Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2019 trabalhando free lance com produção e edição de conteúdos; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

‘Harry Potter’ é universal e atemporal

Logo que a febre em torno da saga Harry Potter chegou ao Brasil, torci o nariz pensando: “se é best-seller, não deve ser bom” (nós e nossos preconceitos!). Mas minha auto-regra, de só me permitir criticar o que conheço, salvou-me, porque fui ler. E não consegui parar! Passei até a experimentar uma espécie de “síndrome de abstinência” (uma tristezinha misturada com um desejo louco de “quero mais”) cada vez que terminava um livro, tão viciada ficava na leitura.

Apesar de a obra estar catalogada como infanto-juvenil, eu já tinha uns 30 e poucos anos quando aderi a seu fã-clube. Conheci, desde então, algumas dezenas de amigos da mesma geração ou mais velhos que também a adoram. Somos a prova de que as obras de qualidade dialogam com todas as faixas etárias. E eu explico a seguir como Rowling consegue isso:

Além de muito bem escritos e cuidadosamente bem traduzidos (Deus sabe como isso é importante!), os livros da saga Harry Potter agregam vários gêneros sob o guarda-chuva da ficção infanto-juvenil: suspense, romance, toques de terror e doses cavalares de críticas social e política – estas últimas explicitadas no universo/cenário que a autora constrói para seus personagens atuarem.

A narrativa é cheia de camadas, que convivem sobrepostas. Cada leitor alcança um número delas, conforme o tamanho de seu repertório interno. Vejamos:

As crianças, por exemplo, alcançam a camada mais exposta dessa construção, que é a aventura em si.

Os adolescentes avançam uma além, ao reconhecerem (e se reconhecerem) nos personagens as motivações que os movem por cada aventura.

E os adultos mais intelectualizados são aptos a enxergar arquétipos contemporâneos e representações de estruturas sociais e de poder – tudo disfarçado por uma embalagem de fantasia.

E os cultos ainda podem se divertir identificando fontes culturais onde Rowling foi buscar referências. Por exemplo: o latim é usado na obra para nomear feitiços (“crucio” = eu torturo, “accio” = eu conjuro, “diffindo” = eu reparo) e personagens (“Severus” = severo, “Lupin” = lobo, “Albus” = branco, todos boas descrições de seus donos);

A autora foi buscar na cultura greco-romana nomes para criaturas fantásticas (centauros, basiliscos, mantícoras, esfinges, fênix, por exemplo) e personagens cujas características têm tudo a ver com os mitos que referenciam. Exemplos: Minerva, deusa da sabedoria, nomeia na saga a professora mais sábia da escola de magia Hogwarts, McGonagall; e a deusa da lua empresta seu nome a Luna Lovegood, a colega de Harry considerada meio “lunática” pelos bullyers de plantão.

Já a jornada do próprio Harry Potter se encaixa no conceito do pensador norte-americano Joseph Campbell (vide livro “A Jornada do Herói”).

Entre as representações sociais mais didáticas da saga está a de uma muito familiar à nossa história recente. No quinto livro, Harry Potter e a Ordem da Fênix (ALERTA DE SPOILER!!!), a autora descreve brilhante e didaticamente um regime de opressão, quando o Ministro da Magia, determinado a manter seu poder, envia uma inquisidora a Hogwarts, que adota medidas autoritárias para sufocar liberdades de opinião e  livre expressão.

A criança pode não fazer a analogia com a realidade logo que lê a história, mas seu inconsciente o fará quando seu cérebro atingir a idade certa. Adolescentes e adultos o farão em seus próprios termos e conforme (repito)  seus repertórios internos e disposições  à reflexão (nem todos estão dispostos).

Todas essas camadas e referências, em minha opinião, tornam a obra universal e rica, estimulando  o leitor a buscar mais conhecimento. Parece que está só entretendo, mas está também enriquecendo seu repertório..

E a fantasia é de respeito! Criativa e inteligente, também apreciável por todas as idades.

