Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2019 trabalhando free lance com produção e edição de conteúdos; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

Mães (*)

Sempre quis ser mãe… desde criança, quando já ajudava a minha a cuidar de filhos de vizinhas que trabalhavam fora, quando fomos lar provisório de uma bebê que aguardava adoção e depois de meus amados sobrinhos.

Conforme minhas idades foram passando iam mudando os motivos pelos quais queria ser mãe: primeiro porque amava (amo) crianças, depois por querer ter uma família minha pra cuidar, depois pra ter um vínculo eterno com outro ser e, por fim – no que acredito até hoje -, por entender que o maior legado que qualquer ser humano pode deixar para o mundo é outro ser humano de bem, bom caráter e apto a amar e respeitar os outros.

No final das contas, acovardei-me ante tamanha responsabilidade, por isso tenho um imenso e reverente respeito por todos que a encaram neste mundo cada dia mais louco.

E posso dizer que todas as mães de minhas relações se desincumbem desse “trabalho” muito bem, com a seriedade e o amor que ele exige. A todas elas seguem não só meu respeito, mas meu agradecimento por estarem formando os seres humanos que – se Deus quiser – farão do mundo em que meus sobrinhos-netos viverão um lugar mais seguro e justo do o que temos hoje.

Principalmente, obrigada à minha mãe, um exemplo para todas as outras mães de minha família, que me permitiram também ser um pouquitito mãe de seus filhos.

 

(*) Postei este texto no Dia das Mães do ano passado no Facebook. Segue atual e verdadeiro em todos os sentimentos e desejos. FELIZ DIA DAS MÃES a mães de todos os tipos de filhos (inclusive de quatro patas…rs).

 

Diário de Viagem: Granada

Sierra Nevada: a primeira visão

Dormia no ônibus que nos trouxe de Madri quando a desaceleração me despertou. Entrávamos em Granada, a milenar cidade espanhola (desde o século 13, pois sua origem é árabe) que hoje é o lar de Clara e Eduardo – desses amigos que a gente sabe que terá (e amará) para a vida toda.

A primeira visão que tive da janela foi de um ajardinado colado a um pequeno viaduto, donde se destacou, para meus olhos, uma arvorezinha de flores liláses. Brotou-me um sorriso involuntário (“bom presságio!”).

Logo que o ônibus livrou-se do pequeno congestionamento à entrada, Clara chamou minha atenção para a visão dos picos sempre brancos da Sierra Nevada, que – eu descobriria – pode-se buscar de qualquer ponto da cidade.

Depois o metrô de superfície, que os usuários pagam eletronicamente ao entrar – nenhuma roleta ou fiscal obrigando a cobrança, apenas a consciência dos usuários -… a primeira caminhada por ruas que conjugam arquitetura milenar e contemporânea… o espaço urbano amplo, limpo, calmo… o trânsito “silencioso” apesar de intenso.

Por uma e outra calçada, bicicletas amarelas que se pode pegar, usar e deixar em qualquer outro ponto para serem usadas por outras pessoas – nunca são furtadas ou vandalizadas.

Não vi carros velhos pelas ruas. “Não vale a pena manter os com mais de cinco anos, com todas as revisões exigidas por lei e impostos”, explica Clara.

Com Du e Clara em ruela do bairro Albaicín, de origem árabe

Mas o casal não tem carro aqui. Tampouco usa muito o barato, eficaz e confortável sistema de transportes da cidade. Desde que se mudaram em definitivo, em novembro de 2017, Clara e Du fazem todos os percursos por Granada a pé – inclusive os passeios pelos bairros íngremes, que expandem-se colinas acima dos rios Genil e Darro e que mantêm os traçados de ruelas estreitas do período medieval, proibindo o trânsito de automóveis.

Eu os tenho seguido alegremente desde a última quarta, a despeito das canelas ressentidas pelo prolongado sedentarismo e das bolhas causadas por um tênis novo (erro primário!).

Percebo que observam com amoroso prazer meus sustos emocionados, minhas descobertas do quão lindo pode ser o mundo.

