Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2022 também assessora de comunicação; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

Não perca ‘Littles Fires Everywhere’!

Uma silhueta loira observa uma mansão em estilo colonial ser consumida pelo incêndio. Pouco depois é a dona da silhueta em questão (Reese Whiterspoon de arrasar!) quem sequestra a total atenção do espectador com apenas uma expressão, em close. Perplexidade, dor e impotência misturam-se naquele rosto de olhos esgazeados, que parecem perdidos em outro tempo e lugar enquanto um oficial de polícia questiona sua dona sobre “quem teria interesse em atear fogo em sua casa com sua família dentro?”.

Ali! É como somos fisgados já nas primeiras cenas de “Little Fires Everywhere”, série que acaba de entrar para o catálogo de streaming da plataforma Prime Vídeo, da Amazon. Passamos os oito episódios seguintes conjeturando que fato devastador pode ter levado àquele incêndio e, principalmente, àquela expressão digna de Globo de Ouro de Reese Whiterspoon (ela já ganhou um por seu papel em “Johnny & June”).

Em mais este acerto de sua Hello Sunshine Produtora – que está se especializando em produções protagonizadas por mulheres marcantes -, Reese interpreta a personagem Helena Richardson, mãe, esposa, jornalista e cidadã exemplar de Shaker Heighs, localidade-modelo de Ohio (EUA), onde até o tamanho da grama nas casas é definido por lei municipal. Ali, Helena leva uma “vida de comercial de margarina”, regida por um planejamento rígido, que ela controla com ajuda de um kanban (quadro/agenda) gigante afixado em sua cozinha americana – para desespero de sua caçula, a rebelde Izzy.

Seu equilíbrio começa a ser quebrado quando chegam à cidade Mia e Pearl Warren, uma artista conceitual e sua filha adolescente, que levam uma vida libertária, cada temporada em uma cidade, às vezes chegando a dormir dentro do chevette azul usado com o qual percorrem o país. Seguindo um impulso, Helena aceita alugar a casa que recebeu como herança dos pais para aquela família, convencendo-se de que o faz por compaixão, pois só pode concluir que tenham uma vida tão diferente da sua por falta de opção melhor (primeiro preconceito estruturado… check!),

Helena e Mia não poderiam ser mais diferentes: uma branca e orgulhosa de seu pertencimento social; outra negra e ciosa de sua liberdade. Uma amizade forçada se insinua entre elas quando, percebendo o interesse da filha pelos novos amigos da família abastada, Mia acaba por aceitar uma oferta de Helena que encobre outro preconceito: de que funcionária doméstica é um trabalho óbvio para qualquer mulher negra (racismo estruturado… check!).

A interação que se desenvolve a partir daí suscitará conflitos para além das famílias de Helena e Mia, colocando em pauta debates sobre preconceitos racial, de gênero e, principalmente, tabus sobre a maternidade.

O roteiro é tão bem amarrado e os finais de cada episódio sempre tão intrigantes que não consegui parar de assistir até chegar ao final da temporada. Mais importante do que  um ótimo entretenimento,  “Little Fires Everywhere” é um convite à reflexão sobre preconceitos tão arraigados em nosso modo de agir em sociedade que, às vezes, sequer os percebemos.

Não perca!

Compaixão e voluntarismo

A cabeleireira e protetora de animais independente Ione Vigatto

Desde que foi iniciada a quarentena em Ribeirão Preto, há cerca de dois meses, a cabeleireira Ione Vigatto não recebe um centavo de rendimento, pois só ganha se trabalhar. Também não tem uma reserva financeira que custeie suas contas a longo prazo. Mas ela não está exatamente preocupada consigo mesma. O que a fez cadastrar-se no Projeto Guarda-Chuva foi o medo de não ter como alimentar os seis cachorros dos quais cuida atualmente, na casa que divide com a mãe, no bairro Campos Elíseos.

Protetora de animais por vocação, Ione é sempre lembrada quando se trata de vítimas de maus tratos. Não descansa até resgatá-los dos agressores. Em seguida, ela os recupera e trata até lhes arranjar novos lares, mas só os cede para adoção após certificar-se de que os candidatos a tutores são responsáveis e amam animais. Do contrário, permanecem sob sua carinhosa guarda indefinidamente.

Este está sendo o caso do lhasa Pingo, que a protetora resgatou das garras de uma pessoa que lhe dava surras com cabo de vassoura. “Por conta disso, ele não tem os dentinhos superiores e inferiores da frente”, conta. Outros três cãezinhos da raça beagle ela salvou de serem mortos a golpes de barra de ferro – “enfrentei a pessoa e resgatei os três”, conta. Um deles já foi adotado, mas a fêmea Sofia e o macho Jeyk continuam com ela.

Ione também tem as mestiças de pinscher Thytinha e Donny, que ganhou. Adotou a vira-lata Raja, que lembra um pastor alemão no tamanho e tem pelagem caramelo toda rajada – “Linda”, derrama-se. Ainda trata animais de rua e socorre atropelados – tudo às suas próprias custas. Por isso desesperou-se quando, poucas semanas após o início da quarentena, percebeu que não conseguiria renovar seus estoques de ração. “Não consigo ver meus animais com fome. Para mim pode até faltar algo, mas para eles, não! Quando não estou trabalhando, não tenho de onde tirar, pois não conto com ajuda de ninguém”, explica.