Atemporal

Considero genial a autora distribuir a saga Harry Potter por sete livros, sendo um para cada ano da vida de seu protagonista, durante um período nevrálgico da formação humana (dos 11 aos 17 anos). Sobretudo nas culturas ocidentais, é a fase em que ocorrem os ritos de passagem da infância para a adolescência, que, em si, já é uma preparação para a entrada na vida adulta. Todo ser humano, em qualquer era da história conhecida, passa por esses ritos, o que também torna a saga atemporal.

Assim é que, no primeiro livro, o bruxinho e toda sua geração assemelham-se a “telas em branco” prestes a terem iniciada a “pintura” do adulto que serão. As tintas são as experiências pelas quais passarão, e os pincéis, as escolhas que cada um fará diante de cada situação.

O padrinho Sirius Black lida com as dúvidas de Harry: ‘todos temos o bem e o mal dentro de nós’

Não por acaso a autora bate muito na tecla das escolhas como determinantes do “destino” – acima da genética e da crença no pré-determinismo. Harry, por exemplo, passa grande parte da saga atormentado pelo medo de estar condenado ao mal, como Voldemort, já que teve uma primeira infância muito similar à do vilão e carrega uma ligação interna com ele desde o episódio traumático da morte de seus pais. É lindo ver como ele vai, aos poucos, chegando à conclusão de que pode escolher e que tudo o que viveu até ali o municiará em cada tomada de decisão.

Amizades norteiam escolhas

Seus coadjuvantes mais próximos – e em uma certa medida, co-protagonistas –, Roni e Hermione, atravessam os mesmo ritos, cada um a seu modo, a partir da própria bagagem interna, mas com um sentimento comum a uni-los que faz toda a diferença na hora das escolhas: a amizade. Não por acaso o mesmo sentimento necessário para seguirmos a premissa ética de “fazer ao outro o que gostaríamos que fizessem a nós mesmos” – variação racional de um ensinamento deixado por um “cara famoso” há cerca de uns 2 mil anos.

Por tudo isso, não tenho dúvidas: “Harry Potter” não é só o fenômeno editorial de uma geração, mas um clássico. Ou seja, é para sempre!

 


P.S.: No meu blog de cinema (CINÉLIDE) também tem texto sobre a saga, escrito na ocasião de lançamento do oitavo filme da franquia do cinema: “Harry Potter: lições que podem salvar uma geração


 

GALERIA (clique numa foto para ampliá-la e abrir a galeria)
Nos filmes, atores também passam da infância à adolescência sob os olhares do público

Maya (ou a gata mais linda do mundo)

O nome é Maya, os apelidos “Neguinha” ou “Gordita”… mas tanto faz… ela não atende por nenhum! Costumo dizer que seu nome só serve para sabermos como nos referir a ela.

Sua origem não explica a pose e o comportamento indolentes de “lady”. Conta sua primeira protetora (a querida Inês Rodrigues) que foi resgatada junto a um morador de rua, após ter sido abandonada pela dona de sua mãe.

Sabe-se lá o que comeu então, pois chegou já fraquinha do intestino – uma diarreia que não tinha fim com remédios e só melhorou após testarmos várias rações e acertarmos com uma (cara!) à base de arroz e frango. Ainda assim, volta-e-meia temos que corrigir uma ou outra ocorrência com pasta de aminoácidos (que ela odeia)!

Preguiçosa, Maya parece viver só pra dormir pelas camas, caixas, arranhador e pias do apartamento – ou onde bater o melhor sol.

Enquanto escrevo este post, por exemplo, Márcio tenta registrá-la pela lente do celular toda esparramada no chão, no sentido da fresta de sol que entra pela janela (foto abaixo). Mas basta ela perceber a atenção pra começar a rolar de um lado pro outro, contorcendo-se em dengos.

Abusa do charme, a gostosa!

Não costuma se dar ao trabalho nem de miar. Sabemos que está com fome quando se senta ao lado de seu pratinho vazio e nos endereça um olhar inquisidor. Quando o faz – muito raramente -, sai um sonzinho agudo, baixiiiiinho, que até duvidamos se ouvimos mesmo.

As exceções são os dias de banho… Aí sim a miadeira é alta e angustiada.

