Silvia Pereira Pelegrina

Jornalista com 30 anos de experiência em redações, blogueira de cinema, séries e literatura e desde 2022 também assessora de comunicação; Silvia Pereira adora ouvir, ler, assistir e - principalmente - escrever histórias.

Publicações do autor

‘Precisamos falar sobre o Kevin’: perturbador

Woooow!

Desculpem se tento reproduzir paupérrimamente o som alto do meu respiro em busca de ar após ler à última linha do livro “Precisamos falar sobre o Kevin”, de Lionel Shriver (adianta dizer que procurei o e-book motivada pelo trailer do filme, para justificar a introdução da literatura neste blog inicialmente só de cinema?). É na melhor das intenções que tento prevenir leitores/espectadores impressionáveis como eu sobre sua história emocionalmente devastadora.

Foi ao mesmo tempo intoxicante e cáustico submergir na descrição honesta de uma mãe sobre a guerra psicólogica, muda e não-declarada que travou com o próprio filho sociopata durante 15 anos de suas vidas.

Em cartas endereçadas ao marido, a empresária e mãe de família Eva Katchadourian inventaria sua vida familiar desde a decisão – vacilante de sua parte – de terem um filho, até a tarde de uma quinta-feira que mudou para sempre toda a sua vida e as de outras 11 famílias que perderam entes queridos no assassinato em massa levado a cabo por seu filho adolescente.

Entre lembranças, sentimentos e questionamentos desconcertantemente honestos, Eva descreve também suas visitas ao filho na casa de correção para menores, a atenção da mídia ao caso e as reações dos outros a ela mesma após a tragédia, que variam de uma maquinal piedade cristã à uma condenação feroz. Tudo embalado em um robusto, talentoso e saborosamente bem escrito texto (ah… isso sempre me pega!).

Engolfada em aflições por Eva – sempre entro demais nas histórias -, varei a noite com olhos e mentes colados à narrativa, que eu não recomendaria a pais incautos ou candidatos vacilantes aos postos. Os questionamentos com que Eva tempera seu inventário de culpas são tão legítimos que podem facilmente abalar concepções idealistas de família, carreira, maternidade, paternidade e afins, para o que o personagem de seu marido (o típico pai-americano-ideal, sempre pronto a acreditar nas boas intenções do filho em detrimento das leituras certeiras da mulher) não contribui em nada.

Mas o autor guarda uma armadilha aí, que, claro, não contarei aqui, pois ela se revela no fim do livro. Mas posso adiantar que a narrativa nos brinda com raras sugestões de que Kevin não é completamente destituído de sentimentos como todos os seus pequenos atos vis em família ou em seu círculo social fazem crer. É como se (e esta interpretação é inteiramente minha) todo o seu calculismo e vilania se prestassem ao único objetivo de atingir a mãe, mais com o objetivo de conseguir sua aprovação e admiração do que pelo ódio que faz questão de demonstrar.

Será que estrago alguma coisa ao contar que, quando acreditamos que nada será pior do que o assassinato em massa de Kevin, o autor nos brinda com um clímax ainda maior perto do final?

Peço desculpas se for o caso, mas não resisto a justificar minha total reverência à construção narrativa do autor.

Para resumir, apesar de ter sido uma das experiências literárias mais desconfortáveis que já tive, “Precisamos falar sobre o Kevin” figurará, para sempre, na minha galeria pessoal de leituras inesquecíveis.

‘Sherlock’: de volta e arrebentando!

Demorou mais do que o prometido, mas a sensacional série “Sherlock”, que adapta as aventuras do clássico detetive de Arthur Conan Doyle para a Londres do século 21, está de volta. A BBC havia prometido a segunda temporada da série para outubro do ano passado (leia post sobre a primeira clicando aqui), mas o primeiro episódio saiu só agora.

E chegou arrebentando…

O ritmo frenético das investigações, o inteligente humor inglês (adoooro!) e a ótima química entre os atores Benedict Cumberbatch e Martin Freeman (o Bilbo Bolseiro de “O Hobbit”, em cartaz no Brasil) estão todos lá.

Pelo que apurei na internet, esta temporada deve manter o formato, de apenas três episódios de 1h30 cada. O primeiro,“A Scandal in Belgravia”, começa de onde o último da temporada anterior terminou, na piscina onde Watson, Holmes e Moriarty se defrontaram.

