Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2019 trabalhando free lance com produção e edição de conteúdos; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

‘Once Upon a Time’: desconstruindo contos de fadas

Era de se supor que uma produção intitulada “Once Upon a Time” (“Era Uma Vez”), cuja proposta é alinhavar continuações para contos de fadas universalmente conhecidos, tivesse uma narrativa simples, ingênua, voltada para o público infantil. Mas “simples” é tudo o que esta série de TV não é, por mais que se apodere da fantasia.

Os roteiristas Adam Horowitz e Edward Kitsis controem um edifício narrativo engenhoso, usando como espinha dorsal a história de uma cidade com o sugestivo nome de Storybroke (trocadilho em inglês para “história quebrada”), onde personagens de um certo Reino Encantado vivem esquecidos de suas verdadeiras identidades devido a uma maldição lançada pela Rainha Má.

A trama da primeira temporada gira em torno dos esforços do filho adotivo da Rainha, que na cidade assume a persona de prefeita. Ele tenta convencer sua incrédula mãe biológica de que ela nasceu predestinada a libertar aquela população aprisionada em sua própria amnésia.

No meio de cada trama, narrativas paralelas contam em flashback a vida de cada personagem (Branca de Neve, Cinderela & cia), mas a partir de seus finais clássicos, ou seja, para além dos “felizes para sempre”. E assim vai desconstruindo os contos de fadas como os conhecemos.

A cada flashback, a história de um personagem esmiuça as motivações para o conjunto de escolhas que lhe confere – ao menos nas histórias originais – o rótulo de vilão ou herói. À medida que o espectador se aprofunda, descobre que nada – melhor dizendo, ninguém – é (só) o que parece.

A Rainha Má, por exemplo, não foi sempre rancorosa. Forçou-se a endurecer após uma trágica perda. E a Branca de Neve não é exatamente um modelo de virgem casadoira e submissa.

Ambíguo, o mago Rumpletilstiskin passa o seriado todo oscilando entre o bem e o mal, motivado ora pelo medo, ora pela vingança, ora pelo amor. E a grande heroína da trama, a “salvadora” – o vínculo com a vida real na trama – já sobreviveu de pequenos golpes.

Ironicamente, esta abordagem ajuda a tornar os personagens de contos de fadas mais próximos dos seres humanos “reais” – o que, no final das contas, também é a função dos arquétipos – e elimina o recurso “moral da história”, tão caro ao gênero. Simplificador, ele não cabe numa narrativa que explora também os semitons das tramas.

Para resumir, desconfio que Carl Gustav Jung – para quem “os arquétipos do inconsciente coletivo também se expressam através de narrativas, especialmente o mito e o conto de fadas” – teria aprovado “Once Upon a Time”.

Verdade (sem) ilusão: showzaço!

“Olha as vozes de Ribeirão, que lindas! Eu acho legal o negócio do backing [vocal] (…) que é uma coisa que as meninas fazem naturalmente, é a praia delas. Mas os rapaaazes… ah, a solidariedade dos rapazes na hora do backing me mata!” (risos).

Com este comentário, feito com sua voz rouca e lânguida ao fim do primeiro “bis” de seu show em Ribeirão Preto, Marisa Monte deu o golpe de misericórdia na plateia, que já acompanhava totalmente entregue sua performance no palco do Centro de Eventos do RibeirãoShopping no sábado, 26.

Àquela altura, o público assistia aos últimos instantes de “Verdade, Uma Ilusão” de pé, reverente, dançando e cantando junto, mas deixando claro, com as palmas intermitentes, que não estava a fim de ir embora.

Em minha primeira vez vendo Marisa ao vivo, senti-me acompanhada na devoção, não só à voz e ao carisma de uma de nossas maiores intérpretes, mas à magia de que qualquer boa música é capaz: despir homens e mulheres de preconceitos e converter as energias individuais de cada um em uma só vibração harmônica.

