Categoria: CINÉLIDE

Um garoto começa a enxergar o mundo

Mais de dez anos após “Sociedade dos Poetas Mortos” ter despertado profundas e transformadoras emoções na jovem que fui, um outro filme veio a me inspirar a mesma ternura. “Olhos Abertos” (Wide Awake, 1998) foi escrito e dirigido para a televisão pelo cineasta de origem indiana M. Night Shyamalan, um ano antes dele alcançar reconhecimento de público e crítica com “O Sexto Sentido“. Toda vez que o revejo sinto as mesmas emoções de décadas atrás.

Singelo, o filme acompanha as peregrinações de um menino de 11 anos, Joshua (Joseph Cross, de “Correndo com Tesouras”), que, após perder um avô muito querido, decide sair à procura de provas da existência de Deus. O objetivo é se certificar se o avô foi para um bom lugar e ao lado de Deus. Ele começa , então, a bombardear de perguntas vários adultos à sua volta, inclusive os pais – um casal de médicos agnósticos -, mas principalmente representantes de diferentes religiões que cruzam seu caminho. No processo, instiga à reflexão todos os que o rodeiam e começa a “abrir os olhos”- no sentido de tomar plena consciência – para as pessoas e o mundo à sua volta.

É terna e didática a forma como o roteirista/diretor conduz Joshua por este processo de despertar, mas nem por isso simplória – aliás, me irrita a freqüência com que os mais ferrenhos críticos de Shyamalan confundem a simplicidade de suas histórias com banalidade e vêem infantilidade onde vejo alegoria e simbolismo. Para mim, a força do cinema do indiano está exatamente onde os críticos vêem sua maior fraqueza: numa indústria de entretenimento sustentada sobre roteiros-fórmula, ele se atreve a filmar histórias singelas, cheias de signos intelegíveis por todas as idades, o que as aproxima muito dos contos de fadas.

Lembro que os contos de fadas não são reproduzidos oralmente há séculos à toa. A força de sua longevidade reside no fato de conseguirem penetrar o insconsciente humano, que rege todas as nossas ações involuntárias e que entende a linguagem dos signos. Não é pouco!

Viagem à origem de um ícone

Em uma cena de “O Garoto de Liverpool” (Nowhere Boy, CAN/ING, 2009), um jovem de 15 anos pergunta à mãe:

– Por que Deus não me fez Elvis?
– Porque estava te guardando para ser John Lennon – retruca ela.

Nossa distância de mais de meio século em relação ao tempo em que é ambientado o filme torna este diálogo profético e ironicamente emblemático (qual dois dois foram maiores para o rock afinal?). No contexto da história contada, porém, apenas espelha a inquietação de um adolescente ambicioso que ia muito mal nos estudos e via na formação de uma banda a única alternativa ao ostracismo social.

O filme mostra que, aos 15 anos, John Lennon (aqui vivido por Aaron Taylor-Johnson) já adorava música, mas a ideia de liderar uma banda parecia ter mais a ver com suas ambições e grande ego do que com uma devoção humilde à arte.

A diretora inglesa Sam Taylor-Johnson escolhe um recorte pouco explorado na vida do mais idolatrado integrante do The Beatles, quando ele ainda morava com os tios, por quem foi criado desde os 4 anos de idade – última vez em que viu os pais. O filme acompanha o intenso período em que Lennon perde o tio querido, reencontra a mãe bipolar, é confrontado com a razão de ter sido criado pela tia Mimi e forma a primeira banda, The Quarrymen.

O recrutamento para o grupo o leva a conhecer um garoto chamado Paul, que atrevia-se a tocar qualquer instrumento de corda muito melhor do que ele. É Paul quem traz para o grupo um amigo seu, George, que também toca muito bem. Até então, os futuros Beatles ainda não eram próximos. O melhor amigo de John era Stan, personagem principal de outro filme também sobre a fase pré-fama do quarteto: “Os cinco rapazes de Liverpool” (muito bom… procurem).