Hoje o domingo amanheceu frio, finalmente – a primavera na Espanha é feita de dias ensolarados e temperaturas amenas, em torno dos 24 graus -, convidando-me a esta escrita, que “costuro” no sofá da sala, devidamente aconchegada sob uma mantinha felpuda.

Evoco as saudades de meus entes queridos, que a estas horas de nossa manhã aqui devem estar mergulhados no sono da madrugada de lá. Envio-lhes uma prece amorosa e peço que me aguardem “un poquito más”.

Quando voltar, cheia de saudades e histórias, lhes contarei tudo sobre o quão lindo (e civilizado) ainda pode ser o mundo.

Granada (Espanha), 29 de abril de 2018.

 

GALERIA

 

ARTIGO: Força, Ana!

Não gosto de lembrar as pessoas sobre o acidente grave que sofri em 2016, que me quebrou ossos das duas pernas. Parece vitimismo e não sou uma vítima. Mas tenho um bom motivo para lembrar aqui que precisei usar cadeira de rodas por três meses (além de andador e muletas por mais uns oito): legitimar minha solidariedade às pessoas portadoras de deficiências físicas.

Hoje, particularmente, minha solidariedade está com a funcionária pública mineira Ana Tereza Baêta Camponizzi, 59, que teve de conquistar na Justiça o direito de ser ajudada pelo porteiro de seu prédio a transpor uma rampa fora dos padrões em sua garagem. Seus vizinhos votaram, em assembleia do condomínio, que sua necessidade era privada e não pública. Traduzindo: “não era da conta deles” se ela precisava de ajuda para chegar a sua própria casa porque construíram em seu prédio um acesso em desconformidade com os parâmetros definidos em lei.

Acontece que, segundo a Constituição, é sim da conta de todos, mas não vou entrar neste mérito para não me desviar do objetivo deste texto, que é dar meu testemunho sobre como foi ser cadeirante em um mundo de andantes, ainda que por pouco tempo.

Precisei sair pouco de casa durante minha recuperação – para ir ao médico, ao INSS e ao banco sacar meu primeiro benefício (por questões que não explicarei aqui, ninguém podia fazer essas coisas por mim), mas foram vezes suficientes para me fazer desejar nunca mais ter de fazê-lo naquelas condições.

O pior não foi toda a operação física, que demandou sempre muita ajuda de outros.


E ao tentar se locomover de cadeira de rodas por calçadas de uma cidade como a
nossa, 
com obstáculos e desníveis de toda sorte, você sente como se não existisse…


O difícil é a demonstração (mesmo que velada) do quanto você atrapalha o mundo: um motorista que faz cara de mau humor quando tem de esperar você atravessar a rua devagar; pessoas que se dão ares de injustiçadas ao terem que deixá-la “furar” uma fila; jovens sem problema físico aparente que estacionam na vaga de deficiente (bem na sua cara!); sem falar nas pessoas que correm para pegar o elevador na sua frente acreditando que a pressa delas é mais importante que o seu direito.

E ao tentar se locomover de cadeira de rodas por calçadas de uma cidade como a nossa, com obstáculos e desníveis de toda sorte, você sente como se não existisse. Pior… que não deveria existir. Porque o mundo não foi feito para você . Os veículos não foram projetados pensando que existem pessoas como você no mundo, e as vagas destinadas a pessoas na sua condição nos estacionamentos não são respeitadas.

Cheguei ao fim de minha dependência de cadeira, muletas e andador sem resolver o sentimento de pequenez que me despertaram, mas muito certa de que, para viverem neste mundo, os portadores de deficiência não têm escolha senão serem – como diria Euclides da Cunha -, “antes de tudo, uns fortes”.

Então, força, Ana Camponizzi! Porque o mundo também é seu.

 

* Publicado, em versão reduzida, no jornal A Cidade do dia 12/4/2018

 

Tempos tristes estes!