O fato de homens afinarem a voz para o backing vocal e mulheres atirarem gritos de “maravilhosa” ao palco, sem medo de julgamentos alheios, mostra do que é possível uma boa música. Interpretada por uma Marisa Monte, então…

A produção do show que divulga seu último álbum – “O que você quer saber de verdade” – não tem aquela pirotecnia tecnológica de que muitos artistas têm lançado mão ultimamente para justificar a saída de seus fãs de casa.

Os recursos de produção são simples: basicamente projeções – de textos poéticos, de obras de artistas plásticos brasileiros, de imagens de coisas e gente – extrapolando os limites do palco ou apenas luzes mudando a cor de fundo do cenário.

Na interpretação de “ECT”, por exemplo – que ganhou um arranjo “matador”-, ora palavras isoladas, ora trechos de músicas e poesias envolviam o palco e se ampliavam para as paredes laterais da área VIP.

Para hipnotizar, Marisa também não precisa fazer incontáveis trocas de roupa – a certa altura só tira o vestido preto que veste sobre outro branco – e nem acompanhar bailarinos profissionais em performances coreográficas, como as divas pop de hoje acham tão necessário. Se simula uns passos solo de bolero em “Depois” é de forma teatral, porque o clima da música o pede. Assim torna clara sua reverência à música e não ao espetáculo.

Musa, simula humildade ao apresentar os músicos que a acompanham: feras do quilate de Dadi (de A Cor do Som, banda do Zé Pretinho, shows de Caetano e por aí vai), do power trio da Nação Zumbi – baterista Pupillo, guitarrista Lúcio Maia e baixista Dengue -, além de Carlos Trilha (teclados e sopros) e o quarteto de cordas com Pedro Mibielli, Glauco Fernandes, Bernardo Fantini e Marcus Ribeiro.

Gera cumplicidade com o público, contando histórias de algumas músicas, como a de “Ainda Bem”, trilha de novela da Globo que ela queria gravada em parceria com a reclusa cantora italiana Mila – acabou cada uma cantando sozinha em seus respectivos discos.

Na hora de “A Sua”, a sala fica toda escura e só a intérprete recebe sobre o corpo um jato de luzinhas simulando estrelas, que também escapam para uma faixa do fundo do palco.

Pura poesia visual!

A mágica funciona por todo o setlist, que incluiu ainda “O Que Você Quer Saber de Verdade”, “Descalço no Parque”, “Arrepio”, “Ilusión”, “Amar Alguém”, “Diariamente”, “Infinito Particular”, “De Mais Ninguém”, “Beija Eu”, “Eu Sei“.

Ao fim de 1h30 de enlevo, resta uma verdade que não tem nada de ilusão: showzaço!

‘Gravidade’ é de tirar o fôlego

Depois de tudo o que li sobre o filme “Gravidade” na imprensa, fui ao cinema preparada para cenas contemplativas do espaço e um ritmo de narrativa mais lento. Afinal, é um filme todo rodado dentro de estúdio e seu elenco tem apenas dois atores, que passam a maior parte do tempo em trajes espaciais.

Mas devo dizer que o espaço sideral do diretor mexicano Alfonso Cuarón está mais para uma Marginal Pinheiros em horário de pico se comparado, por exemplo, ao de Stanley Kubrick em “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Tudo acontece neste território hostil, que parece regido pela Lei de Murphy (segundo a qual tudo o que pode dar errado, dá!).

A ação começa eletrizante logo nas primeiras cenas, quando uma nave da NASA em missão de conserto no telescópio Hubble é arrasada, deixando apenas dois sobreviventes: o experiente Matt Kowalski (George Clooney) e a novata Ryan Stone (Sandra Bullock). Lançados à deriva no espaço, sem comunicação com a base terrestre, eles precisam lidar com a gravidade zero e um estoque limitado de oxigênio para alcançar um dispositivo de reentrada na Terra.

Bullock carrega o componente trágico do roteiro. De luto pela filha morta recentemente, terá de escolher, a certa altura, entre entregar-se à morte ou lutar para sobreviver.