No dia seguinte à constatação, Ione viu na rede social Facebook uma postagem sobre o Projeto Guarda-Chuva propondo troca de trabalhos. Cadastrou-se imediatamente, oferecendo seus serviços de cabeleireira em troca de ração para os animais. Quando checou seus e-mails novamente, viu a resposta de uma das envolvidas no projeto, Sandra Molina, solidarizando-se com sua demanda. Poucos dias e duas conversas por telefone depois, Sandra estava entregando, na casa de Ione, dois sacos de 15 kg de ração cedidos pela AVA (Associação Vida Animal).

“Que Deus abençoe muito as pessoas envolvidas neste Projeto Guarda-Chuva e na AVA”, repetia Ione, agradecida, enquanto dava entrevista para esta reportagem. Mas não pensem que só os seus animais se beneficiaram da doação. A cabeleireira doou metade de um dos sacos de ração ao novo dono do beagle que acabou adotado. Outro tanto foi para uma cuidadora de animais em pior situação financeira que a sua. “Se sei de vizinhos ou conhecidos que precisam de ração, também doo. Não sei como vai ser quando acabar, mas sei que, de alguma forma, Deus proverá”, profetiza.

Atualmente, Ione luta para resgatar um shitzu vítima de maus tratos e está precisando muito de uma casinha de cachorro grande, para atender o casal de beagles que ficou.

AVA

Instituição sem fins lucrativos, que cuida de cães e gatos em Ribeirão Preto, a AVA tem sede própria à rua João Ramalho, 179 – Campos Elíseos. De lá, ao lado de outras ONGs e instituições, propõe políticas públicas para a causa animal, promove atendimento veterinário a preços populares, organiza mutirões de castração e eventos para adoção, mas também depende muito de doações.

Segundo uma de suas diretoras, Cristina Dias, foi uma sorte que, quando Sandra Molina perguntou se tinham como ajudar Ione, a ONG havia acabado de receber doação de uma indústria de ração. “A Sandra foi buscar e entregou, o que é uma grande coisa, porque tudo custa, até essa logística de transporte”, comenta.

Professora universitária, doutora em História e contribuinte em várias ONGs (a AVA entre elas), Sandra é, acima de tudo, uma idealista. Ela integra o grupo de membros do IPCCIC (Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais), que teve a ideia do Projeto Guarda-Chuva, e foi quem fez a conexão entre a necessidade de Ione e a ajuda da AVA. Diz que viu na cabeleireira o retrato de muitos brasileiros com compaixão suficiente para ajudar necessitados, humanos ou não. “No caso da Ione são os cachorros. Quando fui levar, fiquei impactada com o trabalho dela. Depois eu soube que ela repassou uma parte da ração que recebeu para outras duas famílias. Isso é o que as Ciências Humanas chamam de alteridade. Não interessa o que você pensa politicamente, se você quer ajudar, tem como”, comenta.

Sandra acredita que o Guarda-Chuva vem atender não só pessoas carentes de ajuda, mas também as que querem ajudar mas não sabem como. “Não é que os brasileiros não se importam [com quem precisa], muitos deles não sabem por onde começar. O Guilherme [jornalista, que também integra o IPCCIC] levantou isso e a gente se uniu para pensar em uma coisa para as pessoas se ajudarem nos moldes da economia sustentável. Começamos a pensar na ‘moeda verde’, que usa muito o escambo e estamos trabalhando”, conta.

Com mais de um mês de atuação, o projeto tem ajudado muitas pessoas a se ajudarem umas às outras. Todos são bem-vindos.

À altura da História!

Estou escrevendo aqui e ainda não parei de chorar… e de arrepiar… relendo as frases com que parentes de cada um dos 10.627 mortos oficiais por covid-19 (até ontem) os descrevem no memorial virtual que o jornal O Globo publicou hoje.

“Ele dava nos filhos um abraço-casa, carinho que aquecia o coração” (Claudio Leal de Almeida, 76)

“Gatinha, eu te amo muito, declarava ele à sua esposa” (Anderson Estevão, 54)

Uma boa amiga, que amava gatos” (Ágatha Santos, 25 anos)

“A Esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar” (Aldyr Blanc)

“Todos os dias ia à casa de sua mãe para tomar sua benção” (Dalva Maria Portilho da Mara, 59) – e choro pensando em como deve estar se sentindo essa mãe sem filha neste Dia das Mães!

Imagino como eu conseguiria descrever meu marido… ou minha mãe, ou meu pai ou qualquer uma das minhas irmãs ou sobrinhos… em uma só frase se fosse algum deles ali (não… não conseguiria!) e choro de novo. – e arrepio de novo. – e me sinto dentro daquela poesia do Fernando Pessoa, me “extraviando de tanto sentir*… e de admirar a fortaleza desses parentes que carregam seu luto por aí, sobrevivendo a ele.