É por meio de seu inimigo número 1 que o detetive conhecerá a personagem clássica que faltava: a fatal Irene Adler (Lara Pulver), que na série clássica compartilha com Holmes jogos de gato-e-rato e admiração mútua.

Nesta versão contemporânea, a golpista é uma dominatrix (prostituta especializada em sadomasoquismo), que guarda em seu celular podres de algum membro notável da realeza britânica. O jogo de gato-e-rato que ela “brinca” com Holmes durante todo o episódio é empolgante!

Um dos aspectos que mais admiro nesta produção é a facilidade com que o uso da parafernália tecnológica desta era da informação foi inserida nas aventuras sem comprometer o que este clássico tem de mais atraente: as tramas cerebrais. As mensagens em celulares, as buscas de Holmes na internet são apenas coadjuvantes de seu brilhante método de raciocínio.

Mais uma vez, valeu BBC!

Receitinha grandiosamente embalada por QUEEN

Quando ouvi aquele “Yeahhhh… anybodyyyyyyyyyyyy...” cantado em coro operístico em tom crescente na abertura de “Love Birds”, não deu outra: sabia que ia gostar daquele filme neozelandês de sinopse fraquinha, mas com o trunfo imbatível de ter o personagem principal fanático pelo grupo QUEEN – minha banda favorita entre todas (e olhe que gosto de muita coisa!).

Começar ao som de “Somebody to love” – uma entre tantas obras-primas do rock operístico do grupo – foi matador. Fez-me simpatizar de cara com o personagem Doug, um empreiteiro de mão-de-obra que leva um fora da namorada por não ter grandes ambições na vida.

Sua fossa começa grandiosamente bem, ao som de “It’s a Hardlife”. Quando decide curtir a dor-de-cotovelo adotando um pato que cai ferido sobre seu telhado, aprende a lidar com ele ao som de “Crazy Little Thing Called Love”.

É através da ave que Doug conhece a zoóloga Holly (a atriz inglesa Sally Hawkins), com quem passa a sair. Quando a apresenta aos amigos, ela o tira para dançar na introdução de “Don’t Stop me Now”, que começa linda e lenta para virar um rockão eletrizante em seguida.

Doug leva o novo animal de estimação para todo o lado ouvindo o que ao rádio?… de “I Want to Break Free” a“Who wants to live forever”, as gravações mais populares do Queen. Suas músicas, aliás, tocam nas cenas mais importantes e/ou engraçadas. Tem até uma hilária perseguição de bicicleta ao som da performática “Bicycle Race”.

Tudo bem que o filme segue a receitinha de toda comédia romântica: moço conhece moça, ambos se apaixonam e encontram, no meio do caminho, um complicador que os fará descobrir que foram, afinal, feitos um para o outro.

Não faz mal, porque sua realização é correta e grandiosamente embalada pela trilha sonora do grupo inglês. Os atores são até convincentes, apesar do pesadíssimo sotaque neozelandês, e o final é IMPAGÁVEL, com um clipe em que todos os personagens dublam “Princess of the universe” em performances caricatas engraçadíssimas!

Enfim, “Love Birds” cumpriu o que prometeu: divertiu-me muuuuito.

Valeu!

Um (lindo) Conto Chinês

Desde que o assisti em “O Segredo dos seus Olhos”, procuro ver todos os filmes com Ricardo Darín de que tenho notícia. No último sábado, foi a vez de encantar-me com “Um Conto Chinês” (Um Cuento Chino), com roteiro e direção do espanhol Sebastián Borensztein e atuação coadjuvante de Ignacio Huang – o mestiço com o olhar mais doce que já vi em uma tela.

Darín é Roberto, o proprietário recluso e mal humorado de uma loja de ferragens na periferia de Buenos Aires (Argentina. Ele que tem como passatempos colecionar notícias de tragédias absurdas publicadas em jornais e miniaturas de cristal ofertadas à memória da mãe falecida. Um dia, o acaso o leva a acolher em sua casa um chinês que chega à cidade à procura de seu único parente vivo, mas descobre que ele não mora mais no mesmo endereço.

Enquanto aguardam a embaixada chinesa localizar o tio de Jun, estabelece-se uma amizade estabanada entre o chinês que não fala uma palavra de espanhol e o argentino que não entende nada de mandarim, que no início  sente-se muito incomodado com aquela interferência em seu cotidiano sempre igual. Acabaremos descobrindo que ambos sofreram perdas trágicas em suas vidas, das quais tentam emergir e sobreviver de formas diametralmente opostas.

