Sempre gostei de antiguidades. Há uma senhora centenária que mora em mim e que fica toda eufórica quando encontra lugares ou coisas que lhe eram familiares. Foi assim que me senti quando conheci o centro antigo de São Paulo, por exemplo, sei lá quantos anos eu tinha. Nunca me diverti muito vendo arranha-céus espelhados com elevadores panorâmicos que falam com a gente, tão o contrário do que sinto ao ouvir o estalar do piso de madeira de casarões. Quem será que já passou por aqui?, fico imaginando. Amaram?, Sofreram? Riram? Dançaram nesse piso?
Meu filho me perguntou, ontem mesmo, qual era minha matéria preferida na escola. Sempre foi História. E ele não se conformou. Gostar de ficar sabendo dessas velharias, credo, mãe! Mas como entender as novidades, meu filho, sem saber das velharias? Não somos também parte das histórias dos nossos antepassados? Não carregamos deles mais do que a carga genética? Não somos frutos de escolhas passadas?
Essa semana comecei um curso de croata e quase todos ali, na tela do computador, mencionaram a vontade de se embrenhar mais nas raízes. Só de ouvir alguns sons emitidos pelo professor já fui parar na cozinha do meu tio-avô, onde minha bisavó croata, todos os sábados, se reunia com os filhos. Eu não entendia nada do que diziam, mas o som daquelas palavras, sempre entrecortado por risadas, era um fundo me sussurrando que tudo estava bem. Fazer aula de croata é voltar a esse quintal, como colocar aquelas conchas no ouvido e ouvir o mar. Ainda isolados por conta da pandemia, essa concha, que minha outra avó, a de família espanhola, mantinha na sala, me faz falta.
Essa semana também, depois de meses saindo muito pouco de casa, e ainda assim para ir praticamente à farmácia e ao supermercado, precisei arrumar os óculos quebrados. Andei um pouco pelas ruas do centro de São Paulo, dessa vez sem conseguir reparar nas belezas que meus olhos sempre procuram e enxergam. Dessa vez, mais do que nas outras, tudo o que eu via eram pessoas pedindo comida e dinheiro. Sim, há ainda mais gente nas ruas. Frequento o Centro há muitos anos. Há muitos anos também ando mais a pé e de transporte público do que de carro em São Paulo. Por escolha. Foi um ótimo tratamento, aliás, para a síndrome do pânico, cujas crises vieram quase todas enquanto eu estava engarrafada nas ruas, trancada dentro de um carro. Mas nessa última saída, a mais longa do ano, achei que a crise podia voltar. Comprei água com gás para um homem que passava mal na calçada, lanche para um pai com duas crianças, dei dinheiro, dei umas bolachas que tinha comprado para mim, a agonia me tomando enquanto meus olhos se enchiam daquele desespero todo. Voltou à memória a imagem antiga de uma mulher defecando na calçada, o corpo escorado na parede de um restaurante, olhando para os lados na tentativa de perceber se alguém a via ou não. Eu vi. Nunca mais esqueci. Tem gente que não tem nada. Absolutamente nada. Nem lugar para cagar, foi o que pensei. Passei dias com a imagem daquela mulher na retina. E como constatei essa semana, ainda a tenho aqui. Porque, eu queria contar para o meu filho, isso que vemos hoje já estava lá atrás, nas velharias. História é o caminho, meu filho, não só de onde viemos, mas também para onde iremos.
Estou para acabar a leitura de “Um defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves. Novecentas e quarenta e sete páginas. Já são uns dez dias não querendo fazer mais nada a não ser ler esse livro. Essa mulher negra defecando nas ruas de São Paulo já estava lá, nas ruas de Salvador e de São Sebastião no século XIX. O que fizemos nesses anos todos para melhorar? O que fizemos de efetivo em todos esses séculos? Temos um problema de fundação. Tem um monte de velharia, nas palavras do meu filho a nos mostrar isso. Entre pisar nas madeiras dos casarões e chamar os elevadores só com a voz, há ainda um monte de gente sem teto e sem canto para guardar suas conchas. Se olharmos para trás, dá para ver que o caminho escolhido apontava para isso. Se olharmos agora, dá para ver que lá na frente teremos a mesma sensação de termos pegado o caminho errado.
Voltei para casa como se tivesse entregado minha alma para tantos pedintes na rua. Escolhi um livro para ler com meu filho, um que nos contasse sobre histórias já passadas e ainda presentes. Um que nos mostrasse que estamos mais em círculo do que imaginamos. O sussurro das conchas a embalar nossos sonos. E no dia seguinte ele acordou querendo saber mais sobre os caminhos percorridos até aqui. E eu sigo na esperança de que conhecer o passado pode melhorar o futuro.