O momento que estamos passando vai ficar marcado na história da humanidade e a capa de O Globo de hoje fez um jornalismo à altura dele. Ao mesmo tempo que homenageia nossos mortos (são nossos, de todos nós!), responde da forma jornalística mais linda – especialmente a um presidente que desfila sua cruel indiferença a bordo de jet skis e piadas de mau gosto – que essas vidas importam SIM!

E quem é “bicho de redação” (como eu) sabe o esforço hercúleo que deve ter sido captar 10.627 (!!!) frases para lembrar essas vidas. Não se trata só do tempo e do trabalho que consumiu, mas de como abordar outro ser humano em um momento vulnerável de dor. Também é doloroso – e constrangedor – para o jornalista (sim… também temos coração).

Parabéns a todos os colegas que participaram disso (é orgulho alheio que fala?!).

Obrigada, O Globo, por ter tirado esse choro de dentro de mim… por mostrar que o jornalismo ainda é capaz de ser humano e grandioso!

Obrigada!


(*)
“Quando olho para mim não me percebo
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo”
in “Três Sonetos – I” Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. 1915

 

Déjà vu (ou ‘Quem sabe isso quer dizer amor… 2 – A Missão’)

Oitavo domingo de quarentena.

Acordo dentro da memória brumosa e morna do “Encontro de porta” com nossos mais novos melhores amigos. Grata pela noite, por olhar do lado e checar o sono fungador do Ma, sentir nossos filhos-gatos esparramados entre nossos pés e pernas, lembrar que é dia de escola Aprendizes do Evangelho e – mais gratificante que tudo – não ter sido acordada pelas dores musculares do meu bruxismo (já disse que a vida sem dor é maravilhosa?).

Obrigo-me a fazer os exercícios passados pelo fisioterapeuta e a comer ao menos uma banana antes de engolir os comprimidos da pressão e de colágeno (já disse como odeio comer e ter que fazer “dever de casa” logo ao acordar?). Minha natureza pede um despertar lento, feito de descanso dos músculos fatigados do bruxismo, pés pra cima na poltrona da sala e cérebro despertando devagar através do olhos, que caçam no celular as primeiras mensagens e manchetes jornalísticas do dia. Mas a virginiana em mim não sabe ignorar um “dever”, sob pena de ficar arrastando uma bola de ferro cheia de culpa pelo resto do dia. Por isso dou meu suspiro de resignação e inicio as primeiras séries na cama mesmo. “Primeiro  o dever, depois o prazer”, disse Daniel Boone em um dos episódios do seriado que assisti na infância – nunca mais esqueci o dito e o levei pra vida (quer mais virginianismo que isso?).

Sento ao computador pra preparar nova postagem no blog, checo mensagens, respondo… e imerjo em meu hiperfoco, que ignora tudo o que é mundo fora da minha cabeça. Registro só com uma parte do cérebro o Ma ligar a TV pra assistir no Youtube as últimas lives de músicos preferidos – outra região dentro da minha mente registrando, satisfeita, a emoção dele ouvindo e vendo seus ídolos musicarem seu domingo. E novamente fico grata.

Termino o trabalho no computador, vou pra cozinha fazer a receita nova de risoto prometida e, de repente, ouço um dedilhar de violão que não soava há  tempos em casa se aproximando pelo corredor. Me invade um déjà vu de todas as vezes em que o Ma sacou do violão pra cantar comigo e pra mim, eu preparando nossa comida, uma tulipa de cerveja dele esquentando em cima de algum móvel e uma taça de vinho minha se esvaziando mais rápido que o recomendado, em meio a legumes e carnes que corto desajeitadamente, com minha coordenação motora de jegue. E, de novo, tudo no mundo parece estar exatamente no lugar que deveria estar.

Pra entender o valor desse déjà vu é preciso saber que o Ma não pegava o violão dentro de casa pra se acompanhar cantando há…  ? … nem sei quanto tempo! Foi parando mais ou menos quando começaram seus lutos – pela morte do pai em 2016, do irmão em 2017, da mãe em 2018 -, cada um jogando dentro dele umas saudades doídas de ver. Ele não falava muito disso – eu respeitava – mas tenho pra mim que rolava um constrangimento inconsciente por ele ainda estar neste mundo, apto a continuar desfrutando de um dos grandes prazeres de sua vida, quando os seres que mais amava já não estavam.

A felicidade fez eu gravar o momento em vídeo, com o celular amoitado no balcão e comigo parecendo uma “Amélia arrependida”, com faixa segurando o cabelo oleoso de cozinheira mal ajambrada. Compartilhei depois nos grupos dos amigos de cantoria e dos vizinhos de porta, brincando que “se eu soubesse que bastava variar o cardápio do almoço pro Ma voltar a fazer serenata na minha cozinha, eu teria começado antes da quarentena”, e rezando pra ele não ralhar comigo.