Há pouco mais de um ano, escrevi em meu blog de cinema e vídeo CINÉLIDE sobre reflexão provocada pelo filme “Selma – Uma Luta Pela Igualdade” (2015), que reconstitui os bastidores da marcha liderada pelo pastor Martin Luther King Jr. pelo direito a voto dos negros, iniciada na cidade homônima do Alabama (EUA). Confessei que senti inveja da liderança firme, porém pacífica exercida pelo então líder do movimento pelos direitos civis dos negros, já que por aqui, no Brasil, as manifestações a que assistíamos não tinham nada a ver com a paz que ele pregava.

No aniversário de 50 anos do assassinato de King, no último 4 de abril, assisti pela TV a depoimentos de participantes da marcha de 1965, que terminou em violenta repressão policial, gerando indignação e solidariedade de norte-americanos de todos os cantos do país. Avaliaram os entrevistados que pouco se avançou desde então em conquistas reais pelos direitos humanos nos EUA, principalmente na cidade de Selma, onde negros e brancos ainda moram em bairros opostos e frequentam escolas, comércios e instituições diferentes.

E passaram-se 53 anos desde a marcha iniciada em Selma!

Por aqui, há quase cinco nos dividimos em um “Fla x Flu” político que só nos enfraquece, quando deveríamos estar mobilizados (todos juntos!) para a formação de novas lideranças políticas, comprometidas com ideais constitucionais e de defesa de direitos humanos. Do contrário, daqui 50 anos estaremos elegendo o mesmo perfil de políticos de hoje.

Tenho pra mim que mudar o perfil da classe política não dependerá só de nossas escolhas nas urnas daqui para frente, mas também da forma como estamos educando nossos filhos hoje e de passarmos a seguir ONTEM o exemplo da vereadora Marielle Franco, de trabalhar pelo bem da coletividade em sua própria vizinhança. Se todos nos tornarmos Marielles em “nossos quadrados” acho que teremos alguma chance.

Infelizmente, isso está longe de ocorrer. Na polarização política de hoje, de um lado soltam rojões pela prisão de um líder político amado pela corrente oposta… e esta corrente oposta desabafa sua amargara agredindo imprensa e pichando casa de uma ministra… e ambas as correntes seguem se agredindo, desrespeitando-se, odiando-se.

Tempos tristes estes!

Empatia

Já vira aquele filme antes. Na verdade, já fez parte de cena parecida inúmeras vezes, mas na maioria delas estava no papel da personagem que ouvia o que não queria ouvir, o que doía, magoava, deixava marca que não se esquece.

Enchia-se agora de uma compaixão inédita por todas as pessoas que lhe fizeram mal e carregam, sem saber, o fardo de sua mágoa.

Ainda lembra-se com rancor da professora que gritava com ela ante a zombaria de toda a classe; da gerente que a humilhava por ciúmes da preferência do chefe; do superior que a espezinhava por achar que ambicionava seu posto.

A professora severa lhe fez estudar como louca para conquistar uma bolsa em colégio particular com expertise para lidar com sua dislexia; a gerente insuflou-lhe coragem para pedir a um intimidante professor seu primeiro estágio remunerado e o antigo superior a levou a procurar, como louca, um emprego melhor.

De alguma forma, cada uma daquelas pessoas que lhe fizeram mal a levaram também a colocar em movimento sua máquina de viver.

Na verdade, deveria ser grata a todas elas.

Mas não… ainda não. A mágoa continuava lá.

E agora, que tinha de tomar uma decisão dolorida, que poderia determinar o rumo da vida da pessoa que mais amava no mundo dali para frente?

E se ela não a perdoasse? E se nunca alcançasse o entendimento de que lhe negava um desejo para seu próprio bem? E se entendesse e, mesmo assim, a mágoa continuasse lá… para sempre…?

Respirou fundo, pesou o que queria e o que devia fazer, mediu alternativas, negociou com os próprios medos… mas em todas as simulações sua razão convergia para aquela decisão dolorida.

Decidiu.

E doeu…

… porque às vezes ser mãe dói mesmo.

A primeira heroína que eu quis ser

Não me lembro quantos anos tinha quando assisti ao primeiro “Star Wars” da minha vida, mas sim o impacto que me causou. Tudo, do roteiro ao visual,  era original e revolucionário, mas nada me deu tanto prazer quanto assistir à personagem princesa Leia – a primeira heroína que eu quis ser!