O diretor Cuarón constrói metáforas visuais sugerindo o significado da segunda escolha – repare na posição fetal de Sandra Bullock ao entrar na cápsula de reentrada. Muitos dos acontecimentos e imagens a seguir sugerem o simbolismo de um certo processo humano – a sofrida saída de um ambiente tranquilo para a entrada na Terra, o (re)aprender a andar…

Bullock defende bem a personagem, mesmo passando maior parte do tempo atuando apenas com a metade do rosto que o traje espacial deixa ver. Nada mal.

Três questões sobre ‘Elysium’

Wagner Moura com Matt Damon em cena de “Elysium”

Elysium”, longa metragem de ficção científica estrelado por Matt Damon, entrou em cartaz no Brasil sob a pressão de três grandes pontos de interrogação:

O primeiro diz respeito às expectativas dos brasileiros em geral, ansiosos por ver como Wagner Moura se saiu em seu primeiro papel hollywoodiano; o segundo, de interesse dos cinéfilos em particular, remete à comparação deste segundo trabalho do cineasta sul-africano Neill Blomkamp, após seu retumbante sucesso de estreia com “Distrito 9”; e o terceiro, feito a todos os apreciadores de cinema em qualquer nível, é sobre se o filme, independente de qualquer comparação, funciona como entretenimento dentro de suas propostas.

Como me encaixo nas três categorias de apreciadores de cinema, vou dar minhas respostas:

1) Wagner Moura não me surpreendeu no papel do coiote Spider simplesmente porque eu não esperava dele menos do que uma atuação fantástica, como são todas as suas performances, seja em teatro, televisão ou cinema.

Para quem quiser mensurar seu talento pela comparação, basta lembrar as atuações de Matt Damon em quaisquer outros de seus filmes – da franquia Bourne a “Compramos um Zoológico”, só para focar dois gêneros bem díspares. É sempre “Matt-Damon-interpretando-alguém”.

Depois veja Moura em “Deus é Brasileiro”, “O Caminho das Nuvens” e “Tropa de Elite”: você se lembra  que é Wagner Moura ali? (eu não). O ator some atrás do personagem, tão perfeita fica sua caracterização. Em “Elysium” até me esforcei para encontrar a familiaridade das expressões de Capitão Nascimento no seu personagem, Spider, mas o que vi foi uma persona totalmente estranha, com um sotaque indefinível e um rosto que apenas lembrava o de Moura.

Só o carisma funcionou como sempre.

E o que deve estar enchendo todos os brasileiros de orgulho (a mim, inclusive) é que Spider e Frey – personagens de Moura e Alice Braga, respectivamente – são personagens tão importantes na trama que podem ser considerados co-protagonistas.

Ao contrário de Rodrigo Santoro, que começou em Hollywood com pontas sem fala e evoluiu gradativamente de pequenos papéis a co-protagonista, Moura pode se orgulhar de ter entrado em Hollywood pela “porta da frente” das grandes produções.

E chegou arrebentando!

2 e 3) Apesar de “Elysium” atender honesta e competentemente aos requisitos de um “bom” longa metragem de ficção científica, não vai além disso. Quando comparado a “Distrito 9”, com o qual seu diretor inovou, temperando sua história de ficção científica com crítica social e linguagem de documentário, fica aquém das expectativas.

Faltou aquele quê de originalidade que nos surpreendia a cada quadro de “Distrito 9”. Nas sequências de luta, eu sentia uma incômoda sensação de deja vú – a mesma que me assalta em qualquer outro filme de ação hollywoodiano, quando começa a sessão pancadaria.

Fez-me lembrar de um desabafo de José Padilha (diretor de “Tropa de Elite”), que li em algum lugar da internet, sobre sua frustração diante das várias recusas que suas modificações no roteiro de “Robocop” recebia dos chefões do estúdio. Lembro dele dar a entender que originalidade e criatividade são considerados “perigosos” para a bilheteria (será este o caso de Blomkamp?).