Não ralhou. Até respondeu com bom humor às brincadeiras surgidas nos grupos. Quis ouvir a gravação mesmo com aquele som de caixa de fósforo do celular, sem saber que dentro do meu peito o coração dava pinotes de felicidade, feito os gatos quando entram no “MODO GREMLIN” aqui em casa.

Meu risoto ficou MARA! O Ma garantiu minha caipirinha e, com a promessa de cuidar da louça suja depois de sua sesta domingo (eu cozinho – ele lava!), foi deitar sem saber que pra mim aquele domingo de quarentena transformou-se no melhor dos últimos quatro anos.

Vou ter que evocar o Lô [Borges] de novo: “’Quem sabe isso quer dizer amor’ 2 – A Missão (de inventar de vez em quando um novo cardápio pra ver se o Ma volta a fazer serenata de cozinha pra mim!)”.

 

LEIA TAMBÉM: Quem sabe isso quer dizer amor (Relatos de uma quarentena)  / Encontro de porta

Encontro de porta

Já escrevi que a quarentena imposta pela pandemia de Covid-19 não tem sido exatamente uma tortura para mim, que cresci com um defeitinho de sociabilidade – cortesia de um Déficit de Atenção responsável por uma tendência de nascença à introspecção. Dito isso, assumo parte da responsabilidade por ter demorado bem uns seis anos para trocar mais do que os comprimentos eventuais à escada com os vizinhos de porta que temos no pequeno condomínio de apartamentos em que vivemos, há quase oito.

Até há um ano e meio atrás, eu sabia de minha vizinha Ana Lígia só que era jornalista como eu, mas estava afastada há algum tempo do metier; e do Matheus, seu marido, que trabalhava com audiovisual e estava no segundo mandato de síndico desde que nos mudamos; além de serem super educados e aparentarem ser “muito boa gente”, etc, etc.

Quando o desemprego chegou para mim, em 2018, Ana já andava às voltas com o desafiador ofício de “mãe de primeira viagem” e uma vontade crescente de voltar ao jornalismo fazendo algo que lhe permitisse trabalhar home office. Como o mercado me encaminhasse também para esta opção, passamos a conversar esporadicamente sobre nossas dúvidas e ideias a respeito, mas sempre en passant, quando nos topávamos na escada ou às portas de nosso apartamento. Da mesma forma, nossos maridos, que sempre simpatizaramum com outro, só batiam papos rápidos quando algum assunto do condomínio forçava um encontro.

Nossas amizades foram crescendo assim, indolentemente alimentadas por conversas rápidas à escada, recados concisos no Whatsapp e raras chamadas de voz para aqueles pedidos tradicionais de vizinhos – “tem uma caixa de Amizade pra me arrumar?”. Nunca pensamos em propor um programa de lazer compartilhado, como um jantar no apê de um ou outro casal e era improvável que isso ocorresse em plena quarentena do coronavírus.

Mas a Ana Lígia surpreendeu, com a encantadora sugestão de compartilharmos algumas horas de isolamento em comum – cada casal na sua porta, com sua cerveja e petisco. Pensamos, eu e Márcio: “Por que não?”. E colocamos as cadeiras nas portas e um carrinho de bebidas no meio do hall de entrada, delimitando a distância mínima de 1 metro de cada lado.

Que HORAS DELICIOSAS de bate-papo tivemos!

Comparamos histórias de vida, confirmamos similaridade de ideias e visões de mundo, trocamos memórias. Sem perceber, liberamos a maior parte do peso de nossos humores, envenenados que vinham pela triste realidade dos noticiários nesses tempos de coronavírus e pelas comunicações violentas praticadas nas redes sociais.

Eu maldisse ali minha introspecção, que adiou por tanto tempo uma interação tão abençoada.

Ao final da noite, quando os papais de primeira viagem se lembraram de que precisavam dormir para acordar junto com o filho madrugador, ainda nos perguntávamos por que foi preciso uma pandemia para nos fazer interagir com tempo e atenção apropriados. Ainda não temos esta resposta, embora vergonhosas hipóteses rondem meu pensamento (preguiça? Individualismo? Indiferença?).

Só sei que fomos dormir mais felizes do que acordamos naquela Sexta-Feira da Paixão e que um novo programa já está pré-marcado para esta semana.

Mas o importante é que “abrimos a porteira”!

Que venham muitas outras confraternizações, ainda que com distância física controlada. A proximidade mais importante é outra.

‘Quem sabe isso quer dizer amor…’ (relato de uma quarentena)

Quase tenho culpa por me sentir tão confortável em isolamento, neste momento grave de ameaça civil. É que pela primeira vez na vida minha tendência natural ao encasulamento está sendo visto como algo desejável e não como um grave defeito.

Explico-me: cresci levando pitos de familiares e amigos por “viver no mundo da lua”. Na adolescência, levava descomposturas de amigas por ser antissocial a ponto de não saber manter as chamadas “small talk”. Era capaz de me refugiar em meus próprios pensamentos mesmo integrando uma roda de conversa, fosse numa festa cheia de gente ou em rodinhas de amigos. Claro que isso me tornava esquisita demais, engraçada de menos e zero interessante! Por isso minha presença chegava a ser expressamente proibida por anfitriões de eventos e programas legais para os quais minhas melhores amigas eram convidadas – coitadas, depois se contorciam em desculpas para justificar seus sumiços e o porquê de não terem me chamado.

