te der uma nova prova, você estuda? Porque ela percebeu que eu realmente não estava nem aí para a Física. Aceitei a proposta, honrei a chance e tirei dez. Mas meu sangue continuou só borbulhando pelas Humanas. Se acho importante passarmos por tudo? Claro. Me arrependo de não ter estudado mais Matemática e Física (e Biologia também, vai)? Não. Mas a vida, ah, a vida…

Se a crase fazia sentido para mim, o mesmo não se dava com as operações com frações, por exemplo. E a pandemia me pega com um dos filhos bem nesse momento na escola. Por que, minhas deusas, eu preciso rever a soma, a subtração, a divisão e a multiplicação de frações próprias e impróprias? Impróprias são as palavras que eu tenho vontade de falar para o meu filho que me pede ajuda e que não tem nada a ver com o fato de ter uma mãe constituída inteiramente de Humanidades. E tem o outro que está aprendendo divisão e não usa mais chave para armar a operação. Tantos anos tentando fazer as contas armadas e agora não me servem de nada.

Hoje entendo minha mãe, que também não podia me ajudar com o método ultrapassado com o qual tinha aprendido. A gente envelhece de várias formas. Tenho vontade de me jogar aos pés de minha mãezinha e pedir perdão por tudo o que pensava quando ela não conseguia me ajudar. Talvez eu faça isso quando pudermos (se pudermos) encostar nas pessoas novamente. Talvez eu peça perdão por isso e por tanto mais, já que ela foi uma mulher adulta dedicada integralmente aos filhos e à casa. E não nos matou. Nem mesmo nos causou grandes traumas. Que feito! Não tem salário de CEO que pague essa trabalheira, mas isso fica para outro dia.

Por ora, olho minha pilha de livros para ler, o que tanto eu gostaria de fazer após todo o trabalho feito, enquanto aprendo a usar caixa-lote na divisão. Para cada caixa-lote, umas dez ou vinte páginas a menos na minha vida. Para quem é mortal e ama ler como eu, é muita coisa.

PS: termino agora de revisar esse texto. Meu filho mais novo entra no quarto: obrigado, mãe, por me ajudar com a lição de Matemática. Vinte páginas a menos, mas valeu a pena. Ah, a maternidade.

Mais uma semana no país do passado

Estou me sentindo meio Regina Duarte, o que é horrível. Não, na verdade não é bem Regina Duarte. Porque ela tinha tantas coisas bonitas para falar. E eu não tenho. Ou até tenho. Começou a primavera e não foi sem alegria que percebi que a Terra, mesmo plana, continua girando e as flores entendem que uma estação nova começou. A luz do sol incidiu no gramado, um passarinho veio procurar o resto do meu lanche, uma árvore cujo nome desconheço amanheceu com a copa roxa e eu vi beleza em tudo isso. Vi. Eu juro. E até suspirei. Vi meu filho desligar a tela e andar de bicicleta. Suspirei também. E quase chorei.

Mas tudo isso não basta. Não tem bastado. As mortes ainda são muitas. Milhares. Teve o sete de setembro e o vírus CDF nem ligou para o feriado e foi trabalhar, que coisa! E nem só de COVID se morre nesse país. Os jovens negros nas periferias, por exemplo, continuam morrendo. A última estatística que temos é de 1 morte a cada 23 minutos. Não escrevi errado. Mi-nu-tos. E teve onça pintada nos olhando pelas telas com o olhar de quem morre aos poucos e sem amparo. Porque é assim que se morre no Brasil. Teve céu amarelo de tanto fogo. E aldeias queimadas e indígenas sem ter para onde ir (do pouco que já lhes resta) e parece que essas mortes vão grudando na pele e me pesando e me impedindo o sono e o descanso e a paz e a higiene e a vontade de sair da cama de manhã. Tudo tão seco que nem chorar mais tenho conseguido.

A internet por aqui também continua funcionando, ou melhor, quase sempre, o que é uma coisa boa também em época de isolamento, não? Apesar de que essa semana liguei quase chorando para o suporte da escola das crianças. Porque teve hacker-hater invadindo a aula das crianças. Sim, teve. E tivemos que mudar todos os acessos das crianças e na minha cabeça já não entra mais informação nova e sobrou para o rapaz do suporte que não sabia se me orientava ou me consolava.