Quando o tão desejado encontro do tio de Jun acontece, a cena em que os parentes se reconhecem por telefone não tem o menor recurso cênico, mas a voz dolorida do chinês é suficiente para arrancar lágrimas, mesmo sem entendermos mandarim.

Jun se vai, mas não sem antes deixar uma mensagem sem palavras para o ermitão. Claro que não vou entregar que mensagem é esta. Basta saber que ela funciona como uma pancada, que acorda Roberto para o que está abrindo mão por puro medo de se expôr à vida e que é de uma sutileza e um simbolismo arrebatadores.

‘Hanami’: franco-alemão com alma japonesa

Hanami – Cerejeiras em flor” tem produção franco-alemã, direção da francesa Doris Dorrie, elenco quase todo alemão, mas alma japonesa. Porque é característica desta nação oriental a forma delicada, sutil, até suave com que sentimentos de perda e saudades são sugeridos em cenas morosas, cheias de gestos simbólicos.

A história começa com Trudi, uma dona de casa alemã com ascendência japonesa, recebendo sozinha a notícia de que seu marido, Rudi, um pacato funcionário público, sofre de uma doença terminal. Enquanto decide se, como e quando conta isso a ele, ela o convence a fazerem uma viagem a Berlim para verem dois dos três filhos.
O encontro fornece o contraponto da alma alemã, com seus hábitos familiares frios e distantes, mas é a porção japonesa de Trudi, com seus gestos econômicos de maternal ternura, que domina as situações.
Quando Rudi consente em visitarem por mais uma vez o litoral, a morte chega, mas irônica, trapaceando.

Começa então a parte mais emocionante da história, com a viuvez precipitando uma viagem sentimental a Tóquio, onde mora o filho mais novo do casal. Assistimos enlevados às formas simbólicas encontradas pelo “cônjuge que ficou” de pagar a promessa da viagem nunca feita ao que se foi, ou de mostrar a alguém que não está mais no mundo o espetáculo das cerejeiras em flor, celebradas no ritual do Hanami.

Em uma praça da metrópole, uma japonesinha de 18 anos manifesta as saudades da mãe falecida dançando o butoh, a arte a que Rudi impediu Trudi de se dedicar por puro preconceito. A jovem Yu ensina que o butoh é a dança das sombras, que fala a linguagem da alma.

Estabelece-se então um elo entre dois extremos – o velho e o novo, o rude e o delicado – um cuidando do outro a seu modo, entendendo-se por meio de suas perdas.

É Yu quem conduz a viagem ao destino dos sonhos de Trudi, o Monte Fuji, que se esconde tímido atrás de nuvens durante dias até mostrar-se para uma dança final do butoh. Uma dança de amor, de saudades, de pura ternura…

De derreter o coração.

‘Little Dorrit’: mais Dickens na telinha

Acima, o elenco de ‘Little Dorrit’, minissérie da BBC adaptada da obra de Charles Dickens

Queria que a vida fosse tão justa quanto nos livros de Charles Dickens, que todos fossem tão flagrantemente bons ou maus, sem nuances. Quem dera todos os corações partidos continuassem apenas doloridos, mas sem mágoas – principalmente por quem o partiu – e honrados como de John Chivery, o apaixonado pela personagem-título de Little Dorrit“.

Dickens é mais conhecido por “Um Conto de Natal” (A Christimas Carol) – a clássica história dos fantasmas do passado, do presente e do futuro que visitam um velho avarento na noite de Natal adaptada algumas dezenas de vezes para cinema e TV – e um pouco menos por “Oliver Twist” e “Grandes Esperanças”, mas tive a sorte de ter acesso a outras menos conhecidas ainda, como Bleak House eNicholas Nichelby.

O cinema e a TV – sempre a BBC – apresentaram-me primeiro às suas obras, mas nunca contento-me enquanto não confiro suas versões literárias, sempre mais saborosas. Particularmente as de Dickens são, à primeira vista, melancólicas, mas revelam-se de uma fé adorável no ser humano. Cada personagem seu é ou apenas bom ou só mau, ou honrado ou desonesto, humilde ou fútil, mas mesmo os de pior caráter têm sua oportunidade de redenção e os que não a aproveitam recebem o que merecem.