Adulta, descobri que tenho déficit de atenção e me esforcei muito para melhorar a partir das lições que as rejeições sociais me ensinaram. Melhorei, sim, mas… quando me mudei de minha cidade natal para trabalhar em outra, ainda era capaz de passar finais de semana inteiros sem colocar o pé fora da porta de casa – minhas horas sozinha eram preenchidas com leituras, sessões de filmes e playlists de músicas favoritas embalando a limpeza da casa ou a preparação da minha comida.

Para mim, não era solidão! Ao contrário, eu me sentia conectada ao mundo através dos noticiários (que nunca deixei de acompanhar) e também a todos os personagens das ficções que eu lia em livros ou assistia em filmes e séries. Ainda gozava uma alegria genuína cantarolando junto músicas que me falam ao coração.

Não por acaso veio a tornar-se meu marido um certo estudante de engenharia – também um talentoso cantor e violonista – que, dias após me conhecer em uma sessão de cantoria, fez-me uma visita surpresa bem no meio de um desses meus fins-de-semana de imersão. Sua “invasão” não me incomodou. Ao contrário, porque ele compartilhou meus prazeres e os tornou ainda mais interessantes.

Dez anos após nos tornarmos um casal, vivemos um período de separação. Voltei à minha antiga tendência de me encasular em casa, entregue a meus passatempos, o que fez uma amiga em comum me dar outro pito: “sai pro mundo, pelo-amor-de-Deus!”. De novo, forcei-me contra minha própria natureza e saí.

A separação durou só dois meses e desde então eu e Márcio seguimos juntos. Tivemos nossos períodos de crise conjugal, mas o advento do coronavírus nos pegou em um momento de perfeito entendimento e sincronia. Não tivemos filhos (infelizmente!), por isso nossa rotina tem bem menos estresse do que a de casais que são pais, mas por isso mesmo é menos diversificada e interessante (digamos assim).

Durante a quarentena imposta pela pandemia, compartilhamos os medos de toda a população, principalmente por meus pais idosos, mas dividimos sem crises as tarefas domésticas e curtimos juntos, em casa, nossos hobbies preferidos e sabemos nos separar para o trabalho. Tudo somado, seguimos muito bem, obrigada, sem sermos invadidos por ansiedade ou tédio. Bem ao contrário.

Como cantou Lô Borges, “quem sabe isso quer dizer amor…”.

Os ‘sabe-tudo’ contra o coronavírus

Olha, eu já vinha mais ou menos conformada em ignorar a intransigência e agressividade dos haters e a acolher com bom humor a inconsistência dos terraplanistas, mas não estava preparada para me confrontar com o mesmo modus operandi deles na negação da ameaça mundial representada pela pandemia de coronavírus.

Foram dois episódios na mesma quarta-feira: o primeiro na casa de meus pais, para quem estou servindo de leva-e-traz de farmácia-mercado-e-afins para mantê-los abastecidos sem que precisem deixar o confinamento doméstico. Minha tia chega da rua para visitar e vai direto dar um beijo no rosto de minha mãe, sem que eu tivesse tempo de impedir.

“Que é isso, tia? Não sabe que tem que cumprimentar de longe agora?” – questiono.

Ela dá de ombros: “bobagem, filha. Se tiver que pegar a doença, pega, e se tiver que morrer, morre. Deus é quem decide”.

Respeito minha tia e sua religiosidade. Sei que duvida mais por ingenuidade do que por arrogância, influenciada por outros, por isso não me alonguei muito na ladainha ensaiada. Mas recusei seu beijo e, quando estava sozinha com meus pais, decretei: “Se a tia aparecer de novo,  vocês recusem beijo e abraço, hein!?”.

E fui para a Farmácia Especializada do Hospital das Clínicas, onde me aguardava uma longa fila na calçada só para pegar a senha de outra fila: a de retirada de medicamentos – no caso, para tratamento de um câncer em meu pai. Eu já padecia de desconforto sob um sol de 38 graus há uns 15 minutos quando ouvi esta pérola do homem atrás de mim:

“Uma bobagem esse pânico todo disseminado pela imprensa por causa do coronavírus. Aonde já se viu fechar tudo, mandar as pessoas pararem de fazer suas coisas? Querem ferrar com a economia de vez? Eu não paro mesmo. Se pegar, peguei. E aí? É uma gripe, gente!”.

Não me contive.

“Desculpe, meu senhor, mas não é só uma gripe, e esta doença pode matar a parcela mais frágil da população…” – ele nem me deixou continuar.

“Mata nada! Quem morreu até agora já estava doente, podia ter morrido de dengue ou qualquer outra coisa”, retrucou, já elevando o tom de voz e dando-se ares arrogantes.