Dá para perceber que a diretora evita ao máximo vincular aqueles jovens personagens a qualquer remissão aos ícones que se tornariam depois. Até o nome famoso pelo qual o grupo passaria a ser conhecido mundialmente é propositalmente ocultado – “E isso com a nova banda, os… Como eles se chamam mesmo?“, pergunta a tia Mimi, ao ser comunicada de que John está partindo com a banda para Hamburgo, na Alemanha. “Você se importa?“, desconversa John.

Sábia escolha, já que o relato desglamourizado nos permite enxergar o adolescente John sem mitificações. Conseguimos entender como seus sentimentos, principalmente o complexo de rejeição que é forçado a confrontar nesta conturbada fase, ajudaram a moldar a personalidade controversa que conheceríamos anos depois.

Bem filmado e, claro, repleto daquele rock ingênuo que se fazia nos anos 1950 (antes de Os Beatles o reinventarem), o filme resulta uma deliciosa “viagem musical”. Ela fica mais emocionante quanto maior for sua idolatria pelo quarteto inglês (a minha e de meu marido são enormes!!!).

Mas, mesmo gostando só um pouquinho dos Beatles, desafio qualquer um a resistir em embarcar nela logo na primeira cena. Quando toca um único acorde de “A Hard Days Night”, no primeiríssimo segundo de filme, JÁ ERA! … Somos irremediavelmente fisgados!!!

‘Vidas que se cruzam’: culpa e redenção

É engraçado como assistir a muitos filmes nos familiariza com o “clima” da escrita de alguns roteiristas de cinema. Por exemplo, reconheci antes de confirmar a autoria de “Vida de Solteiro” que a história e os diálogos tinham o estilo de Cameron Crowe. Eu e outros milhares de fãs de Pedro Almodóvar reconhecemos de olhos vendados qualquer filme do espanhol; e podem me apresentar qualquer exemplar do cinema de Nora Ephron que reconheço rapidamente seus diálogos cheios de referências ao universo feminino.

Com “Vidas que se cruzam” (The Burning Plain, EUA, 2009) não adivinhei de cara o nome do autor, mas sorvi com familiaridade o clima melancólico da história de uma hostess de restaurante que se entrega ao sexo como a uma fuga desesperada de si mesma. Quando vi nos letreiros o nome do roteirista e diretor Guillermo Arriaga (de “21 Gramas” e “Babel”) tudo fez sentido. Mesmo quando dirigidas por outras pessoas, suas histórias se deixam reconhecer por um clima desesperançoso e pela sensação de inadequação que seus personagens nos passam, como se vagassem pela vida sem merecê-la ou sem ter nada a perder.

Charlize Theron está talentosa e linda como sempre no papel da protagonista, que parece se arrastar por uma existência vazia de afetos, à qual ela mesma se inflige como punição. Ao mesmo tempo, tentamos entender sua relação com a história em flashback de dois jovens que se aproximam após perderem os pais no mesmo incêndio do trailer onde se encontravam clandestinamente – o pai dele era amante da mãe dela.

Logo entenderemos que é de culpa que se trata esta história.

Mas nem tudo é desesperança no cinema de Arriaga, pois o passado vai bater à porta desta mulher com a oferta de uma oportunidade de redenção. Se ela vai agarrar a oportunidade ou bater a porta na cara de seu passado, só assistindo para descobrir.

Tudo pode dar certo com Woody Allen

Woody Allen ainda vai bater algum recorde ou ganhar um prêmio como o cineasta que mais usou o cinema como espelho… digo, como seu próprio divã. “Tudo pode dar certo” (Whatever Works, EUA/FRA, 2010) não é o primeiro (e, suspeito, não será o último) a ter como protagonista um alter ego seu. O deste filme é Boris Yellnikoff (Larry David), um intelectual rabugento com um mau humor só proporcional a seu estratosférico ego – ele acha que é o único a entender o caos do universo. Seu cotidiano de catedrático aposentado e divorciado muda radicalmente depois que a jovem sem teto Melodie Celestine pede abrigo em seu apartamento e vai ficando indefinidamente.