E soube de mais invasões em congressos e aulas e seminários e palestras. Xingam as feministas. Xingam quem fala contra o racismo. Xingam quem se preocupa com a situação das pessoas encarceradas. Xingam quem luta contra a violência contra a mulher. Ah, é. Porque isso também não só continua acontecendo como também piorou. Mas xinga-se. Não basta não se preocupar com essas causas. Não basta querer que tudo continue como está ou sempre foi. É preciso ainda impedir que se lute contra toda essa violência. E impedir com mais violência. E não há ficção que resolva porque a boa ficção é boa justamente porque não é alienante. Por isso também o medo dela. Xinga-se quem defende o direito à leitura de literatura. Acaba-se com os programas existentes. Houve até reescrita de histórias para crianças. Porque agora tudo deve ser edificante na literatura. O país, que já era um grande cemitério, tornou-se também um crematório. Mas a literatura, veja bem, não pode mostrar as maldades. Somos tratados como grandes estúpidos incapazes de associar fome com bolacha.

É… eu até queria falar de coisas bonitas. Quem não queria, não é, Regina? Mas se os olhos estão abertos e se há ainda alguma ética, não dá para silenciar. Posso ser ficcionista, mas não sou uma mentirosa ardilosa, o que também teve esta semana.

Verde é a cor da grama onde não pisamos mais

Acordei até que animada para uma reunião que teria logo cedo, o primeiro compromisso do dia depois de acordar os filhos e verificar o que iriam comer e se já não estavam atrasados para as aulas. O mais novo está em semana de Olimpíadas-virtuais-com-cara-de-gincana-mico e depois de termos gravado um vídeo, na noite anterior, em que simulávamos os movimentos do nado sincronizado no seco, ele me pediu para ajudar na composição de um grito de guerra com gravação de novo vídeo. Eram sete da manhã, verde é a cor da equipe do meu menino e mesmo xingando a ideia da escola, por mais que um lado meu entenda todo o esforço e até agradeça muito, não resisti à carinha dele me pedindo ajuda. Só eu poderia passar ridículo com ele, eu que já dancei o créu em um barquinho cheio de turistas na República Dominicana, o que fez meu filho corar ao se lembrar da cena, ao mesmo tempo em que confirmou a certeza de que eu passo ridículo rindo e seria a companhia ideal para a gravação do grito de guerra. Sete da manhã e pulei da cama, “claro que te ajudo, filho”, e me vesti toda de verde, vestido, colar, brincos e achei exagero os óculos, mudei para os de aro roxo, aprendi o grito com ele – ele que inventou, ensaiamos, igual ao ensaio do nado sincronizado no seco, trancados no banheiro para o pai e o irmão não verem, eu toda no verde e já pronta para a reunião que viria em seguida, veeeeeeeerde, veeeeeeeerde, verde é a cor da grama…, vi os vídeos com as outras mães, mães me comovem, cada coisa que fazemos, cada coisa que nossas mães fizeram por nós, rindo e sorrindo, veeeeeeeerde, veeeeeeeerde, acabou, ufa, o vídeo ficou bom, ele gostou, abri o computador para ir para a reunião, é assim que vamos agora, abre tela, fecha tela, abre tela, fecha tela, e atravessamos quilômetros. Essa semana fui até Angola, ouvi Ondjaki falando, outras pessoas de Angola e em Angola ali, na minha tela, a literatura em torno de nós, precisei ler Ondjaki para poder dormir – meu corpo é assim, se não lê pelo menos algumas páginas por dia não dorme à noite, roda roda roda na cama, e eu sei que é o livro que ficou faltando, então não resisto, assim como não resisti ao meu filho . E abro o livro e leio, às vezes atravesso a madrugada e ela não se torna mais um sapo boi gigante querendo me devorar. Às vezes poucas linhas fazem com que meus olhos se fechem e meu corpo se acalme, e essa noite foi assim, poucas páginas, e eu toda no verde com óculos roxos, cadê o link?, cadê o link?, outra pergunta que não aguentamos mais, cadê o link?, você tá mutado; caiu?, acho que caiu, voltou!; e dá um aperto, uma vontade de gritar que não farei mais nada a distância, mas tanta coisa melhorou a distância, e a reunião não era hoje. Acordei adiantada. Estou verde, brinquei com os outros participantes pelo Whatsapp, alguns achando que tinham perdido a reunião que era só amanhã diante da minha confusão. Mas amanhã estarei madura. Espero.

Tem alguém aí? Ou você ‘prefere não’?