“Não é possível. O senhor não lê jornais? Não assiste TV? Não deve ter pais idosos…”

“Assisto sim, mas acho tudo uma mentirada, um exagero dessa imprensa vendida. E meus pais vão muito bem, obrigada” – respondeu, me interrompendo de novo.

“E qual é a fonte de informações do senhor? Porque eu sou jornalista e posso garantir que não tem como a imprensa mentir nesta escala…”.

A esta altura ele já está falando sem parar, por cima da minha fala, para não me deixar ser ouvida: “Não preciso de fonte pra saber que isso tudo é uma palhaçada…”.

“E que interesse qualquer um teria em mentir sobre isso? Não faz sentido…” – eu já falo alto também.

“É tudo uma palhaçada! Quero que me mostrem o obituário do coronavírus…” – e eleva o dedo no ar, aponta pra minha cara… o que me enfurece!

“Então o senhor está me dizendo que, irresponsavelmente, não está se prevenindo e pode estar, neste momento, me contaminando e a todos à sua volta? – eu também já não controlava o volume da minha voz e da minha indignação.

“Ah, estou infectando você sim, tô infectando todo mundo aqui” – continuou, rindo em tom de chacota, como se a palhaça fosse eu.

“O senhor é um irresponsável!”.

Ele fica vermelho, faz cara de ódio, chama o segurança:

“Esta mulher está me incomodando!” – grita para o pobre, que olha para um, olha para outro, e pede calma baixinho, como se tivesse medo de apanhar.

“Irresponsável! Chama a polícia. Vamos ver pra quem eles vão dar razão.” – desafio.

E, inexplicavelmente (ou não), ele fica quieto.

Olho em torno para me desculpar e recebo olhares de sobrancelhas levantadas em rostos mascarados e sorrisinhos cúmplices de outros rostos sem máscara. Todos parecem dizer: “fazer o quê, minha filha?”

É… fazer o quê com pessoas que escolhem desacreditar informações de procedência comprovada e se baseiam em “absolutamente nada” para criar e disseminar teorias da conspiração que servem a seus próprios propósitos? E eu pensando que eleger um presidente ruim e defender que a terra é plana era o que de pior esse tipo de gente podia fazer! Mas, como diz uma grande amiga, “pra pior não tem limite”, e o pior da vez é ignorar, por pura opinião (!), a prevenção contra um vírus que pode matar a parcela mais indefesa da população.

Esses “sabe-tudo” ainda vão  colocar o mundo todo a perder.

‘Parasita’ surpreende com alegorias sociais

Em biologia, o termo parasita identifica “um organismo que vive dentro de outro, dele obtendo alimento e, não raro, causando-lhe dano”. Apropriado, então, o título escolhido pelo diretor John Bong-Ho para seu filme sobre uma família de desempregados que “invade” a vida de outra família burguesa.

Mas nada é tão simples assim em “Parasita” (2019), surpreendente produção sul-coreana que vem colecionando indicações e boas críticas mundo afora.

À guisa de metáfora, o filme pode ser comparado a uma “caixinha de surpresas”, pois começa despretensioso, parecendo uma comédia leve, como algumas das nossas produções nacionais que desagravam o “jeitinho brasileiro” por meio do humor. Mas, à medida que o roteiro vai nos brindando com  surpresas, o filme evolui para um thriller de humor negro e termina como um drama surpreendente.

O conjunto todo resulta em uma alegoria social desses tempos de inconsciência coletiva, em que vivemos dirigidos pelo automatismo de nossos egos.

E é no automatismo do “modo sobrevivência” que vive a família Kim, formada pelo pai, Ki-Taek, a mãe, Chung-Sook, o filho estudioso, Ki-Woo, e a filha expert em informática, Ki-Jung – só isso explica como conseguem manter o humor vivendo em um porão calorento com vista para uma lixeira comunitária, e alimentando-se com o pouco dinheiro que conseguem levantar com biscates.

Os Kim veem uma oportunidade de mudança quando Ki-Woo consegue um emprego como tutor da filha adolescente dos Park, família abastada que vive em uma espaçosa casa de arquitetura contemporânea. Logo colocam em prática um plano para se infiltrarem, os quatro, como empregados dos ricaços.

No começo, nossa compaixão fica toda com a jovem mãe e esposa Yeo-Jeong, que cai nas histórias engenhosamente arquitetadas pelos ex-desempregados. Chegamos a nos escandalizar, por exemplo, com a imagem da família pobre se banqueteando na casa dos patrões ausentes.

Mas, repito: nada é tão simples assim. Quando descobrem outros “parasitas” sobrevivendo da opulência dos Park, os Kim são confrontados com situações inusitadas que, aos poucos, operam neles uma espécie de despertar de consciência. Quando uma mesma chuva impacta de formas diferentes as vidas das famílias, por exemplo, a ficha de Ki-Taek finalmente cai: o que parecia ignorância, revela-se descaso, e o que soava ingenuidade, genuína indiferença.

Os invasores começam a enxergar a própria invisibilidade dentro do organismo que acreditavam possível conquistar. Descobrem-se, na verdade, prisioneiros de uma realidade que não os considera e reconhece. Ante a cegueira social dos que acreditávamos “invadidos”, desenha-se o colapso.