Até a crítica social, contundente em “Distrito 9”, sai mais fraca em “Elysium”, principalmente para nós, brasileiros. Pobres morrendo à porta de hospitais ou em macas pelos corredores sem atendimento decente de saúde, enquanto os ricos têm acesso aos últimos avanços na área e seus interesses defendidos por políticos corruptos? Para nós (INFELIZMENTE) é “filme velho”.

Scott Pilgrim contra o mundo: sensacional!

Michael Cera é Scott Pilgrim: rola até duelo com sabres de luz

Acredite, você não precisa ser viciado em videogame ou fanático por histórias em quadrinhos para se divertir a valer assistindo a “Scott Pilgrim contra o mundo” – mas se for dessas tribos, vai se divertir mais ainda.

O filme do jovem cineasta inglês Edgar Wright mistura estética de HQ e estrutura narrativa de videogame para contar uma história de amor adolescente com contornos surrealistas.

O roteiro faz piadas e/ou homenagens a alguns clichês e arquétipos contemporâneos, com inteligência e humor de sobra.

O protagonista, por exemplo, é o clichê do “looser”: nerd, aos 23 anos ainda toca baixo em uma banda de colégio, divide o apartamento com um amigo gay e namora firme uma jovem do Ensino Médio.

As aventuras começam quando ele se apaixona perdidamente pela linda e descolada Ramona Flowers. Contra todas as probabilidades, eles começam a namorar, mas Scott Pilgrim descobre que terá de enfrentar uma certa liga formada pelos sete ex-namorados da garota.

A cada luta que o protagonista vence, aparece um score de pontuação, como em um jogo de videogame.

Não raro a tela ganha visual de HQ.

Os diálogos, tão surrealistas quanto o visual, são de matar de rir e cheios de subtextos irônicos. Tudo isso em um ritmo frenético, bem ao gosto da atual geração, apressada e hiperconectada.

A certa altura, o vilão-mor vocifera, indignado: “Sabe quanto tempo levei para reunir todos os sete ex? DUAS HORAS!!!”.

É garantia de diversão para quem relaxar e deixar-se levar, sem preconceitos, pelo humor do absurdo, exagerado – aquele mesmo que costuma camuflar uma boa crítica.

Violência física x emocional

Filmes feitos para a televisão não costumam frequentar listas de recomendações de cinéfilos e sequer constam em menus de sites especializados em cinema. Considero isso uma injustiça, pois alguns dos filmes que mais me tocaram foram feitos especialmente para a TV (como “Olhos Abertos”, por exemplo, dirigido por M. Night Shyamalan muito antes de seu sucesso com “O Sexto Sentido”).

Outro que ficou profundamente marcado em minha memória foi “Noite de Fúria” (“Sudden Fury – A Family Torn Apart”, 1993), cuja ficha técnica não encontro em nenhum site brasileiro de cinema – entre os internacionais, consta apenas no completíssimo Imdb, ainda assim de forma muito sucinta.

Assinado por Craig R. Baxley – um diretor de TV mais afeito a produtos de ação, mas que se saiu muito bem neste drama de suspense -, o titulo sempre volta à minha memória quando me deparo novamente com a questão da maternidade/paternidade. Vem como lembrete do quão sério considero a decisão de criar outro ser humano e do quão errado é baseá-la somente nas expectativas – muitas vezes egoístas – que se tem como pai/mãe.

A história começa com um adolescente (Neil Patrick Harris muito antes da série “How I Meet Your Mother”) em choque vagando, coberto de sangue, por uma floresta. Logo se descobrirá que se trata de Brian Hannigan, o mais velho de três filhos adotivos de um casal exemplar da comunidade, que é encontrado assassinado de forma extremamente violenta dentro da própria casa.

Brian e o irmão mais novo, Chris, de 7 anos, estavam em casa, mas o primeiro não se lembra de nada, e o segundo, apenas de ter visto o irmão do meio, Daniel (Johnny Galecki antes de ser Leonard na série “The Big Bang Theory”), vagando próximo à residência da família. Quando se descobre que Daniel – que cumpria temporada em um reformatório – havia escapado na noite em questão, todas as suspeitas recaem sobre ele.

