É claro que minha vida tem trilha sonora, como a de todo mundo. “Caçador de mim” me leva direto para a cozinha da casa de duas amigas, irmãs, onde passávamos horas cantando. As letras das músicas em um caderno universitário, escritas pela mãe delas, com anotação das cifras (que nunca consegui ler). “Ai que saudade d’ocê” e lá estou eu, na sala do apartamento onde morei durante a primeira faculdade, conversando com um namorado ao telefone. “Foi Deus quem fez você” e meu pai, ateu, está dirigindo, fita cassete no rádio, perguntando alto numa pausa longa no final da música: quem fez a Luciana, Amelinha, quem? E ela respondia: “Foi… foi Deus”. “Should I stay or should I go”, “Basket case”, “Overkill”, “No dia em que vim-me embora”, “Zé do Brasil”, “Mr. Jones” e a lista é longa. Passo (ou passava) quase todos os dias dos últimos cinco anos pela Avanhandava e em todas as vezes me lembro de escutar ali, pela primeira vez, “Eduardo e Monica”. Rua Avanhandava não existe mais para mim sem essa música.
Nesses dias, em que volto para a casa onde cresci, percebo que minha vida também tem lista bibliográfica ligada aos lugares. Pelos caminhos desconhecidos (e que algum mistério ainda nos reste) do cérebro, olhei para uma cadeira no gramado e me vi terminando de ler “Sidarta”, do Hermann Hesse. O sol estava ardido e depois do último ponto final fiquei um tempo ali, na tentativa de absorver um pouco do que tinha acabado de sentir e pensar. O silêncio interno daquele dia volta só de olhar para a cadeira.
Na sala me vi abraçada pela primeira vez com “Anna Kariênina”, o livro nas minhas mãos onde quer que eu fosse e minha irmã me perguntando se eu não podia largá-lo um pouco. Não, eu não podia. E aquela foi só a primeira leitura de muitas. Estou sempre à procura de Anna. Em um sofá que nem existe estou lendo “O amor é fodido” e “Favela high-tech”, em pleno Carnaval, abandonada por um namorado. Foi nesse Carnaval que descobri que a literatura é (também) remédio para a dor. Ainda me vejo sem conseguir dormir, a luz do abajur acesa e meus olhos arregalados, durante a leitura de “O Anticristo”, de Nietzsche. Nesse mesmo quarto meus olhos também se arregalaram com “Sem tesão não há solução”, mas com ele eu conseguia dormir. E sonhar. Harry Potter, nessa mesma cama, chegou a atrapalhar um pouco o sono. Muitos seres esquisitos nos meus pesadelos. No quarto que foi dos meus pais, minha mãe me vendo com “Christiane F.” nas mãos e me dizendo que não era para a minha idade. Foi a deixa. Li ali mesmo, sempre que ela estava longe, com cuidado para deixar o livro no mesmo lugar.
Algumas datas marquei bem. Sei o ano e o mês sem precisar fazer esforço. Para outras faço umas contas para ter alguma noção. Como tem acontecido ainda mais intensamente nessa pandemia. Viramos mais um mês, continuamos proibidos de viajar no espaço e eu sigo tentando me manter com as viagens no tempo.