Arisca, Maya só dá atenção a um humano quando lhe interessa algum biscoito sabor carne. Blasé, interessa-se pouquíssimo pelo que acontece em torno de si – o maior dos barulhos em casa merece-lhe, no máximo, uma semi-abertura lenta dos olhinhos amarelos.

Adora uma carícia!

Adora uma carícia, mas debate-se toda quando lhe pegam no colo. Não porque não goste, mas porque é ela quem decide a hora de interagir com seus humanos. Quando quer, sobe em nossas pernas ao sofá e afofa o tecido de nossas roupas antes de enrodilhar-se em nosso colo. Na cama, quando está para amanhecer, deita em posição de esfinge sobre meu peito e assim fica até eu fazer os primeiros movimentos de levantar.

E que fotogenia! É linda vista de qualquer ângulo, em qualquer pose, sob qualquer luz… para o que contribuem os olhos claríssimos, em contraste com os pelos longos e eriçados, que lhe arredondam ainda mais a silhueta fofinha.

Pra mim, é a gata mais linda do mundo!


Leia também “Leia também “Loki (ou pode chamar de ‘demoninho’)


 

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I

Peregrinas ribeirão-pretanas na Via Francígena

Silvia Pereira

Venho acompanhando de longe, com uma “invejinha branca” – confesso! -, mas também morrendo de orgulho, a aventura de três amigas queridas: Sheilinha, Marcinha  e Adriana, que conheço desde a faculdade de Jornalismo. Elas formam, com outras quatro ribeirão-pretanas – RenataVera, KeleRegiane -, o grupo Peregrinas Mundo Afora, que percorre desde o dia 18 a Via Francígena (rota medieval de 2.000 km, que começa na cidade inglesa de Canterbury e termina na italiana Roma).

Minhas queridas planejaram percorrer parte dela – 900 km, de Gran San Bernardo (Suíça) a Siena (Itália) -, durante 30 dias (!!!), dormindo cada dia em um lugar e levando cerca de 7 kg de bagagem às costas.

Não é a primeira peregrinação para algumas delas, que iniciaram-se no Caminho de Santiago – se não me engano em 2013. E não pararam mais de caminhar, seja em suas próprias vizinhanças, no dia-a-dia, ou por trilhas em meio à natureza desse Brasil tão cheio delas.

Seguem com elas, na viagem, desejos de integração à natureza, de conhecimento genuíno das pessoas pelo caminho e reflexão sobre todas as experiências que vierem.

Leio na fanpage do grupo que a ideia da atual caminhada foi de Sheilinha e sua amiga Renata. Surgiu a partir da leitura de “O Filósofo e o Peregrino”, do brasileiro Marcos Bulcão, que traz relatos dessa mesma viagem recheados de informações históricas e reflexões filosóficas.


“Seguem com elas desejos de integração à natureza,
de conhecimento genuíno das pessoas pelo caminho
e reflexão sobre todas as experiências que vierem”


Seguiram-se dois anos de preparativos, pesquisas e planejamento, no qual ficou definido que andariam uma média de 25 km por dia, numa variação altimétrica inicial de 2.500m.

No caminho, desafiam pés, músculos e articulações a driblarem bolhas, infecções, dores e lesões. “Um exercício de perseverança e fé”, segundo elas.

É Sheilinha quem me explica que cada uma das sete peregrinas tem sua própria motivação interna, mas as une um desejo comum de “uma viagem entre amigas com alto grau de dificuldade e, ao mesmo tempo, em meio a paisagens deslumbrantes”.

E como ninguém é de ferro, está nos planos premiar o corpo com degustação de pratos e bons vinhos locais.

Posso bem imaginar os prazeres e o sentimento de completude que essas moças devem estar experimentando a cada etapa da jornada.

Estou seguindo com elas, pela fanpage, morrendo de vontade estar lá.

Na próxima, se Deus ajudar – e elas permitirem -, quero estar!

 

Abaixo as primeiras fotos da jornada postadas por elas na fanpage:
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Loki (ou pode chamar de ‘demoninho’)

Silvia Pereira

Frame do vídeo em que o vi pela primeira vez

Foi paixão à primeira vista. Quando vi o jeito curioso daquele filhote mover a cabecinha – que parecia maior que o corpo – e o olhar torneado de preto, feito kajal de maquiagem indiana, parecia que eu já conhecia aquela bolinha de pelos cinzentos com estampa de tigrinho.