Brian não acredita na culpa do irmão e ganha no advogado Tom Kelley, vizinho e amigo da família, um aliado. Decidido a defender os irmãos, Kelley inicia sua própria investigação. O que ele começa a descobrir, porém, vai contra a imagem de família perfeita passada à comunidade até então.

Das memórias em família dos irmãos, os Hannigan emergem como pais autoritários, intransigentes e frios, que encaram cada adoção como tentativas de moldarem filhos que se encaixem a um modelo perfeito pré-estabelecido por eles. De índole dócil, obediente e temperamento carinhoso, Brian se encaixa à perfeição ao projeto, o que os estimula a repetir a experiência. Só que o segundo adotado, Daniel, traz uma história pregressa difícil, que o torna um rebelde.

De conflitos em conflitos, conduzidos pelos pais de forma autoritária e nada amorosa, Daniel chega a ser condenado a uma estada de seis meses no reformatório. Em sua primeira saída para visitar a família, os filhos percebem algo errado na maneira formal com que os pais o recebem, em um lanche organizado na varanda de casa. Quando ele tenta entrar para seu quarto, a recusa dos pais esclarece tudo: Daniel está sendo substituído. Foi “reprovado” como filho e está sendo friamente descartado da família, como um brinquedo quebrado.

Um mergulho maior na memória de Brian, até então embotada pelo choque, mostrará que Chris, que passa a ter problemas de aprendizagem, também estava a caminho de uma rejeição quando o crime ocorreu.

Não revelarei a solução do crime, mas, para mim, a violência maior está na forma com que aqueles “pais” egoisticamente dispuseram das vidas de crianças que deveriam amar incondicionalmente.

Os Hannigan nunca praticaram nenhuma violência física, mas muitas psicológicas. Ofereciam aprovação e “permissão para ficar” aos filhos que atendessem a seus altos padrões de exigências e descartavam sumariamente os reprovados. Não consigo pensar em nada mais violento que isso para o emocional de uma criança.

Adão e Eden contra a gravidade

Era uma vez dois mundos. O chão de um começava onde o céu de outro acabava. Um mundo era rico e outro era pobre. E quem nascia em um, não conseguia viver em outro, porque estava aprisionado ao chão pela gravidade de seu próprio mundo.

Um dia, um menino subiu na montanha mais alta do Mundo Inferior – o pobre – e avistou uma menina passeando pela montanha mais alta do Mundo Superior – o rico. Eles ficaram amigos, cresceram e se apaixonaram, mas só podiam se beijar com os rostos invertidos.

Assim começa a história de “Mundos Opostos” (Upside Down), que merece a sinopse de conto de fadas, já que cultiva as doses de fantasia e alegoria características do gênero. Mas o filme do argentino Juan Solanas é muito mais que isso.

À guisa de rótulos, pode-se dizer que é uma ficção científica com doses cavalares de romance e uma leve crítica social, mas importante mesmo é frisar o encantamento com que se deixa assistir a história de Adam (Jim Sturges de “Um Dia”) e Eden (Kirsten Dunst, de “Homem Aranha” de Sam Raimi), separados não por convenções sociais ou vilões, mas pelo determinismo de seus mundos.

É emblemático que seus nomes remetam a uma outra história, que abre um determinado livro sobre o início dos tempos.

Em  “Upside Down”, ninguém é expulso do paraíso, mas nada mais será como antes naqueles dois mundos depois que Adam decidir lutar contra o impossível por sua Eden, o “seu” paraíso.

É lindo de assistir, mesmo que no fundo não acreditemos mais em conto de fadas (será que não?).

‘Star Trek’: Benedict Cumberbatch ARRASA!

ADORO um vilão carismático! É o que Benedict Cumberbatch entrega como o Khan de “Além da Escuridão – Star Trek”.

Amei odiá-lo!