Fui até a academia esta semana. No espaço reservado para as bicicletas ergométricas, que foi o que fui fazer, onde antes podiam ficar umas dez pessoas, agora só duas. E eu estava sozinha. Coloquei os fones de ouvido, tentei ver ou ouvir algo pelo celular, mas nada está bom, nada serve, nada atrai, tirei os fones e fiquei vendo um jogo de tênis que passava na TV, que já estava ligada quando cheguei. Foi quando ela chegou, olhando para as bicicletas disponíveis longe de mim, escolheu uma, na outra ponta, mas antes de começar o exercício foi até o controle remoto da TV, que estava apoiado em uma bicicleta mais perto de mim, e começou a mudar os canais até achar um de receitas. Aumentou o volume no máximo possível. Mesmo se eu colocasse meus fones, ainda ouviria o sotaque francês do cozinheiro.

Fui atravessada pela lembrança de ver meu pai dirigindo na chuva e desacelerando o carro toda vez que passava em frente a um ponto de ônibus. Intrigada pela atitude – obedecia ele a uma lei de trânsito? -, perguntei por que ele sempre diminuía a velocidade quando estava chovendo e passava de carro por um ponto de ônibus e a resposta foi: “para não espirrar água nas pessoas que estão esperando ônibus já debaixo de chuva”. Meu pai, que só foi dirigir adulto e deve ter tomado muita água nos pontos, conseguiu me dar uma vida longe do transporte público, o qual passei a usar por escolha, mais adulta. E já tomei muita água na cara e no corpo em dias de espera na chuva. Porque tem motorista que não desacelera. E tem motorista (ainda a minoria) que aproxima o carro da calçada e acelera ainda mais. Tive a impressão de que minha colega de bicicleta era das que não desaceleram.

Saí da bicicleta e fui até ela, de máscara. Você vai achar muito ruim se eu agora voltar para o jogo de tênis no mesmo volume que você está ouvindo? Ela me olhou assustada. Era mesmo das que não desaceleram no ponto. Desculpa, eu nem imaginei que você estivesse vendo o jogo, pode mudar de novo, ela me disse. E eu expliquei que não estava vendo o jogo, que não vou fazer exercício para ver algo na TV, e se for sei que corro o risco de ter que combinar com os amiguinhos que também estão no mesmo espaço que eu com uma única tevê se posso ver o que quero com a anuência deles. “Eu nem te vi”, ela me disse, e continuava achando que eu só queria o controle de volta. “É esse o problema”, eu disse, “é justamente esse o problema, você nem me viu”. E voltei a ouvir minha voz insistente, dizendo para os meus filhos todas as vezes em que passamos pelos porteiros do prédio: falem oi, falem bom dia, boa tarde, boa noite, falem obrigado, falem tchau, peloamordedeus tem uma pessoa aí, abrindo e fechando a porta para vocês, é uma pessoa e vocês passam por ela como se ela não estivesse ali. E eles ainda passam, na maioria das vezes, como se não houvesse uma pessoa ali. E eu explico que eles têm direito à moradia, mas não a um porteiro para abrir e fechar a porta para eles. Isso não é um direito posto para vocês, entendem? Acho que ainda não, mas espero e me esforço para que entendam um dia.

E cheguei em casa e liguei para uma das minhas amigas mais antigas, que sabe de mim desde os 6 anos de idade, e perguntei se ela se lembrava da vez em que estávamos na padaria, pegando sorvete naqueles freezers horizontais com tampa que abre para cima, e ela, depois de pegar o sorvete que escolheu, soltou a tampa na minha mão, que ainda escolhia? E que o pai dela ficou como que possuído e gritou tanto que até minha dor na mão passou e quanto mais ela falava “desculpa, eu não vi”, mais o pai dela falava “pois é esse o problema, não ver o outro”? Ela não se lembrava, mas sou testemunha de que aprendeu a lição. “Nós temos sorte”, eu disse pra ela. “Muita”, ela concordou, mas também seguimos atentas às lições. Enxergar uma pessoa é uma escolha que se faz todos os dias.

Tudo bem?