A narrativa fornece muito o que pensar sobre se todos nós não nos deixamos contaminar pela cegueira de em relação ao outro, endêmica nesses tempos de individualismo exacerbado.

‘Dois Papas’: Meirelles ensina a construir pontes

O brasileiro Fernando Meirelles dirige Jonathan Price e Anthony Hopkins em ‘Dois Papas’

Filmes baseados em fatos reais costumam despertar questionamentos sobre quanto de verdade foi preservada na criação de seus roteiros e quanto de ficção foi usada para tornar suas narrativas mais palatáveis ao espectador. No caso de “Dois Papas”, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”), essas questões certamente surgirão, mas meu conselho é que você as esqueça completamente para se concentrar no melhor motivo para saborear este belíssimo libelo sobre diálogo, redenção e fé.

Até porque fica muito clara a intenção de Meirelles com esta adaptação cinematográfica para o livro de Anthony McCarten – que também assina o roteiro: mostrar, nestes tempos de intolerância e radicalismos políticos, como o diálogo entre correntes de pensamento opostas é possível quando conduzido com respeito, empatia e, principalmente, disposição para ouvir. O registro biográfico fica em segundo plano.

Os dois papas da ficção (à esq.) e os da vida real (dir.).

No caso de “Dois Papas” temos, de um lado, o religioso alemão Joseph Ratzigner, cujo pontificado como Bento XVI foi marcado por uma defesa ferrenha dos dogmas seculares da Igreja Católica (proclamações solenes que devem ser consideradas definitivas, infalíveis, imutáveis e inquestionáveis pelos fiéis). De outro, está o então cardeal argentino Jorge Bergoglio – que viria a se tornar o papa Francisco -, de formação jesuíta (ordem conhecida pelo trabalho missionário e educacional, que presta voto de pobreza) e com ideias próprias e pouco ortodoxas sobre tais dogmas.

Os protagonistas são interpretados, respectivamente, pelo veteranos Anthony Hopkins e Jonathan Price, atores ingleses que nos premiam com atuações “exatas” e irretocáveis. Cabe a eles – principalmente ao carismático Price – parte do mérito pelo filme não ter resultado massante, mesmo sendo quase todo alicerçado em diálogos e limitado a poucos cenários. Mas a maior parte cabe mesmo a Meirelles, que demonstra, mais uma vez, sua maestria na direção de atores e muita sensibilidade na orquestração das cenas. A montagem também é muitíssimo bem amarrada.

 

Esgrima dialética

A química entre os protagonistas começa quando Bergoglio é convocado a Roma por Bento XVI, em um dia qualquer de 2012. O argentino vai encontrá-lo em Castel Gandolfo – residência de verão do papa – com a intenção de pedir a assinatura dele em seu pedido de aposentadoria. Entre negativas veladas de um e divertidas investidas do outro, o que se segue, ao longo de três encontros, são diálogos que tecem uma espécie de esgrima dialética entre os padres. Começa com discordâncias sobre temas comezinhos do sacerdócio, como o celibato dos padres, homossexualidade e a consagração da comunhão a divorciados. Evolui para discussões filosóficas, como a natureza (i)mutável de Deus, que seguem temperadas por sutis pitadas de humor. O que é melhor: sem nenhum hermetismo. A linguagem é simples, mas nem por isso raso o conteúdo.

Não por acaso, o roteiro faz ao menos três menções a “muros” e “pontes” como metáforas das defesas que a Igreja sempre ergueu em torno de si para proteger-se de mudanças (os muros), em oposição aos caminhos abertos para o diálogo (as pontes) que Bergoglio propõe para reconectá-la a seus fiéis. “Construímos muros ao nosso redor o tempo todo enquanto o real perigo estava dentro, conosco”, dispara o argentino, antes de introduzir uma crítica clara à postura da Igreja ante as denúncias de abusos de crianças por padres.

Mas é quando a conversa deságua em confissões pessoais que a narrativa realmente atinge seu clímax! Numa Capela Sistina deserta, ambos os sacerdotes se despem de seus papeis para apresentarem-se um ao outro como humanos falíveis, tão pecadores quanto quaisquer outros. É tocante a forma como os até então antagonistas acabam se acolhendo, se amparando e lembrando um ao outro o mecanismo do perdão.

É como atravessam, juntos e finalmente irmanados, a ponte que construíram ao longo de 2 horas (tudo somado) de diálogo honesto e respeitoso. Um exemplo que, certamente, todos nós poderíamos aproveitar muito bem.

‘Coringa’ e nossa embaraçosa catarse

Que atire a primeira pipoca o espectador de “Coringa” (Joker, 2019) que não empatizou com seu protagonista a ponto de, lá no fundinho, achar “bem feito” os crimes que ele acaba por cometer.