Evan Rachel Wood está ótima no papel da interiorana burrinha, que, em dado momento, começa a achar a companhia de gente de sua idade um porre. Ainda se descobre apaixonada… adivinhe por quem? Uma pista: qualquer semelhança com a relação do diretor com a ex-enteada Soon Yi, 30 anos anos mais nova, NÃO É mera coincidência.

Referências à parte, dá para se divertir com as situações bizarras que Allen cria para a fauna de personagens que vão povoar a vida do casal. Um exemplo são os pais de Melodie, que chegam à metrópole em diferentes momentos – a mãe primeiro, atrás da filha, e o pai em seguida, atrás de ambas. Em vez de resgatarem Melodie, ambos acabam convertidos a uma nova versão de si mesmos, assumindo talentos e vocações até então insuspeitos.

Allen extrai humor do absurdo. Minha impressão é que ele busca no cotidiano situações reais e as exagera para travesti-las de piada, tendo sempre como suporte diálogos verborrágicos (sua marca registrada) e inteligentes, pródigos em ironias. O clima de ingenuidade absurda lembra as comedinhas de erros de Shakespeare (sem as indefectíveis rimas).

Apesar de ter alguns filmes sérios de Allen na galeria dos melhores que já assisti -“Interiores” e “Crimes e Pecados”, por exemplo- acho que gosto mais do estilo de cinema que ele faz em “Tudo pode dar certo”. Pelo menos para mim, um exemplar do cinema sério de Allen é muito bom, mas do que faz rir é melhor ainda.

‘Estão Todos Bem’: simplesmente adorável!

Confesso que tenho um certo preconceito com versões americanizadas de filmes de outros países. Mas o diretor Kirk Jones saiu-se muito bem ao adaptar “Estão Todos Bem” (Everybody’s Fine, EUA, 2009), baseado no italiano “Stano tutti bene” (ITA, 1990), de Giuseppe Tornatore (“Cinema Paradiso”).

É verdade que o roteiro perdeu  sutilezas e algum mistério em relação ao original (americanos não resistem a entregar tudo “mastigadinho” ao espectador), mas, em compensação, nos brinda com uma atuação nada usual de Robert De Niro, como um pai terno, daqueles que a gente quer pegar no colo. É a melhor coisa do filme!

De Niro assume o papel que foi de Marcelo Mastroianni no original italiano. Como o viúvo Frank (Francesco no  original),  decide contrariar conselhos médicos para embarcar numa longa viagem pelo país para ver os quatro filhos adultos, estabelecidos cada um em uma cidade diferente. É que pela primeira vez em muito tempo todos avisam, em cima da hora, que não passarão o Natal com ele.

É de  uma tremenda ternura ver o personagem preparar a casa e fazer compras para receber os filhos; depois juntar pertences e remédios para sair pelo mundo atrás deles e, durante a viagem, impor seu orgulho a qualquer estranho desavisado que abra uma brecha pra ele falar da prole.

De Niro confere ao personagem uma fragilidade e uma ternura que julguei impensáveis em um ator acostumado a contorcer-se em caretas e grunhidos de personagens os mais truculentos (policiais, mafiosos, boxeador, assassino, psicopata… a lista é grande). Reparem na dignidade com que incomoda o ritmo frenético das cidades grandes para registrar lembranças em uma câmera antiga, que ainda usa filmes fotográficos. Faz a gente pensar sobre quão pouca importância damos às coisas simples, ao parar para olhar o mundo e o outro, em meio a tanta velocidade que nos é exigida no cotidiano.

Simplesmente adorável!