Assim que o mais recente livro da italiana Elena Ferrante entrou em pré-venda pedi o meu pelo Kindle. No dia 1° de setembro ele será baixado automaticamente, foi mais ou menos esse o teor da mensagem que recebi. E pouco demais da meia-noite lá estava ele, “A vida mentirosa dos adultos”, disponível no aparelhinho sem cheiro. Com meu pai no hospital em um entra-e-sai de cirurgias e exames, sem dormir há tantas noites, comecei a ler naquela madrugada mesmo. Não, ainda não terminei. Sim, já fui fisgada mais rapidamente por outros livros da italiana, mas continuo com ele, ainda pelas madrugadas insones e solitárias, entrando nessa vida mentirosa dos adultos que já conheço tão de perto.

Ontem saí do isolamento para ir ao enterro de uma pessoa muito querida, enquanto recebia a notícia de que meu pai ia sair da UTI. Fazia calor e o sol estava bem brilhante no meio da tarde, as gotas de suor que caíam das nossas testas se misturavam com as lágrimas debaixo das máscaras, o que fazia com que nos afastássemos um pouco do grupo de pessoas já distanciadas para enxugar esse líquido do rosto sem a máscara. Tira máscara, tira óculos, passei batom só para melar mais a máscara?, limpa o rosto com as mãos, põe máscara de novo, mais suor, mais lágrimas, alguns, como eu, de olhos fechados para escutar melhor o rabino que falou, atrás da máscara grossa, que o melhor que podemos fazer para honrar nossos mortos é continuar vivendo intensamente, de preferência colocando em prática os bons exemplos que nos deixaram, sugestionando também que seria bom praticarmos a justiça social. Achei simples e bonito, me afastei um pouco mais para enxugar mais uma vez o rosto.

Só se abraçaram aqueles que já estavam isolados juntos. Ou pelo menos a maioria fez assim, enquanto um vento soprava e levantava umas folhas do gramado agora aberto em um retângulo onde o caixão foi colocado. Peguei três punhados de terra para jogar sobre ele, fiquei com as mãos vermelhas e grossas, um pouco de vida na pele há tantos meses asséptica. Recusei o álcool gel que me ofereceram em seguida, uma das folhas ainda rolava sobre o gramado, alçando pequeninos voos. Ouvi um amém em uníssono. Dava para ouvir passarinhos e a sombra dos carros na estrada logo ali.

Terminada a cerimônia, fui apresentada a algumas pessoas, de longe, que por trás dos olhos inchados e das máscaras me diziam “prazer, tudo bem?”, e eu sorria, inclinava a cabeça para o lado e levantava os ombros. De onde vem essa nossa mania de perguntar “tudo bem?” em vez de perguntar “como você está?”, por exemplo? Em meio a essa pandemia, a cada “tudo bem?” que é dito já vem uma explicação: quer dizer, tudo bem não, né?, mas você entendeu? E precisamos de pandemia para repensar essa forma de perguntar? Quando é que, na vida adulta, está “tudo bem”? Essa pergunta, com a resposta “tudo bem”, é também parte da vida mentirosa dos adultos? Das mentiras que contamos não só para os outros, mas para nós mesmos? Sim, eu estou bem, eu estou aguentando, eu estou me fortalecendo, eu não estou desistindo, mas não está tudo bem. Tudo está bem longe de estar bem.

[…]

Fim da trigésima quinta semana do ano. Fim de agosto. Fim do ano quase na esquina. Fim de tantas vidas conhecidas nesta semana. As notícias vão pulando nas telas do celular e do computador e as palavras não são encontradas. Ensaio, ensaio, ensaio, queria tanto dizer mais do que um “sinto muito”… não que eu não sinta, pelo contrário, é justamente mais do que isso, tenho é sentido no nível do indizível, do inominável, e ensaio, ensaio, ensaio e tudo o que consigo dizer ou escrever, no fim de tanto ensaio, é “sinto muito”.

Um minuto de silêncio. Desde que conheci a morte de perto, sempre achei tão pouco esse um minuto. Minha primeira grande paixão, aos 20 anos apertado dentro de um caixão rodeado de flores brancas, o cheiro até hoje nas minhas narinas, e eu não entendia como o mundo continuava fazendo barulho lá fora. A vontade de sair correndo daquele velório e gritar na rua “parem tudo, parem tudo, meu amor morreu”, mas os carros passavam e o padeiro vendia pão e o gari varria a rua e as mães se apertavam nos portões das escolas às cinco da tarde. Como no poema do Ferreira Gullar sobre a morte de Clarice Lispector.