Foi em um vídeo que a namorada de um amigo postou na internet que vi pela primeira vez aquela mimosura. Brincava com qualquer coisa que lhe roubasse o olhar, parecendo ter déficit de atenção – por que será que me identifiquei (rs)?

Eu não tinha gatos desde minha primeira infância, mas sempre quis – o marido proibia, cedendo ao preconceito geral de que são animais egoístas e traiçoeiros.

Então veio o acidente e aquela rotina toda. No ponto em que Márcio se prepara para voltar ao trabalho, a iminência de ficar sozinha pela primeira vez com minha convalescença me deu argumentos para exigir um bichano.

A viagem a Jaú para buscar a “bolinha de pelos cabeçuda” foi minha primeira após o acidente. Chegou toda ansiosa, miando muito de susto. Passei toda a viagem de volta cuidando de sua miadeira desesperada com cafunés e colo (com pouco sucesso).

A resistência do Márcio a gatos durou uns 10 minutos

A resistência de Márcio a gatos durou uns 10 minutos – se tanto.

Chamamos a bolinha de pelos de Maya por uma semana inteira até a primeira ida ao veterinário, quando descobrimos que “ela” era “ele” – o sexo dos filhotes demora a aparecer, favorecendo o engano.

Virou oficialmente Lóki – em homenagem ao deus da travessura e ao álbum solo do mutante Arnaldo Batista (“Cê tá pensando que eu sou lóki?”) -, mas pode chamá-lo também de “demoninho”, como Márcio faz sempre que o flagra numa traquinagem.

Explora as mais altas prateleiras

Quando entra no que chamo “modo Gremlin”, corre pela casa atrás de mosquitos e borboletas, marcando nossos móveis com seu parkour endiabrado; escala as telas que protege janelas e sacada e explora as mais altas prateleiras. Se algo cai ao chão, perto dele, esqueça! Dificilmente terá pernas para alcançá-lo antes dele se meter embaixo de uma cama com o tesouro à boca – pra ter de volta, só esperando a criatura cansar do brinquedo (praticamente um “gatorro”).

Para canalizar um pouco sua energia, gastei horas terapêuticas construindo-lhe um arranhador a partir de um banquinho alto de madeira, cordas e tapetes velhos. Tenho vídeos hilários dele brincando com o sininho que pendurei em um dos lados (assista vídeo abaixo) e fotos lindas de suas sonecas na redinha que improvisei na base (sua energia segue em alta, obrigada!).

Apesar da hiperatividade, Lóki chegou com tudo o que gosto em um pet. É carinhoso do tipo grudento mesmo – adora um colinho, segue-me pela casa e, se pego o laptop, já pula em cima para tentar roubar para ele toda a atenção. Manhoso, mia como se conversasse comigo. Sociável, nunca foge de visitas e se oferece para carinhos sem pudor nenhum. Mata de rir com sua atrapalhação e poses sem-modos.

Minhas postagens nas redes sociais ficaram monotemáticas após sua chegada, seguida pela de Maya, a gata (sobre a qual escreverei em um próximo post), porque eles encheram de alegria meu período mais solitário de recuperação.

Ainda enchem.

 

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‘Melhor a cada dia’

Silvia Pereira

Sempre invejei as respostas de meu colega José Manuel Lourenço àquelas protocolares perguntas “Como vai?” ou “Tudo bem?” (para a qual ninguém quer uma resposta de verdade):

“Eu estou sempre bem, estou sempre bem!”, responde nosso Mané. E está mesmo. Por escolha, vontade, chamamento, que o universo entende e obedece.

Fiz yoga, cresci no espiritismo e sou uma curiosa das filosofias que o livro “O Segredo” compilou, por isso acredito que a palavra é uma forma-pensamento com o poder de transformar a nós e nosso entorno.