Naquela década de 1980, eu estava acostumada a assistir mocinhas chorosas e frágeis no cinema e nas novelas.  O máximo de “girl power” a que as garotas de minha geração tinham acesso pela dramaturgia era a Mulher Maravilha da TV – fortona, mas derretida por seu sargento Rogers e usando um uniforme que era puro fetiche para o sexo oposto: maiô decotado, pernas de fora e botas de cano alto e saltos 10 (alguém aí já viu algum super-herói masculino quase mostrando a bunda?).

A princesa Leia era revolucionária total! Como assim uma heroína vestida até o pescoço, que guerreava de igual para igual e lado a lado com os homens e nunca chorava ou pulava no primeiro colo masculino ante uma ameaça?

E o que foi aquela despedida de seu apaixonado Han Solo, prestes a ser congelado e talvez morrer no processo!?! … Nenhuma lágrima e uma declaração de amor sem firulas ou gestos dramáticos. E quando ela vira prisioneira após tentar salvá-lo, até de coleira no pescoço e acorrentada a um monstrengo nojento e babão manda pose de “fodona”!

Hoje entendo porque a princesa Leia foi a primeira heroína com a qual me identifiquei: ela não era feminista simplesmente porque não precisava (aliás, não se vira qualquer tipo de militante por direitos porque se quer, mas porque se é vítima de alguma opressão), mas ai de quem atravessasse seu caminho!

Leia já se sentia, agia e era vista como uma igual pelo sexo oposto. Uma verdadeira “girl power”. Como não querer ser ela?

Um cheiro de vó

Às vezes, do nada, me vem um cheiro característico da vó Ana. Dia desses o senti em local dos mais inusitados, no meio do pátio da empresa em que trabalho, praticamente vazio no final de tarde.

O cheiro da vó tinha uma mistura de pele antiga com fumo de corda, que ela costumava deixar pendurado em um gancho da sua cozinha. Às vezes eu a assistia montar seu cigarro de palha sentada numa cadeira que colocava na saída para o corredor – sempre o mesmo ritual de cortar um pedaço do rolo, desbastá-lo a canivete sobre um pedacinho de palha e depois enrolá-lo com dedos desfigurados de artrose.

Depois, segurando o cigarro entre os dedos polegar e indicador, sorver a fumaça numa primeira tragada comprida, que lhe encolhia as maçãs flácidas da face, para depois soltá-la no mundo em baforadas fartas.

O que será que ruminava sentada ali com aqueles olhos arregalados e de pupilas perdidas dentro de alguma lembrança?

A vó não era de conversar, principalmente coisas do coração. Não sabia.

Também não era de “melação” – como chamava jocosamente gestos físicos de carinhos. Não me lembro de uma vez em que eu tenha recebido um beijo gratuito seu ou mesmo um abraço.

Mas de seu fogão vintage todo branco de frisos pretos da marca Cosmopolitan sempre saíam, quando eu pedia, ainda que acompanhados de reprimendas, bolinhos de chuva (mesmo sem chuva), bolos de fubá, bananadas e – o que eu mais gostava – mingaus de fubá ou farinha de milho, para aquecer em dias de frio ou nos fazer suar em convalescenças de febre.

Seus últimos anos conosco coincidiram com minha fase de rebeldia adolescente. Jamais a desrespeitei – ai de mim se o fizesse com pais que castigavam severamente o desrespeito aos mais velhos! -, mas também nunca tive paciência com suas ranhetices e críticas indignadas com os avanços geracionais da mulher.

Arrependo-me.

Carrancuda, só vi a vó chorar uma vez, de emoção, no casamento de minha irmã do meio, Liz.

Nós a perdemos pouco tempo depois, aos 68 anos, com pele e corcunda de 90 e pulmões estragados pelos cigarros.

Mas tenho pra mim que seu espírito ainda está por aí a velar por nós deixando de aviso seu cheiro de pele antiga e fumo.