A própria prosa literária de Dickens trai seu otimismo. Mesmo quando descreve situações infelizes, seu tom é de ironia ou humor, do estilo mais elegantemente inglês – a forma como descreve os primeiros anos de Oliver Twist é um ótimo exemplo.

Por isso não vejo a hora de deitar os olhos na versão literária de “Little Dorrit”, que acabo de assistir em formato de minissérie em 14 capítulos da BBC. Enquanto garimpo a internet à caça de ao menos um ebook da obra (já que não encontro uma tradução brasileira no mercado!!!), registro aqui a sugestão da minissérie para quem curte produtos de época tanto quanto eu.

A história se desenvolve em torno de um mistério que liga as vidas de uma idosa fanática religiosa entrevada em um cadeira de rodas, seu filho recém-chegado de uma longa temporada na China e a jovem costureira que esta senhora contrata. O filho é Arthur Clennam (Matthew MacFadyen, a quem já teci rasgados elogios neste blog desde que o conheci na pele de Mr. Darcy, na versão 2005 de “Orgulho e Preconceito”). Ele traz da China a notícia da morte de seu pai em alto mar e várias perguntas à mãe sobre o que significou o último pedido do moribundo para que entregasse um certo relógio à esposa acompanhado de uma única recomendação: “Conserte”.

Diante da recusa da mãe em esclarecer o que significou a mensagem, Arthur começa a investigar a estranha relação desta com a costureirinha humilde que ele descobre morar na prisão dos devedores, para onde o pai dela foi mandado desde antes de seu nascimento. Desenrola-se uma amizade que trará muitas reviravoltas à vida da “Pequena Dorrit” e, claro, o nascimento de um amor inconfesso (adooooro!).

É um deleite acompanhar histórias bem narradas, emolduradas por um figurino bem cuidado, uma reconstituição de época cuidadosa e, mais que tudo, imaginar-se em um mundo criado por Dickens.

‘X-Men ‘Primeira Classe’: ótimo cinema de ação

Nem deu tempo de me emocionar com a surpresa de finalmente ver imagens focadas (!?) em uma tela de cinema araraquarense (sim, nesta cidade é raro). “X Men – Primeira Classe” arrebatou minha atenção sem a menor cerimônia, logo nos primeiros minutos. Deixa eu ver se consigo traduzir o fenômeno de “bom cinema de ação” operado ali sem estragar a surpresa de quem ainda vai assistir: preparem-se para um roteiro inteligentíssimo, desenvolvido em ritmo ágil, apresentado com imagens e efeitos especiais irretocáveis, cenas de ação de tirar o fôlego – como a de um submarino sendo erguido acima do mar – e bonificado por lindos e FANTÁSTICOS atores.

Tá bom, vai, vamos admitir umas falhazinhas temporais no roteiro, como a de antecipar para logo após a primeira batalha dos X-Men a cisão do grupo entre Xavier e Magneto, esquecendo que no terceiro filme (“X-Men – A Última Fronteira”) ambos aparecem na casa da futura Dra. Jean Grey – ela ainda criança – mais velhos que neste“…Primeira Classe“, aparentando ainda serem parceiros, para cooptá-la como aluna da escola de superdotados. Detalhe: Xavier ainda andava.

Tirando essa baita incongruência e o fato de nenhum filme anterior ter dado qualquer pista de que Místika foi irmã de criação de Xavier, pode-se dizer que o roteiro constrói de forma plausível (se é que se pode usar este termo em uma ficção científica sobre mutantes superdotados) a gênese dos X-Men e todas as experiências que moldaram as personalidades de Xavier e Magneto. A forma como é apresentado o surgimento e desenvolvimento da amizade entre ambos também explica convincentemente o antagonismo respeitoso e reverente que sempre permeou a relação de suas versões maduras dos filmes anteriores.

Os raciocínios filosóficos sobre a diferença, os medos e repugnâncias que ela provoca, estão todos lá de volta, após terem sido substituídos pela enxurrada de testosterona do roteiro de “X-Men – Origens: Wolverine”.

Tudo bem que esperava mais embates filosóficos entre Xavier e Erik/Magneto sobre a melhor postura ante a incompreensão humana com o diferente. Não passou de comentários soltos de Erik sobre como a segregação começa com a identificação dos diferentes e continua com planos de extermínio em massa, a exemplo do que fizeram com judeus nos campos de concentração, e com Xavier limitando-se a repetir que “temos que estar acima disso”. Mas não deixa de ser um começo para quem já cultiva o (bom) hábito de refletir, independentemente do tamanho do estímulo.