‘Bastardos inglórios’ é Tarantino em grande forma

Confesso que relutei por muito tempo em assistir “Bastardos Inglórios” (Inglorious Basterds, EUA/ALE, 2009) e que, não fosse ele um dos candidatos ao Oscar de Melhor Filme de 2010, provavelmente não me daria ao trabalho – como não me dei até hoje ao de ver  “Kill Bill volumes 1 e 2“. A razão é a mesma para os três: me incomoda violência gratuita.

Antes que cinéfilos de todo o mundo me taquem pedras, esclareço que também enalteço todas as qualidades do cinema do diretor Quentin Tarantino. A ver: originalidade, ironia inteligente e um humor completamente fora dos padrões, que quase beira o absurdo, mas diverte (às vezes até demais!). São grandes qualidades numa indústria cada vez mais atada a roteiros-fórmula. Só tenho problema com o fato do diretor usar a violência como estética – jorros de sangue, pedaços de pessoas e assassinatos filmados de forma banal, como se não fossem nada demais e ainda provocando risadas.

Feita esta única ressalva, tenho que admitir que “Bastardos Inglórios” reúne todas as melhores qualidades do selo Taranti na no, potencializadas aqui pela participação do astro Brad Pitt – em atuação acima da média, registre-se – e pela interpretação simplesmente fantástica do austríaco Christoph Waltz. Se o filme não tivesse outras qualidades, só sua atuação magnética seria motivo suficiente para assisti-lo. Ele mereceu o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo papel de um investigador da SS (a polícia militar nazista) que caça judeus.

“Bastardos…” é a história dos feitos de um pelotão fictício de soldados americanos judeus com a missão de matar o máximo de nazistas que conseguirem.  É brilhantemente contada, em cenas longas e tensas, como a de Waltz interrogando um rancheiro que tem uma família judia escondida sob o assoalho. Ou a de um grupo de resistentes disfarçados de alemães em conversa de “gato e rato” com um oficial da Gestapo em um bar-porão de Paris. São de prender a respiração!

A última parte do roteiro é uma obra-prima de arquitetura narrativa. A violência gratuita e “engraçada” de Tarantino (infelizmente para mim) também está lá. A ressalva positiva é a de também ter revelado para o cinema ocidental a francesinha Mélanie Laurent e o alemão Michael Fassbender. Tarantino sabe reunir – e retirar o melhor de – talentos!

Não alcancei o apelo de ‘Guerra ao Terror’

Eu deveria cultuar “Guerra ao Terror” (The Hurt Locker, EUA, 2008). Aclamado pela crítica especializada, o título rendeu o primeiro Oscar de Melhor Direção para uma mulher na história da premiação: Kathryn Bigelow.

Só que… não.

Não me entendem mal. Acho  que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas devia a estatueta a uma diretora desde “Yentl” (1983, Barbra Streisand), e acho o trabalho de Kathryn Bigelow ótimo – sou fã especialmente do primeiro “Caçadores de Emoção (Point Break, 1991) e de “Estranhos Prazeres” (Strange Days, 1996), dirigidos por ela -, mas não achei “Guerra ao Terror” nada demais. Ao menos não para merecer a campanha gigantesca que lhe fizeram à época do Oscar 2010.

Tudo bem, sou uma espectadora suspeita por não morrer de amores pelo gênero de ação (espetáculos de cenas de perseguição e tiroteio me dão um tédio sem fim), mas sou, sim, capaz de me sensibilizar por filmes de guerra que carreguem propostas de reflexão, como “Platoon” (1987, Oliver Stone) e “Apocalipse Now” (1979, Francis, Ford Coppola), por exemplo. E não tenho nada contra filmes de ação que contem uma ótima história nos intervalos dos tiroteios e perseguições de carro – a exemplo dos já citados de Bigelow e todos os das franquias “Máquina Mortífera” e Vingadores da Marvel.