Sobre a importância de uma imprensa forte

No mesmo dia em que a grande imprensa voltava toda a sua atenção à cobertura do deplorável assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, dava no Fórum Econômico Mundial para a América Latina uma chocante declaração, que acabou passando despercebida: a de que os numerosos esquemas de corrupção dados a conhecer pela operação Lava Jato é apenas “10%, a ponta do iceberg” comparado às fraudes que ocorrem nos municípios brasileiros. Ele corroborou tais afirmações com dados de auditorias feitas pela Controladoria Geral da União – uma delas prova que dois terços dos municípios fraudam a compra de merendas escolares, por exemplo.

Nos dias seguintes a essas duas notícias, haters começaram a multiplicar fake news (notícias falsas) redes sociais afora com as mais chocantes calúnias sobre a vida e a atuação de Marielle. Acusaram-na de ex-mulher de traficante a integrante de facções criminosas, quando até organismos internacionais como ONU (Organização das Nações Unidas), OEA (Organização dos Estados Americanos) e Anistia Internacional conheciam seu trabalho em prol dos direitos humanos, especialmente entre as minorias LGBT, de negros, favelados e mulheres.

O que a morte de Marielle tem em comum com a declaração do ministro da Justiça sobre a corrupção no Brasil?

A imprensa!

Explicando melhor: um e outro caso fornecem exemplos de como a imprensa é determinante em nossa apreensão da realidade e tomada de posição do lado certo ou errado da história.

Vejamos:

O importante trabalho que era desenvolvido pela vereadora do PSOL só pôde ser conhecido, para além da órbita de militância social em que ela gravitava, graças à grande imprensa. E a elucidação de seu assassinato, com consequente punição dos responsáveis, só se dará quanto maior for a pressão exercida sobre os poderes pela opinião pública, cuja voz é ampliada… PELA IMPRENSA.

Ao mesmo tempo, a disseminação de notícias falsas sobre ela podem exercer uma pressão contrária, e os assassinos e/ou mandantes poderão continuar mantendo os esquemas que fazem do Rio de Janeiro o inferno que é hoje SE a imprensa “se esquecer” de cobrar soluções para o caso.

Voltando ao alto grau de corrupção nos municípios brasileiros, o ministro da Justiça o atribui ao fato de o jornalismo independente ficar concentrado em apenas cinco dos 26 estados do País – “não há jornais fazendo cobranças sobre ética no setor público em 80% do território nacional”, disse ele com todas as letras.

Dito tudo isso, fica claro o quanto o jornalismo sério e independente pode ampliar a voz de heroínas como Marielle e o como o “marrom” pode calá-las. Mais… sem o primeiro, não enxergamos as causas de nossas misérias sociais. Até dois anos atrás, só sofríamos seus sintomas: saúde, educação e segurança sucateados e ineficientes, criminalidade descontrolada, etc, etc, etc… Já hoje sabemos, graças à operação Lava Jato, com ampla cobertura da imprensa, que muito do dinheiro de nossos impostos tem sido desviado para esquemas corruptos.

E, segundo o próprio ministro da Justiça, ainda há muito a ser denunciado.

Então, que a Polícia Federal consiga desnudar todos e o jornalismo independente amplie-se para todos os estados brasileiros.

Que os jornalistas que estão se formando nas faculdades preocupem-se menos com a via mais rápida de serem bem-sucedidos na vida e mais com o que podem fazer para ajudar nesta ampliação da voz de suas comunidades. Que enxerguem-se mais como instrumentos a serviço de seu entorno, como o fez Marielle e o fizeram grandes jornalistas antes deles.

E que, por fim, os consumidores de notícias, POR FAVOR, sejam menos preguiçosos e procurem por fontes confiáveis de informação antes de compartilhar qualquer coisa que passe por sua timeline.

Uma imprensa forte não se faz apenas com bons jornalistas, mas com leitores que lhe valorizem!