Carisma aos montes

Já sabíamos que o ódio nascido na guerra era o motor dos planos de vingança de Magneto, mas apresentar Xavier como um jovem doutorando “boa praça” e conquistador, em contraponto à sua postura centrada da maturidade, foi divertidíssimo!

Se você achava impossível uma combinação de charme e piadas sobre mutações genéticas funcionar em cantadas a mulheres, espere até ver o Xavier de James McAvoy fazê-lo. Que Místika resistiria a tal par de olhos azuis e um carisma daqueles? Só não foi páreo para um Erik/Magneto lindo de morrer e orgulhoso de sua diferença, coisa de que a metamorfa estava sedenta.

Falando em carisma, o elenco masculino tem para dar e vender, dos mais jovens atores (destaque para Lucas Till, Caleb Jones e Nicholas Hoult) aos veteranos. As atrizes estavam apenas bem (exceção superlativa a Jennifer Lawrence/Místika… a garota é das boas), mas nada que se compare ao duelo de magnetismo travado a cada cena de James McAvoy e Michael Fassbender, na pele de Charles Xavier e Erik/Magneto, respectivamente.

Michael Fassbender (lembram dele na cena tensa do bar em “Bastardos Inglórios?) fez jus à distinção aristocrática do Magneto de Sir Ian McKellen. Kevin Bacon, então, que já não precisa provar mais nada em termos de talento, nos brindou com um daqueles vilões que AMAMOS odiar. Simplesmente irresistíveis… todos!

Ah sim… e para quem ficou no cinema para ver a cena extra do terceiro filme – aquela mesma que aparece após os letreiros correrem no fundo preto -, lembrem-se do nome que uma certa voz profere para a figura de branco ao lado de uma cama de hospital. A semelhança com o de uma personagem deste “…Primeira Classe” pode não ser mera coincidência (“Hello, M…”).

‘Incêndios’: dilacerante

A atriz Lubna Azabal em cena do filme de Dennis Villeneuve

Não é preciso entender a letra da música de abertura de “Incêndios” – filme do canadense Dennis Villeneuve que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – para senti-la como um lamento dolorido embalando as imagens de uma paisagem de rochas e vegetação pálida. Quando esta paisagem é emoldurada por uma janela, a câmera começa a percorrer um cômodo imundo até focalizar um grupo de garotos tendo suas cabeças raspadas, escoltados pelo que parecem ser soldados árabes armados. A música-lamento é quase uma personagem na cena…

De repente a câmera se fixa no calcanhar tatuado por três pontos pretos de um dos garotos e percorre seu corpo até alcançar o rosto. É de ódio mudo o olhar que as duas pupilas muito negras endereçam à câmera, sem pestanejar. O espectador ainda não entende do que se trata a história, mas já sabe que haverá dor, ódio, guerra.

Ficamos meio confusos quando o cenário muda drasticamente para um escritório contemporâneo, onde um testamenteiro lê para um casal de gêmeos as últimas vontades de sua mãe. A falecida pede à filha, Jeanne, que entregue uma carta lacrada a seu pai… e ao filho, Simon, que entregue outro envelope a seu irmão, sobre os quais nenhum dos dois sabia absolutamente nada a respeito até então.

Pelo diálogo rancoroso que se segue, percebemos que os gêmeos tinham questões mal resolvidas com a mãe, o que faz Simon recusar-se a cumprir a vontade que lhe cabe. Apenas Jeanne segue para o Oriente Médio para buscar pistas dos dois parentes, tendo à mão só o crucifixo e o passaporte que a mãe trouxe consigo ao imigrar para o Canadá.

Começa então o resgate da história de Nawal Marwan… movida ora pelo amor, ora pelo ódio, sempre em altas medidas. Ela é contada paralelamente às investigações de Jeanne, que, logo numa das primeiras indagações sobre seu pai – que faz na aldeia natal de sua mãe -, ouve de uma anciã: “Você procura saber sobre seu pai, mas não sabe quem foi sua mãe”. E lá vai ela descobrir como a mãe passou de uma ativista cristã pela paz para uma agente dos refugiados, motivada por “ensinar ao inimigo o que a guerra me ensinou”.