Na prática, porém, eu nunca conseguia responder aos cumprimentos como o Mané. Se tentasse, tinha certeza de que me sentiria ridícula e falsa aos olhos de todos, porque não basta dizer qualquer coisa da boca pra fora. Apesar de toda teoria que eu engolia, nunca fui, assim, uma otimista – pense numa espírita sem muita fé.

Saber não é acreditar.

Daí que, concentrada na recuperação de minhas fraturas, desenvolvi uma percepção de como a melhora física respondia a meu esforço fisioterápico devagar e muito sutilmente… cada dia um movimentinho novo, uma dor um pouco menor, um músculo começando a acordar.

Tudo a conta-gotas, mas acontecendo… e eu vendo/sentindo.

Passei a acreditar que toda e qualquer melhora continuaria vindo assim, um pouquinho por dia, contanto que eu continuasse fazendo minha parte.

E veio.

De repente – e sem perceber, juro – já estava respondendo àquelas perguntas-cumprimento das pessoas com um: “Melhor a cada dia”. E sempre me lembrava rapidamente do Mané ao responder.

Eu, que sempre temia o pior, aprendia assim a acreditar no melhor.

Quase posso sentir os machucados de dentro começarem a melhorar também.

O universo encontrou seu jeito de me ensinar.

Como tudo começou

A história deste blog foi gestada durante um ano inteiro da minha vida que passei como jamais imaginei em meus piores pesadelos… ou sonhos.

Pesadelos porque tudo começou com um grave acidente de moto, no qual fraturei ossos das duas pernas… Sonhos porque, ironicamente, marcou o início de um processo de auto-conhecimento e resgates pessoais que nunca havia experimentado antes.

Passado o período de visitas e testemunhos de solidariedade que comumente se segue a um sinistro, ficamos só eu e meu marido às voltas com meus tratamentos. Ainda assim, na maior parte do tempo, de certa forma eu estava sozinha naquela condição de imobilidade e dependência física total, tentando elaborar aquilo tudo na minha cabeça.

Escrever, então – algo que passei décadas fazendo só profissionalmente -, passou a ser uma necessidade existencial e acabou se revelando terapêutica.

Publicar meus escritos no Facebook foi uma ação reflexa, que resultou numa interação insuspeita e muito bem-vinda em um período de isolamento forçado.

Fui estimulada a escrever mais e logo a criar um canal onde pudesse reunir meus escritos.

A rotina de hospitais, cirurgias, exames, sessões fisioterápicas e terapêuticas só me permitiu seguir essa sugestão quase um ano depois e graças a cursos online – que me obriguei a fazer nos períodos de convalescença para aproveitar o tempo de forma mais útil. Aprendi a criar blogs e o Palavreira foi o primeiro “filho” desta nova habilidade.

O nome referencia uma profissão imaginária de combinar palavras para dar sentido às coisas. E porque me imagino, às vezes, colhendo palavras de uma árvore frondosa para alimentar minha alma sedenta de expressão. Se essa árvore existisse, eu a chamaria assim (by the way, nasci no Dia da Árvore).

O blog Palavreira começa com alguns textos selecionados entre os que publiquei na rede durante meu período de recuperação, sob a hashtag “Crônicas de Acidentada”. Também selecionei os artigos que mais gostei de publicar no jornal onde trabalho desde 2012.

A ideia é que isso seja só o começo…

Porque escrever pura e simplesmente para expressar o que vai na alma, sem preocupação com objetividade ou deadlines, foi um prazer que resgatei para todo o sempre.

Pretendo seguir abastecendo o Palavreira com textos autorais, mas também com colaborações de amigos e qualquer outro conteúdo interessante – inclusive notícias – para quem, como eu, está disposto(a) a compartilhar a paixão pela escrita e o prazer da leitura neste fórum.

Considere isso um convite.

As lições que a dor oferece

Silvia Pereira

Dia desses minha terapeuta perguntou, à queima-roupa, o que aprendi com as experiências do último ano de recuperação de fraturas nas pernas.

Emudeci. Não tinha a menor ideia.

Desde então fico esquadrinhando memórias recentes pra tentar entender o que ficou para além dos fatos.