O ator manipula cada músculo de seu rosto para formar máscaras demoníacas em suas demonstrações de ódio controlado. Prestem muita atenção na cena em que ele descreve ao capitão Kirk (pobre Chris Pine perto de tal ator!) a razão de seu ódio: a câmera focalizando apenas seu rosto em primeiro plano… a maquiagem desenhando olheiras embaixo de seus olhos amarelecidos por algum efeito especial…

Mas é a forma com que ele vai transformando sua expressão, que passa vagarosamente da amargura ao ódio – os olhos e a boca formando diferentes desenhos no processo – é que me deixou hipnotizada.

Isso sem falar das nuances de sua voz, que – além de linda! – ele usa divinamente como recurso interpretativo. Os melhores atores, aliás, fazem isso.

Mas não pensem que descobri Benedict Cumberbatch só agora.

Sua expressão lasciva para a ninfeta que acabou abusada no início de “Desejo e Reparação” já havia me intrigado. Lembro-me de ter procurado por seu nome nos créditos do filme para saber quem era afinal aquele personagem secundário que, como Ralph Fiennes, sabia interpretar tão bem só com o olhar. Com a diferença de que, ao contrário de Fiennes, Cumberbatch nem é bonito (para o caso de me acusarem de estar me derretendo pelos motivos errados… rs).

Depois ele me enfeitiçou de vez como o Sherlock da série homônima da BBC, que adapta as aventuras de sir Arthur Conan Doyle para o presente (isso mesmo, Sherlock Holmes no século 21, colocando celular, laptop e tudo o mais que a tecnologia gestou a serviço de sua apurada inteligência e técnicas de dedução).

Sherlock” me fez decidir ler os livros, que, sinceramente, gostei menos do que da série (vai desculpando aí Zé Eduardo!). Confesso que achei mais fascinante o brilho de Cumberbatch na pele do detetive, mesmo também tendo gostado de ver Robert Downey Jr. – outro com brilho próprio – interpretá-lo recentemente em dois ótimos longas.

A diferença é que Downey Jr. sempre coloca muito de sua personalidade em qualquer personagem que faz. Mas Cumberbatch se amalgama a eles, não nos deixando nenhuma pista de quem ele realmente é no meio daquela persona que constrói.

Nenhum dos personagens de Benedict Cumberbatch é igual a outro. Tentem assisti-lo, por exemplo, como um tímido e retraído aristocrata na série inglesa “Parade’s End”. Não lembra em nada o ególatra Sherlock ou o diabólico Khan, mas novamente é uma grande interpretação.

Ele também pode ser visto em muitas outras produções inglesas e anglo-americanas (aliás, o homem é um workaholic), como “Cavalo de Guerra“, “O Espião que sabia demais“, “Terceira Estrela“, etc, mas na maioria como coadjuvante. Algo me diz, porém, que seu grau de importância nas próximas produções vai mudar…

O filme

Ah sim… a propósito do filme que motivou este post, tenho a dizer que é MUITO BOM, não deixando nada a dever ao restante da série.

O diretor J. J. Abrams – como Christopher Nolan de “Batman– tem um talento para orquestrar tramas bem escritas sem perder o ritmo e nem abrir mão do espetáculo visual. Sob sua direção até o insosso Chris Pine chega a ficar convincente, mas nada que chegue aos pés de seu oponente.

As piadas que  rendem a relação de Kirk com o vulcano Spock – ou o resto de sua tripulação – funcionam muito bem.

Enfim, é um entretenimento da melhor qualidade, mas, como aconteceu com “Batman” e seu Coringa, a atuação de seu vilão fica maior que o todo.

‘Paz, amor e muito mais’: vale por Jane Fonda

Pense no que pode ser mais impagável do que ver Jane Fonda, 73 anos, com uma farta cabeleira grisalha caindo sobre os ombros, metida em um figurino hippie psicodélico e regurgitando discursos do ideário da contracultura.