Ao dizer isso, Nawal refere-se à bestialidade primitiva que a guerra desperta nas pessoas, mesmo quando lutam em nome de uma religião que nasceu pregando o amor – foram guerrilheiros cristãos os autores do ato mais vil que Nawal testemunhou enquanto procurava seu filho por uma região em guerra e houve um incêndio relacionado.

Impossível não sucumbir à tristeza assistindo aos exemplos tão lamentáveis de intolerância e ódio que permeiam a vida de Nawal. Mesmo havendo uma mensagem de redenção pelo amor ao final, ainda era triste a sensação que me dominava quando os créditos do filme começaram a subir na tela. Não há nada mais dilacerante do que assistir ao que o ódio pode fazer com a vida das pessoas. Talvez por isso mesmo seja tão necessário fazê-lo. Quem sabe este espelho oferecido pelas histórias contadas nos faça, de algum modo, acordar e tomar partido.

‘A Onda’: tratamento de choque

Bruce Davison como o professor do primeiro filme “A Onda”, de 1981

Numa aula de história, um professor de Ensino Médio tenta explicar a alunos adolescentes de que forma regimes totalitários, como nazismo e fascismo, mantiveram-se por anos em alguns países, tutelados pela população. A platéia duvida da probabilidade daquele “engano coletivo” ocorrer em sua geração, “mais informada e inteligente” (ah… a arrogância da juventude!).

Não sei se saberei explicar direito porque esta história real – descrita em livro e transformada em filmes norte-americano (The Wave, 1981) e alemão (Die Welle, 2009) intitulados “A Onda” – me veio automaticamente à memória quando assisti hoje ao noticiário. Talvez as imagens de jovens comemorando a morte do terrorista Osama Bin Laden pelas ruas dos Estados Unidos tenham me lembrado a mesma ingenuidade e arrogância daqueles estudantes em sala de aula de “A Onda” – todos considerando-se tão acima de “enganos coletivos”, como se sempre fosse possível saber com clareza onde estão o certo e o errado… como se a morte de um único líder pudesse acabar automaticamente com o terror.

O professor do filme decide usar um método nada ortodoxo para mostrar a seus alunos como um regime repressor pode ser fomentado dentro da sociedade, a partir de uma ideia bem vendida e cultivada pela pressão do meio social. Começa sugerindo a criação de um clube, intitulado “A Onda”, cujo conceito vende com grande sedução. Afaga egos juvenis dando funções específicas para cada um dentro desta sociedade; confere sensações de importância e pertencimento ao propor regras de conduta a serem seguidas – e premiadas – por todos; cria distintivos, braçadeiras, uniformes, gritos de guerra, saudações gestuais, que lembram desde a paixão das torcidas organizadas até a disciplina de instituições militares (não por acaso, força na qual todo regime totalitarista se apoia).

Aos poucos, a inebriante sensação de tornar-se parte de algo importante contagia toda a escola. Torna-se cool pertencer à Onda. O nerd, o gordinho e outras minorias, que antes sofriam bullying por serem diferentes, agora são respeitados por também terem um cargo no clube (finalmente sentem-se inclusos!).

Nesta nova ordem, agir e vestir-se igual começam como decisões voluntárias que, aos poucos, tornam-se esperadas e, com o tempo, exigidas. Quando o próprio grupo começa a criar mecanismos de repressão de quem não se encaixa aos preceitos da sociedade (as vítimas de bullying, agora, são outras), o professor decide que é hora de um tratamento de choque.

O que “A Onda” tem a ver com Osama Bin Laden e as comemorações por sua morte? Aparentemente, nada, mas ajuda, assistindo ao filme, entender como se programam mentes de futuros Bins Ladens, que crescem ouvindo a doutrinação apaixonada de seus iguais, em sociedades blindadas à informação livre e engessadas pelo cerceamento de liberdades (de expressão, de imprensa, de ação, de pensamento…).

Entendendo os mecanismos de sedução em massa expostos no filme talvez nos tornemos menos ingênuos a ponto de acreditar que faríamos diferente se tivéssemos crescido na mesma sociedade… ou de crer que a morte de um único homem (ele sendo efeito e não causa de uma sociedade intolerante) representará o fim de uma engrenagem violenta – crer nisso, aliás, equivale a acreditar que o Rio de Janeiro viraria uma ilha de paz se apenas fossem mortos todos os líderes do crime nas favelas, mas continuassem a miséria e as desigualdades sociais e de acesso ao conhecimento e à educação (maiores fabricantes de excluídos).