Ontem, na volta do médico, enquanto revivia o esforço de obrigar braços e perna boa a impulsionar meu corpo escada acima, trombei com a consciência de uma das lições que as dores físicas me ofereceram (nem sempre a gente aceita o que é ofertado, que fique claro): a de conseguir manter foco no momento presente – objetivo de toda meditação.

Antes do acidente havia tantos “e se” nublando minha consciência enquanto o cérebro tocava as ações do presente no automático: e se a renda do mês ficar aquém das contas a pagar? E se o mês que vem eu não tiver mais emprego? E se eu não for suficientemente capaz? E se nada der certo… etc e etc?

Foi assim que acabei por não enxergar um sinal vermelho.

Mas lembro-me agora de que, no período pós-acidente, às voltas com dores frequentes, imobilidade forçada e dependência total de outros, meu pensamento era completamente desligado das preocupações comezinhas do cotidiano.


“Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava
liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo”


Assim, do acordar até o adormecer, eu focava única e exclusivamente nos desafios do dia: conseguir fazer todos os exercícios da fisioterapia, lidar com o trabalhoso processo de usar a comadre, suportar os medicamentos abrirem um caminho de fogo nas minhas veias, vencer os esforços e dores do banho, exercitar a paciência esperando pela ajuda necessária para fazer tudo isso.

De certa forma, era libertador acordar e sentir-me comprometida apenas com o “agora” de cada dia. Se o corpo estava fisicamente preso, a mente funcionava liberada do peso dos “SEs” fabricadores de ansiedade e medo. E como o sono era melhor!

Talvez por isso tenha sido relativamente leve meu fardo, o que faz eu me sentir uma impostora sempre que alguém elogia minha força. Não foi consciente e nem por esforço meu. Simplesmente não havia escolha. Foi como se o cérebro tivesse ligado um botão de “funcionamento de emergência” à minha própria revelia.

Ainda assim, houve momentos de rendição à melancolia e às lágrimas. Mas até esses tinham prazo de validade, pois sempre chegava a hora de ligar o foco no desafio seguinte.

Se aprendi a lição para todo sempre? Eis a questão… Hoje já me flagrei cedendo a ansiedades antigas, conjecturas de futuro… novos “e se”.

Já não sei se conseguirei reproduzir este “funcionar mais leve” quando voltar à minha rotina de antes – Deus sabe que somos convidados a nos sabotar o tempo todo -, mas é certo que não tenho mais desculpas.

Se voltar ao “sonambulismo” não será por falta de escolha, mas total incompetência.

Um braço de vento frio cutucador de memórias

Hoje acordei com um braço de vento frio me cutucando na cama. Entrou rápido, logo que o Márcio Pelegrina abriu a janela pra deixar entrar a luz do dia, e foi direto me acordar pra sua presença.

Os elementos devem saber da gente. De consciências indissociáveis, devem compartilhar fofocas sobre o que vai dentro de nós e que é primal, parecido com a matéria de que são feitos.

Este braço de frio chegou sabendo que gosto de como o amálgama de tantos dele trazem os dias de inverno, tão raros em minha cidade.

Sempre fui de avessos: gosto de ver o mundo molhado de chuva quando todos preferem o sol e me agrada nosso inverno ameno, com seus cheiros umedecidos.


Tenho saudades de conseguir ver o belo onde os adultos só viam pobreza e lama


O frio enclausura as pessoas entre paredes – a esta hora eu deveria estar ouvindo gritos de adolescentes jogando bola na quadra da escola com muro de frente para o meu prédio -, mas não. Não me enclausura.

Tanjo muletas e hastes de titânio para a sacada do apartamento pra sentir o mundo, que me parece mais limpo banhado em neblina e sol pálido. Parece também mais calmo. Deito olhos e ouvidos para além do parapeito e não encontro a mesma algazarra de buzinas e gente tanta passando pra lá e pra cá.

O cutucador deve me conhecer de outros tempos, pois acendeu memórias antigas de mim em nossa casa à margem de um Ribeirão Preto margeado por mato alto e a avenida de terra. Pra economizar agasalho, mamãe tirava os corta-febre dos armários pra nos cobrir no sofá, onde eu gostava de ficar aconchegada assistindo “Sessão da Tarde”, nas férias de julho. Algumas noites convencíamos o papi a fazer sua famosa gemada, com cheiro de canela em rama que se espalhava pela casa.