As pessoas sendo enterradas, agora sem o ritual da despedida, pelo menos o ritual que conhecemos até agora e que, entendi, mais do que nunca agora, é tão importante. Consigo me lembrar dos abraços que recebi no dia em que enterrei esse namorado, mesmo passados já quase 30 anos. O que uma amiga falou no meu ouvido na hora do abraço. O abraço de uma professora que não conseguiu falar. As bocas abertas e nenhuma palavra a sair. Quantas pessoas passando, só hoje, pelo que passei naquele dia, sem os abraços?

E a quadra do clube aqui ao lado de casa está sendo reformada e tenho pegado no pé dos meus filhos para que entreguem as lições de casa no prazo e tenho me preocupado com o horário das refeições e feito planos tentando não sucumbir à vontade de deitar no sofá e chorar com os joelhos no peito, esforço que em algum momento vai romper e não sei o que levará de mim, mas agora também não é hora de antecipações, dar conta do presente já tem exigido muito do passado e do futuro. E sei que virou clichê, mas é verdade que eu queria estar escrevendo com mais esperança e menos cansaço, animada com a reforma da quadra e com o pão caseiro que ficou bom e com a quintadinha que descobri perto de casa cheia de orgânicos… mas são muitas as mortes e eu preciso escutar o silêncio.

 

Verão, outono, inverno e inverno

O cenário lá fora está branco e cinza. Eu gosto. Acho que combina com xícara de chá, lâmpada amarela e um livro. Pena que não posso passar o dia assim. Meu filho não entendeu a lição sobre classe dos números no milhar, milhão, centena, dezena, valor relativo e absoluto. Mentira, quem não entendeu fui eu e já devo ter escrito tudo errado aqui, mas me esforcei para ajudá-lo, até que disse: “se estiver errado tua professora te explica e tudo bem não aprender isso agora, isso agora é um valor relativo, entendeu, filho?” E o dia cinza com uma camada de ar branca e espessa cortando o horizonte de prédios. Quantas pessoas morreram nas últimas 24 horas? Parei de ver. E me sinto mal por isso. E se vejo também me sinto mal, literalmente fico sem saída dentro de mim e desse apartamento. E que bom que eu tenho um apartamento. Pare de carregar as dores da humanidade nas costas, Luciana, minha terapeuta já cansou de me falar. Mas como faz?, ainda não aprendi.

Está muito frio hoje. Será que o Sr. Wilson, que costuma dormir na calçada, vem hoje? Onde ele estará agora? Ontem ele disse que não queria lanche nenhum. “Mas eu trago pro senhor, Sr. Wilson”. “Traz não, taz não”, a voz dele saía fraca como sempre. Talvez ele me quisesse distante para poder ler.  Já percebi que ele prefere os clássicos. E que não gosta muito de conversa. Em dias como o de hoje gosto de ler os russos. E já vi o Sr. Wilson com “Crime e Castigo”.

Proibiram a leitura livre nos presídios de São Paulo. Uma gente que nem gosta de ler, decidindo o que aqueles que já são privados de todos os direitos lerão. De preferência livros edificantes. Essa gente não entende nada de literatura. Ou entende e justamente tem medo dela. “Pra cima de mim, não, que fique tudo como está”. Estou cansada. Estamos cansados. Às vezes penso que é muita sacanagem ter que ser brasileira a viva toda. De algumas nacionalidades podíamos tirar férias. Vocês, do Brasil, têm direito a um ano, a cada década, de viver na Escandinávia. Ou também não será assim? Além de frio, que dia é hoje? Ouço meu filho terminar uma aula, “valeu, galera, até amanhã”, e as janelinhas se fechando e meu peito apertando. A galera… O frio na pandemia brasileira é ainda mais gelado. Será que em novembro vou poder fazer uma festa de aniversário com meus amigos, mãe?, o mais novo pergunta. Em março eu ri dessa pergunta feita pelo filho que aniversariou em junho. Agora não rio mais. Há meses não rio mais. Não sei nada, meu filho, não sei nada de nada.

Todos os dias um pouco do que eu era e pensava e sentia e sabia se esvai. Nada de concreto onde me segurar. A cabeça dói, a ponta do nariz dói, a lombar, o osso do nariz onde os óculos se apoiam, os dedos das mãos, os pulsos, apareceu um calombo no meu punho esquerdo e eu sei que só tenho a agradecer. Onde estará o Sr. Wilson? Se ele aparecer hoje, eu levo um lanche, mesmo ele dizendo não e não e não. E talvez “Noites Brancas”, de Dostoiévski. Se ele não leu ainda, acho que poderá gostar.