É como ela se materializa no filme “Paz, Amor e Muito Mais”, como se tivesse acabado de sair de uma máquina do tempo, direto da década de 70 para a Woodstock dos dias de hoje. Vamos combinar, é preciso ter uma grande personalidade para dar conta de um papel que flerta muito de perto com a caricatura e – dependendo da histrionice do ator – com o ridículo.

Mas Jane dá conta. Afinal, estamos falando da estrela de “Descalços no parque” e “Barbarela”, de “Amargo Regresso” e “Klute – O Passado Condena”, que rendeu a ela um Oscar, em 1972. Jane não foi uma atriz dessas que chamam bilheterias de arrasar quarteirões, mas escolheu sabiamente seus papeis e, na vida pessoal, conseguiu não ser ofuscada por maridos ególatras como o cineasta Roger Vadim ou o milionário Ted Turner.

Ainda viveu para confessar sem constrangimentos seus erros e acertos na biografia “Minha Vida Até Agora”. Sem mais nada para provar, ela agora parece estar se divertindo com a escolha de seus últimos filmes, como o francês “E se vivêssemos todos juntos” e este leve “Paz, Amor e Muito Mais”.

No filme, Jane é a mãe hippie da recalcada advogada Catherine Keener, que, após receber o pedido de divórcio do marido, resolve finalmente levar os filhos adolescentes para conhecer a avó. Elas não se vêem ou se falam há 20 anos e logo no primeiro encontro dá para entender porque. A filha certinha reprova o modo de vida liberal – e em um certo aspecto ilegal – da idosa, que ainda vive como se estivesse na Woodstock da década de 70.

Mas não espere profundidade ou um acerto de contas dramático verossímel. O filme resulta em um amontoado de romances superficiais, que se deixam assistir prazerosamente numa sessão da tarde chuvosa. A interpretação de Jane Fonda é MESMO o melhor do filme.

‘O Som ao Redor’: sociedade entrincheirada

Cena de ‘O Som Ao Redor’: A classe média entrincheirada

O diretor Kleber Mendonça Filho não poderia ter sintetizado melhor o principal mote de “O Som ao Redor”, no bate-papo que se seguiu à aguardada primeira exibição de seu filme no Cinépolis Ribeirão, na noite de sábado (15/6). “Nenhum outro país tenta dividir tanto o público do privado como o Brasil”.

O retrato que ele faz do cotidiano de famílias que vivem em uma só rua de Recife é também o retrato de toda a classe média brasileira que habita as cidades, com sua profusão de muros, grades e portões. Barreiras construídas pelo homem para proteger e separar… para barrar a criminalidade, mas que abortam também o convívio, o contato e a troca com o outro.

Não por acaso a maior parte do filme se passa em espaços fechados… as janelas mostrando uma floresta de concreto, as famílias aprisionando seu lazer entre muros e se entrincheirando atrás das grades das janelas.

Apenas os sons não obedecem a tais barreiras, como o uivo do cachorro que invade a casa vizinha à noite, impedindo o sono da dona de casa que adora fumar maconha. “O som é mal educado… ele atravessa os muros sem ser convidado”, pontua Mendonça.

Mas o retrato traçado por “O Som ao Redor” tem muitas outras nuances. Como o ranço de coronelismo que ainda rege a ordem das coisas na rua, onde um certo latifundiário de nome Francisco, antigo proprietário da maioria dos imóveis da região, ainda espera ser consultado quando qualquer serviço novo é oferecido por ali.

Um desses serviços é o de guardas-noturno, que traz consigo outra nuance do retrato: a facilidade com que a classe média paga por qualquer nova sensação de segurança. E com ela, outro entrincheiramento e, paradoxalmente, uma brecha em sua privacidade – os guardas controlam seus cotidianos e horários; às vezes recebem as chaves de um vizinho que viaja a pretexto de que molhem suas plantas.

E no final, a derradeira ironia… os últimos sons que se ouve naquela vizinhança são dos mais “mal-educados” e prestam-se a uma – talvez duas – vingança. Mas o espectador sabe que é muito barulho por nada… pouco deve mudar neste retrato.