Também guardo uma imagem de abrir a janela do quarto de minha mãe, que dava para a garagem sem muros, e ver uma senhora arrastando seu carrinho de feira no meio da rua – usava-se pouco as calçadas em ruas mansas como aquela. Os matinhos das sarjetas ainda brilhavam de gotículas de sereno e o cheiro de terra molhada inundava de prazer minhas narinas!

Tenho saudades de conseguir enxergar o belo onde os adultos só viam pobreza e lama. Com o tempo, adquiri um mau costume de ver o mundo pelos olhos dos outros e acabou que este jeito de olhar se transformou também no meu.

Mas hoje o cutucão do tempo trouxe de volta lembranças daquela criança que o frio e seus cheiros deixavam feliz e tive vontade de contar.

Uma Certa Inglesa Romântica

É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro,
possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa
.”

Você não precisa concordar com o trecho acima para adorar a obra que ele abre.

O que… não reconheceu? Se não conhece, não sabe o que está perdendo! Pertence  a “Orgulho e Preconceito”, a obra mais famosa de Jane Austen, autora inglesa do século 19 que escreveu alguns dos romances mais cultuados e adaptados para teatro, cinema e TV do mundo.

Em sua curta vida (morreu em 1817, aos 42 anos, de um mal desconhecido), Austen escreveu apenas seis obras completas: “Razão e Sensibilidade”(1811), “Orgulho e Preconceito” (1813), “Mansfield Park” (1814), “Emma” (1815), “A Abadia de Northanger” e “Persuasão”. Deixou outras incompletas, que a dramaturgia mundial também diverte-se em completar por sua conta e risco, como “Lady Susan”, “Os Watson” e “Sanditon”.

Todas têm em comum uma história de amor ambientada na alta sociedade inglesa do século 19, narrada em texto elegante, mas temperado com fina ironia e uma sagaz crítica social.

Atribuo o fato de sua obra seguir conquistando novos admiradores até hoje a sua universalidade e originalidade, ao menos para a época. Hoje em dia, a história de antipatia transformando-se em amor de “Orgulho e Preconceito”, por exemplo, pode não parecer nova por ter sido copiada à exaustão desde então. Mas, quando foi lançada, era uma subversão à receitinha açucarada do gênero, que rendia histórias com heroínas ingênuas, virtuosas e indefesas à espera de serem salvas pelo arquétipo do príncipe encantado.

As heroínas de Austen não são absolutamente indefesas ou “burrinhas” – aliás, bem ao contrário – e mesmo tendo de seguir as convenções sociais da época, sabiam destacar-se acima delas. Os personagens também não obedeciam a maniqueísmos. Ou seja, nem as heroínas e seus amados eram apenas poços de virtudes, nem os vilões só maldades. A protagonista de “Emma”, por exemplo, é uma esnobe. De bom coração, é verdade, mas ainda assim esnobe e egocêntrica. E o famoso senhor Darcy, de “Orgulho e Preconceito”, é o mau-humorado e antissocial mais amado da história da literatura. Bem diferente dos heróis lindos e virtuosos do romantismo literário de até então..

Por isso é que, como as peças de Shakespeare, os personagens de Austen seguem atuais – universais, como a alma humana.

Adaptações

Você sabia que  “O Diário de Bridget Jones” (livro e filme) foi inspirado em “Orgulho e Preconceito” e longa metragem adolescente “As Patricinhas de Beverly Hills” em “Emma“? Estes são apenas dois exemplos de como as obras da escritora britânica seguem atuais. Mas não os únicos.

Desde 1938, os romances da escritora vêm sendo adaptados para televisão e cinema insistentemente. Só “Orgulho e Preconceito” tinha, até a redação deste post, três adaptações produzidas pela TV britânica BBC e cinco para a tela grande, sendo a última de 2005, com Keyra Knightey e Matthew MacFadyen (ai ai…) nos papeis principais.