Sobre a estranha ordem das coisas

Ler sobre o novo livro do neurocientista António Damásio, “A Estranha Ordem das Coisas” (editora Temas e Debates), fechou minha garganta com um sentimento de urgência. Faz todo sentido o que ele diz sobre a necessidade de se educar massivamente as pessoas para que não nos matemos uns aos outros, pois é preciso contrariar nossos instintos mais básicos, que nos impelem a pensar primeiro em nossa sobrevivência.

“O que eu quero é proteger-me a mim, aos meus e à minha família. E os outros que se tramem. […] É preciso suplantar uma biologia muito forte”, exemplifica ele à reportagem da revista Prosa e Verso, associando este comportamento a situações como as que têm levado a um discurso anti-imigração e à ascensão de partidos neonazistas pelo mundo.

Antonio Damasio: o neurocientista das emoções

Ele não se refere, porém, àquele modelo alienante de educação doutrinária, em que o educado não questiona nada. Percorremos as últimas décadas lendo e escrevendo livros, compondo e cantando canções contra ela, mas passamos reto pelo ponto de equilíbrio e fomos parar no outro extremo.

Nosso país elegeu um presidente que age como se estivesse sempre em guerra – contra os opositores, contra a imprensa, contra quem discorda – e que defende o armamento da população contra a violência sem perceber o brutal e infeliz paradoxo que isso encerra.

Temos sido educados pela cartilha do individualismo exacerbado, que também é um modo de alienação, pois ignora tudo o que for o outro.

Se não, como explicar que lemos todos os dias, sem nos abalar muito, sobre bandidos que atiram com facilidade em grávidas desarmadas, executam cidadãos comuns por meros bens materiais, promovem chacinas ordenadas por facções do crime organizado e sobre jovens que atiram a esmo em escolas e se suicidam em seguida?

Lemos e assistimos sobre essas selvagerias e continuamos tocando nosso dia, agradecendo intimamente que não aconteceram conosco.

Será que tornamo-nos indiferentes ao que ocorre ao outro?

Se não, por que não estamos nas ruas exigindo educação de qualidade para todos, em vez de ficarmos praguejando nas redes sociais contra esta “estranha ordem das coisas”?

Sobre a doença do Rio (e de nós todos)

Todos temos assistido perplexos à escalada da violência no Rio de Janeiro, que levou à convocação de tropas do Exército para reforçar a segurança no Estado e, na última sexta, à intervenção federal em sua segurança pública.

Repete-se, no Rio, o raciocínio que levou, há alguns anos, à instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) nos complexos de favelas. Novamente investe-se em um “remédio” com capacidade de atuar apenas nos sintomas da “doença” do Rio, que é a criminalidade.

Ao contrário do que possa parecer, suas numerosas causas não passam pela vulnerabilidade de polícias mal equipadas e mal pagas – esta é, antes, um dos sintomas, ao lado dos números crescentes de mortes de policiais e inocentes em crimes com abordagem violenta e tiroteios entre facções ou entre policiais e criminosos.

As verdadeiras causas são sociais e todas de responsabilidade de um Estado mal gerido e contaminado pela corrupção, que não cumpre seus deveres constitucionais de garantir direitos essenciais (saúde e educação no topo da lista) a todos os cidadãos, sem distinção de classe ou credo.

Excluídos, os mais pobres têm de escolher entre passar a vida toda dependendo da prestação ineficiente ou quase inexistente desses serviços públicos ou tornar-se parte do problema juntando-se ao crime organizado, que lhe proverá o que o Estado lhe nega (sensação de pertencimento inclusa). Da mesma forma, o policial é confrontado com sua própria escolha: trabalhar honestamente, com salário que não lhe permite morar muito longe das favelas, ou também fazer parte do problema tornando-se corrupto.

É claro que a intervenção do Exército diminuirá os números da criminalidade em um curto prazo, pois é treinado para a guerra – que é o que está ocorrendo hoje no Rio. Mas, assim que terminar, é muito provável que, em poucos anos, esses números voltem ao patamar de descontrole de hoje. Foi assim com o projeto das UPPs e assim será com a intervenção federal se nenhuma “vacina” social começar a ser colocada em prática pelo Estado desde já.

 

Publicado no jornal A Cidade em 21/2/2018