Mas, de verdade, não consegui encontrar em “Guerra ao Terror” nada de útil sobre o que refletir nem uma boa história para me entreter. A mim parece um filme sem alma. Sua primeira metade, em que o trio de soldados de um esquadrão anti-bombas fica só desativando detonações – com dois deles se estranhando o tempo todo, como dois infantilóides – quase me matou de tédio. O único momento interessante, para mim, foi uma aparição do (maravilhoso!) ator Ralph Fiennes, infelizmente muito rápida, com seu rosto e cabeça escondidos e um turbante árabe na maior parte da cena (reconheço aquele par de olhos em qualquer tela).

Os norte-americanos devem ter visto algum sentido na história que não alcancei. Costumo me sentir da mesma forma com alguns filmes dos irmãos Joel e Ethan Coen (#prontofalei), como o também premiado “Onde os Fracos Não Têm Vez” (No Country For Old Men, 2008). Devem ser  filmes codificados para só um determinado gênero de platéia (da qual não faço parte) entender… Vai saber?!

‘Amor sem Escalas’ e o vazio das relações líquidas

“Amor sem escalas” começa como um filme cínico, daqueles pensados para dar a sensação de um “soco” no estômago que te faz acordar para a vida real. Quando você menos percebe, o próprio roteiro começa a questionar a validade de toda esta injeção de realidade. Por isso e muito mais mereceu, em minha opinião, o Globo de Ouro de Melhor Roteiro para Jason Reitman, que também assina a direção.

George Clooney interpreta aqui o solteiro convicto Ryan Bingham, consultor de uma terceirizada especializada em demitir funcionários para outras empresas. Orgulhoso da própria liberdade e especialista em relações líquidas (superficiais, que não duram, por isso diz-se que “escorrem entre os dedos”), Ryan é convincente ao enumerar as vantagens de não ter nada e ninguém que o prenda a lugar algum, nem nada de pesado para carregar na mochila. Sua maior ambição é atingir a marca de 1 milhão de milhas acumuladas por suas viagens de negócios para poder dar a volta ao mundo – sozinho!

Algo nesse discurso perfeito, que Ryan costuma repetir em palestras a conferências de executivos mundo afora, começa a fazer água quando sua empresa o encarrega de treinar uma executiva recém-formada (Anna Kendric) por algumas viagens.
Não é nada repentino. Primeiro ele se relaciona com uma atraente executiva que parece comungar seu perfil de desapego. Depois, começa a sentir-se responsável pela jovem trainee, que confrontada por um choque cavalar de realidade, começa a questionar todas as suas teorias prontas sobre a vida.

Uma cena emblemática dá pistas de que algo está mudando dentro de Ryan quando ele volta do casamento da irmã caçula – ao qual decide ir de última hora, já que sempre odiou reuniões de família. Ao chegar em seu apartamento, tira da mala três cabides, que pendura em guarda-roupas absolutamente vazio – como os de hotéis em que se hospeda; entra no banheiro de azulejos brancos e neutros como todo o restante do apartamento e, ao pegar a escova de dentes, congela diante de sua imagem no espelho. Parece que está se olhando de verdade pela primeira vez. Entendemos, por associação, que é a sua vida, neutra e vazia, como aquele apartamento, que ele começa a enxergar com um novo olhar.

Não vou entregar o que ele faz a partir desta tomada de consciência, mas basta saber que experimentará uma dose cavalar do cinismo que sempre dispensou aos outros.

No final das contas, “Amor sem Escalas” passa uma mensagem muito mais nobre do que esperávamos no começo: a de que é preciso, sim, coragem para aceitar todo o estresse, renúncias e – sim – tédio que vêm junto com os laços afetivos, mas que sem eles a vida fica sem cor. O melhor é que o filme mostra isso sem adotar os habituais recursos “melosos” dos romances e com um olhar muito adulto e realista. Pontos para seu diretor-roteirista, que parece saber, aos 32 anos, o que seu personagem levou algumas décadas a mais para descobrir.

‘Batman – O Cavaleiro das Trevas’: histórico!