“Razão e Sensibilidade” havia sido adaptada três vezes para a televisão, também pela BBC, e sua única versão para cinema até então leva a assinatura do aclamado diretor taiwanês Ang Lee (“O Segredo de Brokeback Mountain” e “As Aventuras de Pi”). Ainda que o roteiro tenha a assinatura de uma inglesa (a também atriz do filme Emma Thompson), o fato de um asiático ter traduzido tão bem a essência do romance de Austen é mais uma prova da universalidade de sua obra.

“Emma” contava, então, cinco versões para a TV [após este post foi lançada mais uma, em plena pandemia de coronavírus de 2020, assinada por Autumn de Wilde – horrível em minha opinião!] e uma de suas adaptações para o cinema, de 1996, rendeu uma indicação ao Oscar para a atriz Gwineth Paltrow.

“Persuasão” – meu romance  preferido da autora – somava três versões para a TV e só uma para cinema, mas já havia sido citado em mais de um filme (“A Casa do Lago” entre eles) como símbolo de um amor que resiste ao tempo, à distância e às mudanças interiores de seus amantes. Talvez por ter sido escrito nos últimos anos de vida de Austen é o de narrativa interiorizada, explorando os sentimentos submersos de sua protagonista, Anne Elliot – uma solteirona para os padrões da época.

“Mansfield Park” e “A Abadia de Northanger” são os romances menos populares da escritora, tendo sido, por isso, pouco adaptados até esta postagem: o primeiro, duas vezes para a TV e uma para o cinema. O filme de “Mansfield Park”, que no Brasil recebeu o título de “Palácio das Ilusões”, permite-se muitas liberdades para com a obra original, mas que só deixaram a história melhor, pois a diretora Patricia Rozema buscou suas adaptações para o roteiro na própria biografia da escritora (por exemplo, a troca de cartas entre a protagonista Fanny Price e sua irmã não existe na obra original, mas foi pinçada entre a correspondência entre a autora e sua irmã Cassandra, que eram confidentes).

Já “A Abadia…” foi adaptado três vezes só para a TV e nenhuma para o cinema, talvez por ser o romance de Austen que mais destoa do perfil do restante de sua obra, com seus toques de suspense e narrativa ainda sem muita identidade. Afinal, apesar de ter sido publicado só após sua morte, foi o primeiro romance escrito pela inglesa. Como comentou um personagem do filme “Clube de Leitura de Jane Austen” (comédia romântica de 2007 em que seis personagens debatem suas obras em reuniões mensais), a autora ainda devia estar experimentando as referências de suas escritoras preferidas à procura do próprio estilo.

Encontrou.

Uma nova dor, ferros e um desabafo

Não é só a dor.
Devem ter me avisado, em algum momento – embora não me lembre -, de que doeria ter ferros acoplados ao meu fêmur. Pensei, toda me achando: “eu aguento”.
Mas não é só a dor, que, aliás, está muito pior do que eu me lembrava.
Sim, amigos, estou enfrentando as dores de uma nova fratura, desta vez propositalmente provocada pelo cirurgião, para que meu fêmur possa crescer sob estímulo de ferros instalados nas suas extremidades.
A cada dia farei esses ferros movimentarem-se para separar o osso e estimulá-lo a crescer a partir da nova fratura.
Mas não é só a dor.
Tem a tontura e o escurecimento de vista cada vez que me levanto para me alimentar ou ir ao banheiro (por passar muito tempo deitada); a fraqueza e o cansaço extremo que me fazem puxar o ar sofregamente, como uma cardíaca (o sangramento nas entradas dos ferros ainda não parou); a falta de apetite e às vezes até enjoo provocado pelo cheiro da comida (talvez pelo humor deprimido, talvez também por ficar muito deitada, mal acostumando o labirinto), que tenho de enfrentar pra colocar algum nutriente e energia pra dentro do meu corpo; e o que mais me incomoda desde o início: precisar de ajuda para absolutamente tudo, o que faz meu marido novamente perder dias de trabalho.
Talvez Deus me queira menos independente, mais humilde (mais?), sei lá.
O que quer que eu deva aprender com mais isso tudo – já me sentia bastante grata -, ainda não consigo enxergar.
Só o que sei é que será um looooongo mês.