Como escreveu Clóvis Rossi em seu artigo “A Morte não mata o discurso”, eliminar o combustível do fanatismo que armou Bin Laden começa por dar condições de vida mais dignas aos povos árabes. Eu acrescentaria a isso abrir suas sociedades para o conhecimento, em vez de simplesmente rotulá-las como inferiores e dar-lhes as costas, acreditando-nos muito superiores.

U2 360 – Viagem multisensorial

Os meses de expectativa, as horas de ansiedade e o Profenid para calar a lombar ressentida com as horas em pé não foram absolutamente nada perto da indescritível experiência de assistir ao show “360º”, do U2. Não acreditem nos vídeos gravados, nas fotos reproduzidas, nas críticas escritas nos noticiários… ESTAR LÁ é único… irreproduzível… mas vou tentar…

Eu e Ma na plateia

Foi preciso estar no Morumbi no sábado (9/4) para entender que assistir a um show de uma banda como esta não vale só por ver seus ídolos cantando ao vivo, a menos de 100 metros de você. A energia que lhe envolve quando suas voz e emoções entram em sintonia com as de outras 90 mil pessoas, somado às sensações multisensoriais provocadas pela produção apoteótica, transcendem mais do que qualquer droga.

Tenho certeza que as críticas jornalísticas vão falar mais apropriadamente da produção épica do show… eu falo aqui é de emoção, identificação, comunhão pela música.

Às vezes parece que você está em uma nave, viajando por um universo paralelo, mas não longe o bastante da antena de conscientização que Bono ativa quando, por exemplo, evoca as palavras de Desmond Tutu na introdução de “One” (Má, meu amor, foi mágico ouvi-la ao seu lado!) ou quando nos lembra que há apenas dois dias um massacre de inocentes deixou 12 famílias enlutadas no Rio… embarcamos em “Moments of Surrender” assim, com os olhos marejados pela visão dos nomes das 12 crianças assassinadas no telão… as mãos levantadas empunhando celulares em obediência ao pedido de Bono.

Do ponto de vista de produção, a mise-em-scene audiovisual arquitetada para “City of Blinding Lights” deve ser apontada como ponto alto do show… o telão esticando, como se de elástico, formando um funil do teto ao chão do palco, mas ainda reproduzindo imagens gigantes de Bono, Adam, Larry e The Edge… as luzes lançadas do palco para o céu, coalhando de figuras abstratas a tela de nuvens – até elas, obedientes, aguardaram quietinhas o fim do show para cair em forma de chuva (as capas só valeram para a apresentação de abertura, com a Muse… também surpreendente!).

Mas, para mim, o melhor da noite foi sentir a força do som surround injetar a bateria inconfundível de Mullen por todos os meus sentidos na introdução de “Sunday Bloody Sunday” – hino supremo de minha relação com a banda … quase estourei os pulmões cantando-a junto e pulando como uma macaca nos refrões.

E o que foi o Bono se balançando pendurado ao microfone circular, suspenso por cabo de aço, na hora de “Ultra Violet”?!… kkkkkkkkkkk… SENSACIONAL!!! Adoro pessoas que não temem o ridículo, pois tenho pra mim que não se levar muito a sério é o melhor remédio contra a velhice.

Breno, lembrei de você na hora de “Beautiful Day”. Você e a Jana teriam adorado!

E vimos Bono se emocionar com o coro do público entoando por ele “Where the streets have no name”, “Help”(Yes, we love Beatles too) e teimando no Oh-Oh-Oh OhOhOh de “Moments of Surrender” muito depois do último acorde soar… Ele agradeceu emocionado.

Deu até para perdoá-lo por ficar me devendo cantar “Pride (in the name of Love)”, “Original of the spieces”, “Sometimes you can’t make it on your own”, “Stay”… (suspeito que seriam necessários  dois shows pra eu ouvir todas as minhas preferidas da banda😊).

Foi tudo grandioso… uma viagem tão hipnotizante que ao final das mais de 2h de show parecia que não havia passado nem 1h… mas acabou. Que pena!

 

P.S. Quase ia me esquecendo… Aldo, Roberto, Val, Tati e Fabinho… vcs foram companhias fantásticas!