Prova de que nem todo o sucesso de público é sinônimo de “fórmula descartável” foi o rankeamento de “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan, como a maior bilheteria da década (até a data desta postagem). Para mim, o filme é mais que genial. É histórico, por provar que é possível, sim, filmar roteiros inteligentes e que fazem pensar sem abrir mão do espetáculo sensorial do “cinemão”. Concordo, aliás, com este comentário de um crítico de cinema respeitado: “sua aparente trivialidade é justamente o que faz com que, enquanto nos diverte, possa levantar questões sérias sobre os valores e os méritos”.

Nesta versão de uma das HQs mais filmadas do cinema, o personagem de Coringa (Heath Ledger memorável!) nos força a refletir sobre o quanto tememos o caos e a falta de significação para cada acontecimento ruim – como a morte de um ente querido, as guerras ou uma tragédia. Nos faz encarar um medo sobre o qual sequer temos consciência no dia-a-dia, por estar escondido atrás das explicações que precisamos encontrar para tudo.

É por conhecê-lo que o Batman de Nolan assume, na segunda parte desta “fodástica” trilogia, a culpa por crimes que não cometeu. Ao contrário do bom-moço Harvey Kent, ele consegue emergir à dor e à falta de significação para a perda do amor de sua vida. Afinal, já passou por esse tipo de sofrimento antes.

Para mim, o filme fornece a melhor definição de super-herói: aquele que não merece o título só por voar entre prédios e fazer coisas que seres humanos normais não conseguem, mas porque – para usar as palavras do oficial Jim Gordon – ele “agüenta” os ônus!

Sensacional!

‘O Clube do Filme’: assista este livro

Deliciosa a experiência de ler “O Clube do Filme”, livro do jornalista canadense David Gilmour (não confundir com o músico do Pink Floyd), que, desconfio, agradará mesmo a quem não curte tanto cinema quanto eu. É que não se trata só de filmes. É a história de um pai que decide arriscar-se a respeitar a natureza do filho autorizando-o a deixar a escola (que ele odeia) sob uma condição inegociável: assistirem juntos a três filmes por semana, o que inclui conversarem e refletirem a respeito após cada sessão.

Torna esta história muito humana o fato de o pai nunca admitir que sabe o que está fazendo. Muito pelo contrário. O tempo todo ele se questiona sobre se fez a coisa certa ao seguir seu instinto . Chega a entrar em desespero algumas vezes, imaginando um futuro ruim para o filho por negligência sua.

Mas a história terá um bom final. E até chegar a ele o leitor acompanha as confissões de um pai inseguro sobre a melhor forma de ajudar o filho quando ele passa pelas agruras de alguns ritos de passagem da adolescência, como primeiros amores,  dores-de-cotovelo, dúvidas sobre o que é “ser homem”, etc.

Ao mesmo tempo, durante as sessões de cinema do Clube – que dura três dos mais cruciais anos da adolescência do filho, Jesse – sorvemos deliciosos comentários de David sobre filmes dos mais variados gêneros e aprendemos com ele a ver muitos filmes por outros prismas – o de um pai que quer compartilhar sua visão de vida com o filho.

O autor não fala dos filmes com a arrogância e o determinismo dos críticos, mas como um devotado e entusiasmado fã. Dá vontade rever muitos filmes citados por ele que já vimos ou de sair correndo locar os que ainda não assistimos.

Com esta identificação, acabamos por fazer parte, junto com pai e filho, do tal do “Clube do Filme”. Também fiquei desejando conhecer David pessoalmente, para passar algumas horas deliciosas trocando impressões sobre centenas de títulos. Seriam horas prazerosas!

Bom, mas como é improvável que este encontro role de fato, vou me contentar em utilizar uma das idéias de David para a próxima postagem, à qual darei o nome de “Prazeres Culpados” – o nome dado por David a um dos blocos temáticos da programação de filmes que ele preparava para ver com o filho. Este módulo referia-se a filmes que ele tinha vergonha de admitir que gostava, por serem considerados medíocres (Exemplo: “Uma Linda Mulher”).