Um palhaço infeliz, que não controla o riso em situações de estresse

Esta é a grande armadilha do filme dirigido e co-roteirizado por Todd Phillips (pausa pra me chocar com o fato deste produtor, diretor e roteirista ter se especializado, antes, mais em besteiróis do nível de ‘Se Beber, Não Case’). Ele e o co-roteirista Scott Silver (“O Vencedor”) nos levam de tal forma a nos compadecer do dócil e maltratado Arthur Fleck – palhaço de rua triste que não controla o riso compulsivo em situações de estresse – que, sem nos darmos conta, continuamos a torcer por ele quando passa a assumir sua natureza psicopata.

Fez eu me lembrar do filme “A Onda” (The Wave, EUA, 1981; e Die Welle, Alemanha, 2008), que retrata a história verídica de um experimento realizado por um professor de História com seus alunos, a fim de provar, na prática, como uma sociedade inteira é levada a apoiar um regime racista, capaz de genocídio em massa – caso do Nazismo na Segunda Guerra Mundial. Mal comparando, é mais ou menos como milhões de pessoas acabam elegendo um líder que prega o machismo, a misoginia e a violência: fazendo nos identificar com histórias que busquem, lá em nosso subconsciente, nossos maiores medos e fraquezas e nos convençam de que “tudo bem” aniquilarmos quem este líder nos aponta como responsáveis por fazerem vibrar essas cordas. Dá uma sensação acolhedora de pertencimento nos ver representados por alguém que prometa se vingar por nós, né?

Está aí a armadilha!

E catarse é o nome dado pela psicanálise a este sentimento de “evacuação” de emoções internas (represadas em prol da civilidade) por meio de uma experiência fora de nós. É o que nos faz vibrar quando assistimos ao palhaço alquebrado finalmente defender-se de uma agressão gratuita, ainda que desproporcionalmente.

Se você não cedeu a esta embaraçosa catarse, parabéns! Pode se considerar um primor de civilidade, além de uma “pedra de gelo”, à prova de obras de arte que cumpram, para além do entretenimento, seu papel original: nos colocar um espelho nas fuças, para que nos reconheçamos nele e possamos extravasar nossos instintos primitivos apenas no terreno da ficção.

Por alcançar este intento de forma magistral é que “Coringa” entra para o rol das grandes obras-primas do cinema contemporâneo, ao lado de outras produções do gênero que bebem na fonte das histórias em quadrinhos – todos os “Batman” de Christopher Nolan entre eles.

Os Coringas de Heath Ledger e Joaquim Phoenix: interpretações de grandezas distintas

Aliás, não por acaso está na trilogia de Nolan a outra interpretação impecável do mesmo personagem, que elevou a atuação do saudoso Heath Ledger ao altar das mais memoráveis do cinema. Porém, não há comparação possível entre seu Coringa e o de Joaquin Phoenix. São duas grandezas distintas, nenhuma maior ou menor que a outra, até porque o mesmo personagem ganha tintas diferentes em uma e outra produção.

O Coringa de Ledger carrega o mesmo signo do caos do de Phoenix, herdado de seu original da HQ, mas nos arrebata mais por suas geniais falas, magistralmente interpretadas pelo ator. Não chegamos a torcer pelo personagem, por mais que nos dê prazer cada uma de suas aparições magnetizantes na tela. Já o de Phoenix nos mantém o tempo todo suspensos pelo anzol da empatia. Por exemplo [alerta de spoiler!], desminta se você também não ficou sem saber se sentia repulsa ou compaixão por ele na cena em que, com o rosto branco ainda respingado de sangue, despede-se do amigo anão com um beijo na testa e palavras de gratidão pela amizade, ditas em um inconfundível tom de ternura (que interpretação, senhoras e senhores!).

Demorei alguns quartos de hora pra me tocar do absurdo de simpatizar com um assassino e enxergar o que diz sobre nós a cena em que ele dança em cima de uma viatura, aplaudido pela multidão: que todos temos dentro as mesmas sombras que a condição psiquiátrica de Coringa faz aflorarem à superfície de seu consciente; e que, devidamente incentivados, também somos capazes de aplaudir a barbárie. Ou não seriam tantos os que, entre nós, aprovam jargões como “bandido bom é bandido morto”.

Lamentável é que alguns de nós levem esta necessidade de catarse para a vida, aplaudindo e incentivando o ódio contra o diferente, que sempre vai nos ameaçar (culpa de nossos vieses inconscientes construídos desde a pré-História).

Phoenix arrasando como Coringa na cena de dança que viralizou nas redes, ao som de ‘Rock’n Roll’, de Gary Glitter

Seria bom se todos abríssemos os olhos para enxergar  que as periferias pobres do mundo estão cheias de “coringas em potencial”, a sofrerem humilhações, violências e injustiças sociais, às vezes cometidas por quem deveria lhes proteger – governo e polícia, por exemplo. Mas nossa percepção vai só até o ódio primitivo que nos aflora quando somos assaltados por eles. Porque para nós, ditos “civilizados”, sentir empatia por excluídos que ameaçam a segurança e a ordem sociais… só no cinema mesmo, né?

 

P.S. PALMAS PARA O ROCKÃO DO CREAM (“White Room”,1968 ) EMBALANDO UMA DAS CENAS DE DANÇA DO CORINGA?!?!